"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

O Iluminismo: a modernidade arquitetada

Uma leitura de D'Alembert no salão de madame Geoffrin, Lemonnier

O convite dos livreiros Briasson, Durante e David para que o filósofo Diderot traduzisse a Cyclopaedia inglesa foi o ponto de partida para a produção da Enciclopédia, uma obra inteiramente nova que sintetiza o pensamento do chamado Século das Luzes. Com a ajuda do matemático D'Alembert, Diderot trabalhou incansavelmente, e os três primeiros volumes apareceram em 1753, com grande sucesso.

Além de receber insignificante recompensa financeira, Diderot ainda teve que suportar as pressões e censuras da Igreja e do Estado - o qual em 1759 chegou a proibir a circulação da Enciclopédia. Mas, com persistência, continuou seu trabalho, e em 1772 os 36 volumes da Enciclopédia estavam publicados. Para a realização dessa obra contribuíram grandes pensadores da época, como Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Turgot, Holbach, e mais de uma centena de estudiosos de diversas áreas do conhecimento. As atividades dos filósofos e seus ensinamentos ganharam assim maior divulgação, o que tornou mais evidentes seus confrontos com o passado.

A Enciclopédia revelou quão expressiva era a produção de conhecimento no século XVIII. Embora poucos soubessem ler, a publicação de uma obra de tal dimensão era um exemplo claro de que as ideias circulavam e de que os intelectuais estavam empenhados na construção de novos projetos para a sociedade. Pensava-se agora não só em conhecer o mundo, mas também na possibilidade de transformá-lo. As ideias de liberdade e progresso estavam presentes nessa nova proposta social.

Os filósofos iluministas acreditavam que o homem era capaz de reformar a sociedade, libertar-se dos preconceitos, educar-se para uma realidade que o tirasse definitivamente das trevas. Para eles, a razão era a grande luz que deveria iluminar os caminhos da humanidade, daí o termo Iluminismo. O racionalismo proposto por Descartes no século anterior fazia adeptos, o materialismo atraía pensadores, a religião sofria abalos, a burguesia procurava se articular em torno das propostas de mudanças que a favoreciam.

A ideia de revolução já circulava, parecia que a História tinha sido transposta para um futuro inevitavelmente superior ao presente que se estava vivendo. As ideias de Francis Bacon começavam a fazer sentido - constatava-se que o conhecimento não podia ficar restrito apenas ao deleite intelectual, pois cabia a ele a função de influenciar o desenvolvimento social, contribuindo para melhorar as condições da vida cotidiana dos homens.

* Novos espaços para o saber. Ainda no final desse século, embora a obra desses pensadores não tivesse alcançado ampla divulgação, na educação já se registravam conquistas importantes. As pessoas começaram a se interessar por aprender a ler e escrever. Segundo Roger Chartier:

No final do século XVIII, na Europa a escrita é corriqueira, de 60% a 70% dos homens sabem assinar o nome: 71% na França situada ao norte da linha Saint-Malo - Genebra, 61% nos Países Baixos austríacos. Para as mulheres, exceto a Escócia, as porcentagens se situam em torno de 40%: 44% no norte e nordeste da França, 37% nos Países Baixos, 40% na Inglaterra. (As práticas da escrita. In: Phillippe Ariès e Georges Duby, dirs. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. v. 3. p. 119.)

Ainda de acordo com Chartier, na França da época do Iluminismo, "a leitura em voz alta por quem sabe ler para os que sabem menos bem ou nada constitui uma prática habitual, na cidade e no campo, por trabalho ou por lazer, e ao acaso da rua ou entre companheiros de labuta". Os objetos de leitura eram os mais variados: textos religiosos, coletâneas, cartazes afixados nos muros das cidades, etc. Na Espanha dos séculos XVI e XVII, formavam-se auditórios para ler novelas de cavalaria em voz alta.

Novos hábitos começavam a se espalhar pela Europa, assinalando modos diferentes de conviver com a chamada privatização das condutas, isto é, com a importância atribuída aos espaços individuais, que começavam a ser considerados privilegiados. Saber ler era uma conquista fundamental, representava uma condição de maior autonomia e maior possibilidade de acesso ao conhecimento. Longe da dispersão que marcava as leituras coletivas, o leitor solitário podia concentrar-se nas suas dúvidas e descobertas, aumentando assim o leque de suas escolhas pessoais e a compreensão das mudanças sociais. Consolidava-se assim uma das práticas individualistas do mundo moderno.

Não se pode deixar de enfatizar o quanto a leitura e a escrita colaboraram para a construção da modernidade. Para os iluministas, o projeto de emancipação do homem passava pela relação com o saber produzido. Afinal, a razão era a luz. A leitura e a escrita assumiram um novo valor social: eram indispensáveis, de acordo com uma pedagogia que se propunha a libertar o indivíduo por meio da racionalidade.

* Divulgando as novas ideias. A movimentação intelectual da chamada Revolução Científica, no século XVII, colaborou para a derrubada de muitos preconceitos e redefiniu a formação dos estudiosos do século XVIII. Além disso, os iluministas dispunham em sua época de melhores condições para divulgar suas ideias, conseguindo por isso alcançar as elites pensantes das principais capitais europeias - especialmente Paris e Londres.

Muitas dessa ideias, no entanto, vinham do final do século XVII. O Dicionário histórico e crítico, do francês Pierre Bayle (1647-1706), publicado nos Países Baixos, questionava o clero e denunciava a tirania. Bayle, como todos os protestantes franceses seus contemporâneos, fora perseguido pela monarquia de Luís XIV e refugiara-se nos Países Baixos, onde a censura era menor rigorosa que na França católica.

A França, porém, continuou a ser o grande centro cultural da Europa. Na segunda metade do século XVIII, Paris foi a cidade em que os intelectuais iluministas tiveram atuação mais destacada, embora a Igreja, que em outros tempos fora o principal núcleo de produção do saber erudito, se posicionasse contra a renovação intelectual, o que a fez perder mais prestígio ainda.

Convencidos de que suas ideias trariam reformas significativas para o homem, vários iluministas foram severos críticos do catolicismo, e alguns chegaram a defender religiões baseadas na razão. Havia entre eles os deístas, que acreditavam em um Deus totalmente distante do homem, com o qual não havia nenhuma possibilidade de comunicação, e os panteístas, que sustentavam a presença de Deus em todas as coisas naturais. Tanto uns quanto outros negaram qualquer valor ao papel das instituições religiosas.

O inglês John Tholand (1670-1722) foi um dos defensores da ideia de que as religiões ultrapassavam os limites da racionalidade. Segundo ele, a razão era o único caminho do bom-senso, e não os mistérios religiosos revelados por profetas.

Como as universidades eram controladas pelo clero, os intelectuais procuraram novos espaços para divulgar suas ideias, livres de perseguições ou censura. Muitas sociedades ou clubes foram então organizados com esse objetivo. A maçonaria teve uma atuação destacada nesse sentido, e suas lojas constituíram importantes pontos de encontro para os simpatizantes do Iluminismo. Em meados do século XVIII, havia cerca de 50 mil membros de lojas maçônicas em toda a Europa.

[...]

A repercussão das ideias liberais ultrapassou as fronteiras da Europa, chegando também às colônias da América, onde deram grande alento aos movimentos de independência. No Brasil, fizeram parte dos ideais dos revolucionários mineiros, em 1789, e baianos, em 1798. A independência dos Estados Unidos da América (1776) antecedeu a Revolução Francesa (1789), a qual representava a maior vitória dos ideais ilustrados.

REZENDE, Antonio Paulo; DIDIER, Maria Thereza. Rumos da História: História geral e do Brasil. São Paulo: Atual, 2005. p. 279-282, 291.

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