"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 2 de agosto de 2015

O baptismo do eunuco etíope

O baptismo do eunuco, Rembrandt

[...] o termo que se costuma traduzir por "eunuco" pode ter vários significados nos escritos arcaicos. Em português e noutras línguas modernas significa "homem castrado que se destinava à guarda das mulheres nos haréns", correspondendo à sua raiz grega que significa "guardião dos leitos". Na Antiguidade também se chamava assim ao secretário ou favorito de um rei, talvez porque também lhe podia vigiar o leito. Podemos então supor que nas versões actuais de textos milenares, como é o caso da Bíblia, o termo "eunuco" refere em geral o homem que copula com outros homens, quer seja hermafrodita, castrado ou tenha características sexuais normais. O próprio Jesus Cristo dá aos seus discípulos uma explicação um tanto ou quanto enigmática sobre este assunto:

"Disseram-lhe os discípulos: se tal é a condição do homem com a mulher, é preferível não se casar. Ele respondeu-lhes: nem todos podem entender assim, a não ser aqueles a quem é concedido. Porque existem eunucos que nasceram assim, eunucos que foram feitos pelos homens e eunucos que se fizeram a si próprios por amor ao reino dos céus. Quem puder entender, que entenda."

A explicação anterior é perfeita para entender uma história dos Actos dos Apóstolos, que ocorreu quando o fundamentalista judaico Paulo de Tarso devastava a comunidade cristã de Jerusalém. Um anjo do Senhor apareceu ao apóstolo Filipe dizendo-lhe para se dirigir para sul, pelo caminho que levava a Gaza. "Pôs-se logo a caminho", diz o texto bíblico, "e encontrou-se com um homem etíope, eunuco, ministro de Candace, rainha dos Etíopes, intendente de todos os seus tesouros.". O forasteiro regressava de uma peregrinação a Jerusalém no seu carro e lia um texto de Isaías em voz alta. Filipe aproximou-se e perguntou se o compreendia. "Ele respondeu-lhe: como vou compreendê-lo se ninguém me conduzir? E pediu a Filipe para subir e se sentar a seu lado" (Actos, 8: 27-31). Enquanto lhe explicava uma passagem bíblica, Filipe aproveitou para levar a água ao seu moinho e anunciou-lhe a boa nova trazida por Jesus.

Pouco depois, chegam a um lugar onde havia água e o eunuco perguntou-lhe se podia ser baptizado como cristão. E continua o texto do Novo Testamento: "Filipe disse: se acreditas de todo o coração, claro que podes. E (o outro), respondendo, disse: acredito que Jesus Cristo é o Filho de Deus. Mandou parar o carro e desceram ambos até à água, Filipe e o eunuco, e baptizou-o. Quando ambos regressavam, o Espírito do Senhor arrebatou Filipe e o eunuco nunca mais o viu, continuando alegre o seu caminho" (ibid, 37-39).

A inclusão nas Escrituras desse episódio do eunuco "alegre" é utilizada pelos movimentos gay cristãos como prova de a Igreja primitiva ter aceitado sem quaisquer problemas o baptismo dos homossexuais. Na nossa opinião e na de vários estudiosos mais autorizados, a questão é muito mais simples. A reviravolta doutrinal que o gesto de Filipe produziu em Jerusalém não se deveu tanto ao facto de o convertido se tratar de um eunuco, mas ao facto de ser um gentio, ou seja, um estrangeiro. O evangelista Lucas, autor dos Actos dos Apóstolos, não parece interessar-se especialmente pela tendência sexual do viajante, que menciona apenas para apresentar a personagem, nem na sua nacionalidade ou no seu cargo de intendente. Por outro lado, o apóstolo de Betsaida, ao dar o baptismo a um etíope, toma uma posição activa numa das principais controvérsias que ocupava na época os pais do cristianismo: seria a mensagem de Jesus Cristo apenas uma variante renovadora da tradição mosaica ou uma nova religião independente e ecuménica, que transcendia o âmbito do judaísmo? A resposta estava nas mãos do santo que, nessa altura, se dedicava a prejudicar os cristãos.

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Editorial Estampa, 2006. p. 86-89.

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