"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Esplendores de Potosí: o ciclo da prata

Potosí

Dizem que no apogeu da cidade de Potosí até as ferraduras dos cavalos eram de prata. De prata eram os altares das igrejas e as asas dos querubins nas procissões: em 1658, para a celebração do Corpus Christi, as ruas da cidade foram desempredadas, da matriz à igreja de Recoletos, e totalmente cobertas de barras de prata. Em Potosí, a prata ergueu templos e palácios, mosteiros e cassinos, deu motivo a tragédias e festas, derramou sangue e vinho, incendiou a cobiça e desencadeou o esbanjamento e a aventura. A espada e a cruz marchavam juntas na conquista e no butim colonial. Para arrebatar a prata da América, marcaram encontro em Potosí os capitães e os ascetas, os toureiros e os apóstolos, os soldados e os frades. Convertidas em pinhas e lingotes, as vísceras da rica montanha alimentaram, substancialmente, o desenvolvimento da Europa. "Vale um Peru" era o maior elogio que se podia fazer às pessoas ou às coisas depois que Pizarro se tornou dono de Cuzco. Mas a partir do descobrimento da montanha, Dom Quixote de la Mancha adverte Sancho com outras palavras: "Vale um Potosí". Veia jugular do vice-reinado, manancial de prata da América, Potosí possuía 120 mil habitantes segundo o censo de 1573. Apenas 28 anos tinham transcorrido desde que a cidade brotara entre os páramos andinos e já contava, como por artes da magia, com a mesma população de Londres e mais habitantes do que Sevilha, Madri, Roma ou Paris. Por volta de 1650, um novo censo adjudicava a Potosí 160 mil habitantes. Era uma das maiores e mais ricas cidades do mundo, dez vezes mais populosa do que Boston, num tempo em que Nova York nem sequer começara a ser chamada assim.

A história de Potosí não nascera com os espanhóis. Tempos antes da conquista, o inca Huayna Cápac tinha ouvido seus vassalos falarem no Sumaj Orcko, a montanha formosa, e por fim pôde vê-la quando fez com que o levassem, já enfermo, às termas de Tarapaya. Das choças de palha do povoado de Cantumarca, os olhos do inca contemplaram pela primeira vez aquele cone perfeito que se alçava, orgulhoso, entre os altos cumes da cordilheira. Ficou estupefato. As infinitas tonalidades avermelhadas, a forma esbelta e as gigantescas dimensões da montanha continuavam sendo motivo de admiração e assombro nos anos seguintes, mas o inca suspeitava de que em suas entranhas ela devia abrigar pedras preciosas e ricos metais, e lhe ocorreu acrescentar novos adornos ao Templo do Sol, em Cuzco. O ouro e a prata que os incas tiravam das minas de Colque Porco e Andacaba não saíam dos limites do reino: não serviam para negociar, apenas para adorar os deuses. Tão logo os primeiros indígenas começaram a escavar nos filões de prata da montanha formosa, uma voz cavernosa os derrubou. Era uma voz forte como o trovão, que saía das profundezas daquele esconso e dizia, em quíchua: "Não é para vocês; Deus reserva essas riquezas para os que vêm de longe". Os índios fugiram, espavoridos, e o inca abandonou a montanha. Antes, mudou seu nome. A montanha passou a chamar-se Potojsí, que significa: "Troveja, rebenta e explode".

"Os que vêm de longe" não demoraram a aparecer. Abriram caminho os capitães da conquista. Huayna Cápac já não vivia quando chegaram. Em 1545, o índio Huallpa seguia as pegadas de uma lhama fugida e foi obrigado a passar a noite na montanha. Para não morrer de frio, fez fogo. A fogueira iluminou uma pedra branca e brilhante. Era prata pura. Precipitou-se a avalanche espanhola.

Fluiu a riqueza, O imperador Carlos V deu imediatos sinais de gratidão, outorgando a Potosí o título de Vila Imperial e um escudo de armas com esta inscrição: "Sou o rico Potosí, do mundo sou o tesouro, sou o rei das montanhas e a inveja dos reis". Apenas onze anos depois do achado de Huallpa, já a recém-nascida Vila Imperial celebrava a coroação de Felipe II com festas que duraram 24 dias e custaram 8 milhões de pesos fortes. Choviam os caçadores de tesouros na inóspita paisagem. A montanha, com quase 5 mil metros de altura, era o mais poderoso imã, mas a seus pés a vida era dura, inclemente: pagava-se o frio como se um imposto fosse, e num abrir e fechar de olhos uma sociedade rica e desordenada brotou em Potosí junto com a prata. Auge e turbulência do metal: Potosí passou a ser o "nervo principal do reino", na definição do vice-rei Furtado de Mendonça. No começo do século XVII, a cidade já contava com 36 igrejas esplendidamente ornamentadas, outros tantos cassinos e quatorze escolas de dança. Os salões, os teatros e os tablados para festas exibiam riquíssimos tapetes, cortinados, brasões e obras de ourivesaria; das sacadas das casas pendiam damascos coloridos e panos entrelaçados de ouro e prata. As sedas e outros tecidos vinham de Granada, Flandres e Calábria; os chapéus, de Paris e Londres; os diamantes, do Ceilão; as pedras preciosas, da Índia; as pérolas, do Paraná; as meias, de Nápoles; os cristais, de Veneza; as alcatifas, da Pérsia; os perfumes, da Arábia, e a porcelana, da China. As damas brilhavam com suas pedrarias, diamantes, rubis, pérolas, e os cavalheiros ostentavam tecidos bordados da Holanda. Às touradas seguiam-se jogos de adivinhação e nunca faltavam duelos de estilo medieval, disputas de amor e orgulho, os elmos de ferro incrustados de esmeraldas e vistosas plumas, selas e estribos com filigranas de ouro, espadas de Toledo e potros chilenos luxuosamente ajaezados.

Em 1579, queixava-se o ouvidor Matienzo: "Nunca faltam novidades, sem-vergonhices e atrevimentos". Nessa época, já havia em Potosí 800 jogadores profissionais e 120 prostitutas célebres, cujos resplandecentes salões eram frequentados por mineiros ricos. Em 1609, as festas do Santíssimo Sacramento foram celebrados com seis dias de comédias e seis noites de máscaras, oito dias de touradas e três de saraus, dois de torneios e outras comemorações.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 40-42.

Nenhum comentário:

Postar um comentário