"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

As formas de controlar os costumes na Idade Moderna

A forma tradicional de controlar os costumes. Durante muito tempo era comum o controle dos costumes pela comunidade. A censura se manifestava particularmente nas ocasiões especiais, como nos casamentos. Mas o comportamento das moças solteiras e a relação entre marido e mulher, por exemplo, também estavam sob o olhar atento dos membros da comunidade. O indivíduo, mesmo depois da morte, não escapava de ser censurado publicamente nas cerimônias fúnebres.

Essa censura pública era mais comum nos vilarejos, embora ocorresse também nos bairros urbanos.

A maneira mais comum de punir a infração ao costume era divulgá-la, realçá-la publicamente, expondo os infratores à jocosa censura pública. [...]

[...]

Viúvos e viúvas que se casavam novamente eram vítimas de uma série de ações coletivas: encenações maldosas, desfiles, zombarias variadas na porta das suas casas etc. O casal, por ocasião das núpcias, podia ser alvejado com excrementos de animais, ser atirado na lama ou obrigado a desfilar pela aldeia montado em um asno.

Condenáveis também eram os casamentos entre pessoas de diferentes estratos sociais. [...]

Condenava-se ainda o casamento de uma pessoa com forasteiros. Parecia haver um sentimento de que as mulheres de uma localidade pertenciam aos homens dessa mesma localidade.

Um outro casamento condenado e sujeito a situações constrangedoras e humilhantes era o de pessoas com grandes diferenças de idade.

O marido que apanhava da mulher ou por ela era dominado também sofria hostilidades da comunidade. A mulher que arrancava o marido que estava bebendo ou jogando na taverna e o arrastava para casa provocava igualmente uma reação da comunidade. Encenações do episódio eram feitas debaixo da janela do casal. Versos alusivos ao comportamento da mulher eram cantados e acompanhados de sons de cornetas e tambores.

O marido traído também era desprezado. Armavam-se verdadeiras "cortes" para encenarem julgamentos satíricos sobre os suspeitos. Promoviam-se também, em determinadas épocas do ano, desfiles com esses indivíduos pelas ruas do vilarejo e arredores.

As alcoviteiras sofriam a mesma censura. Sob apupos e acompanhadas de um ruidoso cortejo, eram obrigadas a desfilar pelas ruas montadas de costas em um asno.

O comportamento das jovens também sofria a censura popular. [...] Uma planta com muitos espinhos, transportada de outro lugar e fincada ao lado de uma residência, significava que a moça que ali morava era orgulhosa, não deixava ninguém se aproximar dela. [...]

Todos esses rituais, referentes ao comportamento das moças, à autoridade dos maridos e aos casamentos adequados e inadequados, lembravam aos membros da sociedade qual era o comportamento que se esperava deles. Os rituais expressavam uma indignidade sobre a qual a população estava de acordo. O rito denunciava o que, na verdade, todos já sabiam. A denúncia era ao mesmo tempo o castigo, e este se tornava mais rigoroso quando as vítimas se recusavam a negociar.

Negociar significava aceitar a censura, participar dela de uma maneira conformada. Uma dessas maneiras era convidar todos para beber. Pagar bebidas era uma maneira de mostrar que se aceitava a censura e de se confraternizar com os promotores do ritual. Assim, era possível transformar o ritual punitivo em festivo. Tornava-se festa sem perder o caráter punitivo.

Os agentes da censura. Quem eram os participantes desses rituais que ridicularizavam e censuravam as pessoas com comportamento considerado inadequado em relação ao casamento e à sexualidade?

A regra, não sem exceções, era que os agentes e promotores da censura ritual fossem os jovens. Eram eles que promoviam as algazarras, extorquiam as vítimas obrigando-as a pagar bebidas e comidas, encenavam os episódios que queriam ridicularizar, organizavam os desfiles satíricos, os rituais da morte e os tribunais que julgavam os maridos traídos.

Por que esse papel cabia aos jovens? Por que eram eles os detentores da expressão ritual da censura coletiva?

Os rituais, para terem o efeito de censura e punição, precisavam ser exagerados. Lembravam a ordem tradicional a ser seguida por meio da desordem momentânea. Os excessos necessários à eficácia do ritual são mais aceitáveis se forem feitos pelos jovens. A tolerância com a juventude se prendia ao fato de que ela faz algo que também já fizemos. O que é próprio da juventude não ficaria bem para o senhor respeitável da comunidade.

Dessa forma, a juventude era o agente da censura da comunidade contra os que ameaçavam a ordem tradicional com um comportamento inadequado. [...] Uma perversão da ordem na busca do divertimento e do prazer era uma norma de vida para os jovens, que, no entanto, se dedicavam a punir os outros.

De uma outra forma, as mulheres também desempenhavam um enorme papel no controle social. Grupos de mulheres funcionavam, por meio de sutis mecanismos de exclusão, como censores. A mulher de "má conduta" sofria múltiplas discriminações no sentido de excluí-la do convívio social mais amplo na comunidade.

Nesse sentido, as mulheres, alvos privilegiados da censura social, agiam como censoras de si mesmas, contribuindo para a manutenção de uma moral social da qual eram as principais vítimas.

A imagem mostra a ação coletiva de censura aos costumes. Vemos os maridos traídos sendo vítimas de um festivo ritual popular. William Hogarth


A reação contra a censura coletiva. Essa forma de controle social, com mecanismos criados pela própria comunidade, sofreu, ao longo da Idade Moderna na Europa, a concorrência do poder do Estado. Do século XIV ao XVIII esses ritos e práticas passaram a receber a oposição dos poderes religiosos e civis, ambos representantes do Estado. [...] durante o Antigo Regime, nos diversos países europeus, o poder religioso estava associado ao poder político do Estado, tanto nos países protestantes como nos católicos.

As autoridades civis e religiosas, principalmente a partir do século XVII, se uniram para, em nome da ordem e da decência, proibir as algazarras populares organizadas por ocasião dos casamentos, brigas entre maridos e mulheres, cerimônias fúnebres.

A família burguesa começou, cada vez mais intensamente, a apresentar queixa às autoridades contra a interferência em sua vida familiar e privada. Aos poucos ela parecia se convencer de que tinha direito a uma vida privada, longe da censura pública. Isso está ligado ao processo de urbanização e de fortalecimento do Estado. Os agentes da justiça, os padres e a polícia pouco a pouco substituem o controle coletivo do comportamento social pelo poder da lei, pela autoridade pública.

[...]

Pastor de almas e guardião das famílias. A tensão entre os costumes tradicionais e a nova ordem controlada pelo Estado se concentrou na figura do padre da paróquia, o vigário.

A disciplina dos seminários da Contrarreforma conseguiu unificar a posição desses padres sobre a religião e os costumes. Eles se colocavam, portanto, como os principais adversários das formas tradicionais de controle. Desde o final do século XVII o vigário de aldeia acumulou à sua função de ministro religioso a de representante da Monarquia. Ele registrava os batismos, casamentos e óbitos, tendo o dever de guardar essas informações de interesse do Estado. Além disso, depois da missa, lia para os fiéis os decretos e regulamentos governamentais, lembrando aos ouvintes o dever de obediência às determinações legais.

Nas regiões protestantes o ministro religioso assumiu funções semelhantes, funcionando como agente do poder do Estado e como pastor das almas. Assim, mantinha sobre os fiéis uma dupla vigilância, a civil e a religiosa.

Esses religiosos tinham ainda nas mãos vários instrumentos punitivos. Podiam recusar a comunhão aos depravados e imorais, assim como interditar o cemitério ao sepultamento do libertino e do mau cristão.

Além disso, como instrumento de controle e como meio de intervir nos segredos da intimidade e do lar, havia o confessionário. Nesse espaço, principalmente por meio das mulheres e das jovens, o religioso tinha a dimensão dos perigos que ameaçavam a moral e a ordem pública.

[...]

O controle exercido pelos agentes do Estado e da religião era muito mais abrangente. Como adversários e concorrentes da censura tradicional, eles ampliaram, sistematizaram e intensificaram o controle sobre a vida privada dos indivíduos e das famílias.

Assim, o poder público embrenha-se cada vez mais nos segredos familiares. Além da censura à imoralidade, ao adultério e à ligação amorosa proibida, eram também passíveis de condenação a homossexualidade, o incesto, o concubinato, a poligamia e a sodomia.

Por tudo isso, a censura ritual se voltou contra o vigário e o ministro religioso, vistos como ameaça aos costumes tradicionais, na medida em que criavam novas formas de controle social.

A reação da juventude contra esse processo foi ostensiva. O padre e o ministro foram sumariamente vigiados pelos jovens, como também mais tarde o mestre-escola, outro agente do poder estatal. Com isso, procuravam encontrar deslizes sexuais ou de qualquer outra natureza que servissem para desmoralizar esses agentes. Esses deslizes eram temas para os ritos de censura tradicionais: desfiles, canções satíricas, encenações, julgamentos burlescos.

[...]

PEDRO, Antônio; SOUZA LIMA, Lizânias de. História sempre presente. São Paulo: FTD, 2010. p. 284-289.

Nenhum comentário:

Postar um comentário