"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

América 1: "Os signos da cruz nas empunhaduras das espadas"

Códice Durán

Quando Cristóvão Colombo se abalançou a atravessar os grandes espaços vazios a oeste do Ecúmeno, ele aceitaria o desafio das lendas. Tempestades terríveis sacudiram suas ruas como se fossem cascas de nozes e as lançariam na boca dos monstros, e a grande serpente dos mares tenebrosos, faminta de carne humana, estaria à espreita. Faltavam só mil anos para que as chamas purificadoras do Juízo Final arrasassem o mundo, segundo acreditavam os homens do século XV, e o mundo era então o mar Mediterrâneo com seu litoral de ambígua projeção para a África e o Oriente. Os navegadores portugueses asseguravam que o vento do oeste trazia cadáveres estranhos e às vezes arrastava toras curiosamente talhadas, mas ninguém suspeitava de que sem demora o mundo seria assombrosamente multiplicado.

A América não só carecia de nome. Os noruegueses não sabiam que a tinham descoberto já fazia tempo, e o próprio Colombo morreu ainda convencido de que havia alcançado a Ásia pelas costas. Em 1492, quando a bota espanhola enterrou-a pela primeira vez nas areias das Bahamas, o almirante acreditou que essas ilhas eram as sentinelas avançadas do Japão. Colombo levava consigo um exemplar do livro de Marco Polo, coberto de anotações nas margens das páginas. Os habitantes de Cipango, dizia Marco Polo, "possuem ouro em enorme abundância, e as minas onde o encontram jamais se esgotam (...). Também há nesta ilha pérolas do mais puro brilho em grande quantidade. São rosadas, redondas, de tamanho grande, e superam em valor as pérolas brancas". A riqueza de Cipango chegara aos ouvidos do Grande Khan Kubilai, tinha despertado em seu peito o desejo de conquistá-la: ele fracassara. Das fulgurantes páginas de Marco Polo alçavam voo todos os bens da criação; havia quase treze mil ilhas no mar da Índia, com montanhas de ouro e pérolas, e doze tipos de especiarias em imensas quantidades, além das pimentas branca e preta. A pimenta, o gengibre, o cravo-da-índia, a noz-moscada e a canela eram tão cobiçadas quanto o sal para conservar a carne no inverno sem que se deteriorasse ou perdesse o sabor. Os reis católicos da Espanha decidiram financiar a aventura do acesso direto às fontes, para livrar-se da onerosa cadeia de intermediários e revendedores que monopolizavam o comércio das especiarias e das plantas tropicais, das musselinas e das armas brancas que provinham de misteriosas regiões do Oriente. O anseio de metais preciosos, a moeda de pagamento no tráfico comercial, também impulsionou a travessia dos mares malditos. A Europa inteira precisava de prata; estavam já quase exauridos os filões da Boêmia, da Saxônia e do Tirol.

A Espanha vivia o tempo da reconquista. O ano de 1492 não foi apenas o ano do descobrimento da América, o novo mundo nascido daquele equívoco de grandiosas consequências. Foi também o ano da recuperação de Granada. Fernando de Aragão e Isabel de Castela, que com o casamento tinham evitado o desmonte de seus domínios, no princípio de 1492 eliminaram o último reduto da religião muçulmana em solo espanhol. Custara quase oito séculos a retomada daquilo que fora perdido em sete anos, e as despesas da campanha tinham esgotado o tesouro real. Mas esta era uma guerra santa, a guerra cristã contra o Islã, e não é casual, de resto, que no mesmo ano de 1492, 150 mil judeus declarados tenham sido expulsos do país. A Espanha adquiria realidade como nação, erguendo espadas cujas empunhaduras traziam o signo da cruz. A rainha Isabel fez-se madrinha da Santa Inquisição. A façanha do descobrimento da América não poderia se explicar sem a tradição militar da guerra das cruzadas que imperava na Castela medieval, e a Igreja não se fez de rogada para atribuir caráter sagrado à conquista de terras incógnitas do outro lado do mar. O papa Alexandre VI, que era valenciano, converteu a rainha Isabel em dona e senhora do Novo Mundo. A expansão do reino de Castela ampliava o reino de Deus sobre a terra.

Três anos depois do descobrimento, Cristóvão Colombo, pessoalmente, comandou uma campanha militar contra os indígenas da Dominicana. Um punhado de cavaleiros, 200 infantes e uns quantos cães especialmente adestrados para o ataque dizimaram os índios. Mais de 500, enviados para a Espanha, foram vendidos como escravos em Sevilha e morreram miseravelmente. No entanto, alguns teólogos protestaram, e a escravização dos índios foi formalmente proibida no século XVI. Na verdade, não foi proibida, foi abençoada: antes de cada ação militar, os capitães da conquista deviam ler para os índios, na presença de um tabelião, um extenso e retórico Requerimento que os exortava à conversão à santa fé católica: "Se não o fizerdes, ou se o fizerdes maliciosamente, como dilação, certifico-vos que, com a ajuda de Deus, agirei poderosamente contra vós e vos farei guerra da maneira que puder em todos os lugares, submetendo-vos ao jugo e à obediência da Igreja e de Sua Majestade, e tomarei vossas mulheres e vossos filhos e vos farei escravos e como tais sereis vendidos, dispondo de vós como Sua Majestade ordenar, e tomarei vossos bens e farei contra vós todos os males e danos que puder (...)".

A América era um vasto império do Diabo, de redenção impossível ou duvidosa, mas a fanática missão contra a heresia dos nativos se confundia com a febre que, nas hostes da conquista, era causada pelo brilho dos tesouros do Novo Mundo. Bernal Díaz del Castillo, soldado de Hernán Cortez, escreve que eles chegaram à América "para servir a Deus e a Sua Majestade, e também por haver riquezas".

Ao alcançar o atol de San Salvador, Colombo deslumbrou-se com a colorida transparência do Caribe, a verdejante paisagem, a doçura e a limpeza do ar, os pássaros esplêndidos e os jovens "de boa estatura, gente mui formosa" e "muito mansa" que ali habitava. Presenteou os indígenas com "alguns gorros vermelhos e umas contas de vidro que eles colocavam no pescoço, e muitas outras coisas de pouco valor com as quais ficaram contentes e tão nossos que era uma maravilha". Mostrou-lhes as espadas. Não as conheciam, seguravam-nas pelo fio e se cortavam. Entrementes, conta o almirante em seu diário de bordo, "eu estava atento e trabalhava para saber se havia ouro, e vendo que alguns deles traziam um pedacinho enfiado no buraco que tinham no nariz, por gestos pude me informar que, indo para o sul ou contornando a ilha pelo sul, encontraria um rei que possuía grandes vasos daquilo, e em grande quantidade". Porque "do ouro se faz tesouro, e quem o tem faz o que quiser do mundo e até leva as almas para o Paraíso". Em sua terceira viagem, ao abordar a costa da Venezuela, Colombo ainda supunha que andava no mar da China; isto não o impediu de informar que dali se estendia uma terra infinita que subia até o Paraíso Terrestre. Também Américo Vespúcio, explorador do litoral do Brasil na alvorada do século XVI, relataria a Lorenzo de Médicis: "As árvores são de tanta beleza e tanta brandura que nos sentíamos como se estivéssemos no Paraíso Terrestre (...)". Com pesar, Colombo escrevia aos reis em 1503, da Jamaica: "Quando descobri as Índias, disse que eram o maior domínio rico que há no mundo. Disse do ouro, pérolas, pedras preciosas, especiarias (...)".

Na Idade Média, uma bolsa de pimenta valia mais do que a vida de um homem, mas o ouro e a prata eram as chaves que o Renascimento usava para abrir as portas do Paraíso no céu e as portas do mercantilismo capitalista na Terra. A epopeia de espanhóis e portugueses na América combinou a propagação da fé cristã com a usurpação e o saque das riquezas indígenas. O poder europeu se irradiava para abraçar o mundo. As terras virgens, densas de selvas e perigos, instigavam a cobiça de capitães, cavaleiros fidalgos e soldados em farrapos, que se lançavam à conquista de espetaculares butins de guerra: acreditavam na glória, "o sol dos mortos", e na audácia. "Os ousados a fortuna ajuda", dizia Cortez. O próprio Cortez havia hipotecado todos os seus bens pessoais para equipar a expedição do México. Salvo raras exceções, como foi o caso de Colombo e Magalhães, as aventuras não eram custeadas pelo Estado, mas pelos próprios conquistadores ou por mercadores e banqueiros que os financiavam.

Nasceu o mito do Eldorado, o rei banhado em ouro que os indígenas inventaram para afastar os intrusos: de Gonzalo Pizarro a Walter Raleight, muitos o perseguiram em vão nas florestas e nas águas do Amazonas e do Orinoco. A quimera do "monte que manava prata" se tornou realidade em 1545, com o descobrimento de Potosí, mas antes já haviam morrido, vencido pela fome, pelas doenças ou atravessados por flechas indígenas, muitos dos expedicionários que, subindo o rio Paraná, tentaram infrutiferamente alcançar o manancial de prata.

Havia, sim, ouro e prata em grande quantidade, acumulados na meseta do México e no altiplano andino. Hernán Cortez revelou para a Espanha, em 1519, a fabulosa magnitude do tesouro asteca de Montezuma, e depois chegou a Sevilha o gigantesco resgate, um aposento cheio de ouro e prata, que Francisco Pizarro fez o inca Atahualpa pagar antes de degolá-lo. Anos antes, com o ouro arrebatado às Antilhas, a Coroa já havia pago os serviços dos marinheiros que acompanharam Colombo em sua primeira viagem. Finalmente, a população das ilhas do Caribe deixou de pagar tributos, pois desapareceu: os indígenas foram completamente exterminados nas lavagens do ouro, na terrível tarefa de revolver as areias auríferas com a metade do corpo debaixo d'água, ou lavrando os campos até a exaustão, com as costas dobradas sobre pesados instrumentos de arar trazidos da Espanha. Muitos indígenas da Dominicana se antecipavam ao destino imposto por seus novos opressores brancos: matavam seus filhos e se suicidavam em massa. O cronista oficial Fernandez de Oviedo assim interpretava, em meados do século XVI, o holocausto dos antilhanos: "Muitos deles se matavam com veneno para não trabalhar, e outros se enforcavam com as próprias mãos".

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 29-34.

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