"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

A sociedade norte-americana no século XIX: a Guerra de Secessão

Batalha de Gettysburg. Litografia de Currier e Ives.


Você sabia que as quadrilhas de assaltantes de bancos, de trens e de diligências só surgiram nos Estados Unidos na segunda metade do século XIX?

Para ser mais preciso: depois da Guerra de Secessão (1861-1865) foi que se organizaram os bandos de William Clarke Quantrill, dos Irmãos James, dos Irmãos Younger e de tantos outros cujas cabeças foram colocadas a prêmio!

E por que tamanha proliferação do banditismo e da violência?

Aliás, na mesma época formou-se a Ku-Klux-Klan (KKK)!

Foram tempos difíceis para os sulistas os da Reconstrução (1865-1877).

Para muitos dos marginais, tudo começou quando tiveram suas fazendas confiscadas e se viram obrigados a aceitar a perda total do que consideravam, com razão, um patrimônio: a libertação dos escravos negros! Ou porque resistiram ou porque haviam se destacado durante a guerra civil, muitos sulistas foram condenados pela Justiça dos vencedores e, para não serem presos, fugiram. Quase todos haviam se habituado à violência das armas, em um conflito que custou a vida de 620.000 pessoas.

Jesse James, imortalizado em dezenas de filmes e de histórias em quadrinhos, afirmava constantemente: "Eles nos obrigaram."

E por que explodiu uma guerra tão devastadora?

Pela necessidade de definir o futuro dos EUA, onde coexistiam, antagonicamente, duas sociedades completamente diferentes:

* o escravismo agrário no Sul;
* o capitalismo industrial no Norte.

Ambos se fortaleceram com a conquista do Oeste. Muitos Estados surgidos da própria conquista eram escravistas. O capitalismo do Norte também se beneficiou, porque conquistou novos mercados consumidores da sua produção, além de garantir mercados fornecedores de matérias-primas para as fábricas e de alimentos para as populações urbanas.

Plantação de algodãoWilliam Aiken Walker

As contradições econômicas entre o Norte e o Sul se desdobravam no plano social. Que modelo de vida prevaleceria nos EUA? Os costumes, hábitos e valores dos aristocratas do Sul, senhores de vastas propriedades rurais, trabalhadas por escravos negros? Ou os padrões de comportamento da burguesia nortista, integrada por banqueiros, industriais, armadores e comerciantes?

Os problemas socioeconômicos tinham desdobramento no plano político. Quem governaria os EUA? Presidentes e congressistas provenientes majoritariamente do Norte ou do Sul? O Congresso aprovaria tarifas alfandegárias livre-cambistas, como desejava o Sul (cuja economia era agroexportadora), ou seriam elas protecionistas, com altos impostos cobrados às mercadorias estrangeiras, como pressionava o Norte (interessado em garantir o monopólio do mercado consumidor interno)? Além do mais, manteria o Congresso a escravidão (base da prosperidade econômica do Sul) ou estabeleceria a sua extinção (como queriam os empresários do Norte, empenhados em ampliar o poder aquisitivo do mercado consumidor interno)?

"Um oitavo de toda a população era formada de escravos de cor, não distribuídos de um modo geral pela União, porém localizados em sua parte meridional. Tais escravos constituíam um interesse peculiar e poderoso. Todos sabiam que esse interesse, de certo modo, foi a causa da guerra. Fortalecê-lo, perpetuá-lo e ampliá-lo era o objetivo pelo qual os insurretos pretendiam dividir a União, nem que tivessem de recorrer à guerra, ao passo que o governo não reclamava outro direito que o de restringir sua difusão territorial."

Sabe quem pronunciou essas palavras?

Abraham Lincoln, Presidente dos EUA.

Abraham Lincoln, 1865

Há muito vinham sendo tomadas medidas procurando conciliar os interesses do Norte e do Sul.

Uma delas foi a Constituição de 1787 [...].

Outra, foi o Compromisso do Missúri (1820), decidindo-se que novos Estados admitidos na União e situados ao Sul do paralelo de 36º30' teriam mão-de-obra escrava; localizados ao Norte do citado paralelo não poderiam ter escravos.

Até então havia 22 Estados na União, sendo 11 abolicionistas e 11 escravistas.

Por que se buscou de novo a conciliação?

Por que a união interna era fundamental, face ao crescimento de ameaças externas. Já entre 1812 e 1814 os norte-americanos tiveram de travar uma guerra contra a Inglaterra, conhecida como Segunda Guerra de Independência. Em 1815, formara-se a Santa Aliança, reunindo governantes europeus cuja política de intervenções militares poderia estender-se à América.

Apesar disso, o antagonismo Norte e Sul aprofundou-se. O desenvolvimento do capitalismo industrial do Norte sentia-se cada vez mais sufocado com a manutenção do escravismo da União. Por sua vez, a prosperidade do escravismo agrário do Sul considerava insuportável a presença do capitalismo na União.

Como resolver o impasse?

"Em 1860 a correlação de forças já pendia em favor dos abolicionistas, que tinham maioria no Congresso. Nas eleições presidenciais daquele ano, prevendo uma possível derrota, os escravistas defenderam a tese de que qualquer Estado prejudicado pelo governo federal dele poderia se separar; além disso, propunham como condição para sua permanência a vitória do seu candidato [...]

Por sua vez, o Partido Republicano (formado em 1854), agrupando democratas e federalistas do Norte, do Oeste e do Sul, nacionalistas e protecionistas, tinha como candidato Abraham Lincoln, que incluía em sua plataforma a Definição de Tarifas Protecionistas e a União a Todo Custo.

Com a vitória de Lincoln, a Carolina do Sul, seguida depois por mais 10 outros Estados escravistas, declarou que não faria mais parte dos Estados Unidos [...] Os representantes dos Estados que se separaram reuniram-se e formaram os Estados Confederados da América, escolhendo como Presidente Jefferson Davies (1861)."

Caricatura de caçadores de escravos (Anti-Slavery Almanac, 1839)

A Guerra de Secessão, que então começava, foi um conflito total.

Milhares de homens foram engajados nos exércitos do Norte e do Sul: os primeiros fardados de azul e os segundos, de cinza; os primeiros chamados de ianques (originários da Nova Inglaterra) e os segundos, de confederados. Tanto os chefes militares do Norte quanto os do Sul não hesitaram em incendiar cidades, queimar colheitas, pontes, celeiros... Populações civis foram massacradas e, quando o conflito terminou, as perdas em vidas humanas eram tão elevadas que até hoje superam as sofridas pelos EUA em guerras posteriores, incluindo-se as duas guerras mundiais, a Guerra da Coréia (1950-1953) e a Guerra do Vietnã (1961-1973).

[...]

Potencialmente, o Norte, apoiado pela maior parte do Oeste, levava vantagens sobre o Sul:

* segundo o recenseamento de 1860, os Estados Confederados tinham uma população branca de 5.449.467 indivíduos; em contrapartida, os 19 Estados da União eram habitados por 18.936.579 pessoas;
* cerca de 100.000 escravos negros, em troca da prometida liberdade, lutaram nos exércitos da União;
* os transportes ferroviários, concentrados no Norte e no Oeste, davam maior mobilidade às forças militares da União;
* industrializado, o Norte não teve problemas de falta de armas, munição e outros equipamentos militares; o Sul enfrentou crescentes dificuldades para renovar seu estoque bélico, recebido do exterior, o que foi se tornando difícil devido ao bloqueio de seu litoral pela esquadra do Norte.

Quando os nortistas tomaram e incendiaram Richmond (capital do Sul) e obtiveram a vitória de Appomatox, o General confederado Robert Lee rendeu-se ao General nortista Ulisses Grant [...].

Terminava assim a guerra.

AQUINO, Rubim Santos Leão de; LISBOA, Ronaldo César. Fazendo a História: a Europa e as Américas do século XVIII ao início do século XX. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 123-126.

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