"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 27 de outubro de 2013

Os banquetes romanos

O muro é penhor de civilidade; o banquete é cerimônia de civilidade. Assim que se vê em suas terras, em seu caro retiro, Horácio convida uma amiga para jantar, sem dúvida uma liberta, cantora ou atriz conhecida. Pois o banquete, para todos os usos, é a circunstância em que o homem privado desfruta do que ele de fato é e o mostra veridicamente a seus pares. O banquete tinha tanta importância quanto a vida dos salões no século XVIII e mesmo quanto a corte no Ancien Regime. Os imperadores não tinham corte; viviam em seu "palácio" na colina do Palatino, à maneira dos nobres de Roma em suas mansões. Cercados de escravos e libertos (tanto que o palácio abrigava os diferentes serviços ministeriais); mas, caída a noite, jantavam com seus convidados, que eram senadores ou simples cidadãos cuja companhia apreciavam. Acabavam-se as honras "públicas" e o "governo" do patrimônio: à noite o homem privado desabrochava no banquete; até os pobres (hoi penêtes) — ou seja, nove décimos da população — tinham suas noites de festim. O homem privado esquecia tudo durante o banquete, menos sua eventual "profissão"; um indivíduo que fez voto de consagrar a vida à busca da sabedoria não festejava da mesma forma que o profano vulgo, e sim como filósofo. 


Cena de banquete: Escravos servem seus amos. 
Artista desconhecido. Afresco romano, Pompéia.

O banquete constituía uma arte. A etiqueta parece ter sido menos elaborada e rigorosa que a nossa. Em compensação, jantava-se com clientes e amigos de toda posição, tanto que a ordem de precedência era rigorosamente observada na distribuição dos leitos ao redor da mesa onde ficavam os pratos. Não havia verdadeiro festim sem leito, mesmo entre os pobres: só se comia sentado nas refeições comuns (nas casas simples a mãe de família, de pé, servia o pai à mesa). A comida nos pareceria ora oriental, ora medieval. Contém muitos temperos e molhos complicados. A carne é fervida antes de cozinhar ou assar — tanto que perde o sangue — e adoçada. A gama dos sabores favoritos situa-se no agridoce. Para beber, poderíamos escolher entre um vinho com gosto de marsala e um resinado, como hoje em dia na Grécia, todos cortados com água. "Reforça a dose", ordena a um escanção um poeta erótico de coração partido. Pois a melhor parte do jantar, a mais longa, é aquela em que se bebe; durante a primeira metade do jantar nada se faz senão comer sem beber; a segunda parte, em que se bebe sem comer, constitui o banquete propriamente dito (comissatio). É mais que um festim: uma pequena festa, onde cada qual deve manter seu personagem. Em sinal de festa, os convivas portam chapéus de flores ou "coroas" e usam perfume, quer dizer, estão untados de óleo perfumado (desconhecendo-se o álcool, o óleo era o solvente dos perfumes): os banquetes eram suntuosos e brilhantes, assim como as noites de amor. 


Cena de banquete (detalhe). 
Artista desconhecido. Afresco romano, Casa dos Amantes, Pompéia.

O banquete era muito mais que um banquete, e esperavam--se considerações gerais, temas elevados, recapitulações de atos pessoais; se o dono da casa tem um filósofo doméstico ou um preceptor dos filhos, ordena-lhe que tome a palavra; os interlúdios musicais (com danças e cantos), executados por profissionais contratados para a ocasião, podem dar mais vida à festa. O banquete constitui uma manifestação social equivalente ao prazer de beber — ou até maior — e por isso inspirou um gênero literário, o do "banquete", em que os homens de cultura, filósofos ou eruditos (grammatici), abordam temas elevados. Quando a sala de festim oferece desse modo um espetáculo mais de salão que de refeitório, o ideal do banquete se realiza e a confusão com um festejo popular já não é possível. "Beber" designava então os prazeres da mundanalidade, da cultura, e às vezes os encantos da amizade; pensadores e poetas também podiam filosofar sobre o vinho.


Dois cozinheiros preparando carne.
Artista desconhecido. Fragmento de afresco romano.

O povo conhecia com menos ostentação o prazer de estar junto; havia a taberna e os "colégios", ou confrarias. Como hoje em dia num país muçulmano, as pessoas encontravam seus semelhantes antes no barbeiro, nas termas e na taberna. Em Pompéia as tabernas (cauponae) são muito numerosas; ali se encontravam viajantes de passagem, se aquecem as refeições (nem todos os pobres têm fogão em casa) e cortejam-se as taberneiras enfeitadas com joias rutilantes; os desafios amorosos são inscritos nas paredes. Essas práticas populares não eram de bom-tom, e um notável perdia a reputação se o viam jantando numa taberna; não era sério viver na rua (citava-se um filósofo de antanho tão desregrado que nunca saía sem dinheiro: queria poder comprar todo prazer que lhe aparecesse). O poder imperial moveu uma guerrinha de quatro séculos às tabernas para impedir que servissem também de restaurante (thermopolium), pois era mais moral comer na própria casa.

VEYNE, Paul. (Org.) História da vida privada 1: do Império Romano ao ano 1000. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 170-173.

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