"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 22 de agosto de 2015

Os não romanos entre os romanos

Vercingetórix joga suas armas aos pés de Julio César, Lionel Royer

Quem não conhece Asterix, Obelix e sua turma de gauleses que combatem os romanos nas famosas histórias em quadrinhos francesas traduzidas em inúmeros países? Quem não conhece Jesus e os apóstolos, também da época dos antigos romanos? Eram romanos ou não eram? [...]

Os romanos conquistaram primeiro a Itália e, depois, toda a bacia do Mediterrâneo e, pouco a pouco, povos e mais povos foram sendo incorporados ao mundo romano. Ainda que esses outros povos fossem sendo considerados parte de Roma e que, até mesmo, a cidadania fosse concedida a indivíduos ou grupos inteiros, sempre muitos foram os não romanos. Dentre estes, os mais numerosos eram os escravos, muitas vezes provenientes dos lugares mais distantes de Roma. Ao se tornarem escravos deviam aprender a língua, os usos e costumes dos romanos, mas não deixavam de continuar com muitas de suas crenças e valores originais. Talvez o mais famoso exemplo seja o de Espártaco, homem nascido na Trácia, na Europa Oriental. Serviu ao exército romano, desertou e tornou-se líder de uma quadrilha. Tendo sido preso, foi vendido como escravo para um treinador de gladiadores. E, em 73 a.C., em Cápua, convenceu outros gladiadores a fugirem. A revolta espalhou-se e noventa mil escravos juntaram-se a eles, sob comando de Espártaco, derrotando os dois cônsules, em 72 a.C. Mas no ano seguinte, foram, finalmente, vencidos. Houve muitas outras revoltas e fugas, mas nenhuma tão grande quanto esta. [...]

Quando os romanos conquistaram os gregos, no século II a.C., encontraram uma civilização que acharam grandiosa. Passaram a estudar a língua e a Literatura gregas, a conhecer a Filosofia, a importar obras de arte e professores gregos. Os romanos de posses passaram a conhecer o grego até melhor do que o latim [...]. Os gregos, mesmo conquistados pelos romanos, não se preocupavam em aprender o latim de seus dominadores e, ao contrário, os romanos passaram a usar o grego em tudo o que se publicava no mundo de fala grega. A oriente, da Macedônia, passando pelo Peloponeso, Ásia Menor, Síria, Palestina e Egito, os romanos conviviam com o grego como língua oficial romana. Os gregos passaram, com o tempo, a se considerar romanos, mas nunca deixaram de ser também gregos, com língua e costumes próprios.

A maioria dos povos conquistados, contudo, não era assim tão respeitada pelos romanos. Os povos podiam continuar a usar suas línguas e praticar seus costumes, mas apenas o latim era aceito como veículo de comunicação oficial. Durante muitos séculos, várias línguas como o etrusco e o osco, na Itália; o celta, na Gália; o púnico, na África; o egípcio, no Egito; ou o aramaico, na Palestina, foram utilizadas pelo povo dessas regiões. Jesus e seus discípulos, por exemplo, falavam aramaico e a religião que praticavam nada tinha a ver com a dos romanos. Os evangelhos que tratam da vida de Jesus foram escritos em grego, mas Jesus não pregava nem em grego, nem em latim. A única frase que conhecemos de Jesus em sua língua original é aquela que disse na cruz antes de morrer: eloi, eloi, lamma sabacthani? "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" (Marcos, 15, 34). Um outro exemplo: Paulo, um rabino judeu de Tarso e que falava o grego, era cidadão romano, como se lê numa passagem do Novo Testamento, da Bíblia: Quando um tribuno foi prendê-lo, ele disse: "É-vos lícito açoitar um romano, sem ser condenado?" E, ouvindo isto, o centurião foi e anunciou ao tribuno, dizendo: "vê o que vais fazer, porque este homem é romano." E vindo o tribuno, disse-lhe: "dize-me, és tu romano?" E ele disse: "Sim". E respondeu o tribuno: "Eu, com grande soma de dinheiro, alcancei este direito de cidadania". Paulo disse: "Mas eu sou-o de nascimento". Esta passagem permite notar, ainda, pela fala do tribuno, que o destaque econômico permitia que se alcançasse a cidadania romana, pela política [...] de inclusão das elites locais ao mundo romano oficial.

Os gauleses conquistados tampouco falavam o latim. Com o passar do tempo, o mundo foi sendo transformado e os diferentes povos foram se misturando, os costumes se mesclando, em alguns lugares mais do que em outros. Eram muitos costumes, em constante interação.

FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2011. p. 124-6.

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