"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Ideias e costumes novos em um quadro velho

Texto 1
A emancipação política do Brasil, ocorrida em 1822, apesar de ter sido promovida pela classe proprietária de terra e de gente [...], não deixou de impulsionar a emergência de novas ideias, bem como a alteração de costumes e valores culturais. [...]

[...] O recente país necessitava de uma estrutura jurídico-política própria, o que incentivou a elite econômica a formar os seus quadros de bacharéis em Direito, cujas principais faculdades localizavam-se em Olinda e São Paulo. Muitos desses bacharéis, no entanto, logo se transferiam para o Rio de Janeiro, objetivando notoriedade profissional e o ingresso na carreira política [...]. Entretanto, não só de advogados era composto o corpo parlamentar brasileiro; militares, grandes proprietários, clérigos e jornalistas também se faziam presentes. [...]

Com a expansão da imprensa e sua afirmação em todo o país [...], foi esse veículo de informação/formação um dos grandes responsáveis pela definição do perfil da identidade cultural brasileira. [...] através da imprensa [...] estabeleceram-se os parâmetros da brasilidade sustentados e reforçando princípios norteadores da Igreja católica, então a principal base ideológica do Império. [...]

O debate de ideias, contudo, ficou restrito a uma pequena parcela da população, ou melhor, à minoria letrada, que em 1875 correspondia a apenas 15,7% da população [...]. Dentre este percentual, podemos destacar o papel das mulheres, que, com o crescimento urbano datado da segunda metade do século XIX, passaram a frequentar salões de festas, consumir livros etc., e dos jovens estudantes que em futuro bem próximo iriam compor os quadros dirigentes do país, além de funcionários públicos e médios comerciantes.


Mulheres e escravos eram excluídos da cidadania política no Brasil imperial. Foto de 1860, Província de São Paulo

A vida na capital do Império também se modificou. Surgiram inovações nos serviços de transportes coletivos, destacando-se os bondes de tração animal.

[...]

Apesar da expansão e popularização do serviço de bondes, com ele coexistiriam os tradicionais tílburis, os faetontes, as caleças, as diligências e os coches.

[...]

Mas a vida urbana continuava sujeita a tragédias, como a febre amarela, os temporais na cidade do Rio de Janeiro, a Grande Seca de 1877 a 1879 - só no Ceará vitimou 60 mil pessoas - e a epidemia de bexiga em Petrópolis. O viver em cidades também envolvia a falta de trabalho, a sujeira das ruas, a escassez da água, o mau calçamento, a violência dos capoeiras, os crimes passionais, o trottoir das prostitutas e assaltos a residências ou nas ruas.

Mesmo assim os divertimentos se multiplicavam. Na cidade do Rio de Janeiro, cafés e confeitarias reuniam variada clientela, atraída pelas guloseimas e bebidas locais ou importadas. [...]

[...]

Bailes e saraus em casas de família e clubes tornaram-se cada vez mais animados. Ainda que o banho de mar se popularizasse, especialmente nos fins de semana, a palidez das mulheres prevalecia e, a partir de 1871, começou a ser disfarçada pelo uso do ruge, importado da Europa.

A sociedade continuava preconceituosa, não obstante se transformasse.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 581-584.


Texto 2
[Aos ingleses] deve-se a introdução do gosto pela residência em casas isoladas por jardins bem tratados, e longe do centro da cidade, frequentemente em contato direto com a natureza agreste; as transformações no interior mesmo das casas, com adoção de cômodos, novos arranjos, novos móveis e melhor higiene; o refinamento das maneiras de comer, com uso do garfo e da faca; modificações na moda [...]. Os produtos ingleses, louças e porcelanas, cristais e vidros, panelas de ferro, cutelaria e uma infinidade de outros objetos conquistaram as casas brasileiras e nelas se instalaram como mercadorias de qualidade superior.


Olga Pantaleão. A presença inglesa. In: Sérgio Buarque de Holanda, org. História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, 1970. t. 2. v. 1. p. 64.

Texto 3
Ainda que os senhores pudessem desejar - e às vezes exigir - que seus escravos trabalhassem dezoito horas por dia, os cativos precisavam de um descanso. No tempo que tinham para eles mesmos, reuniam-se nas ruas e mercados do Rio e dançavam nas praças nos dias de festa religiosa. Graças à diversidade étnica da cidade, criaram uma cultura afro-carioca nova que combinava muitas tradições africanas e luso-brasileiras. [...]

Os escravos do Rio cantavam em todas as ocasiões possíveis. Os grupos de carregadores cantavam em coro em suas línguas africanas enquanto trotavam pelas ruas com volumes sobre as cabeças. Às vezes, paravam para descansar, reunindo-se em torno de um cantor principal e cantando em grupo. [...]

Apesar da perseguição da polícia, os escravos cariocas realizavam muitas danças na cidade. Três das mais significativas eram o lundu, o batuque e a capoeira. Menos comumente descritas eram a bamboula, o guachambo, a jardineira e a dança dos velhos.

[...] Trabalhando nas ruas, nas praias e nos mercados, aprenderam a proteger suas mercadorias e a si mesmos dando golpes potentes com os pés e a cabeça, acabando por estilizá-los numa forma de dança.

KARASH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 292, 328-329 e 331.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Aprendendo com os índios

Índios Apiaká no rio Arinos, Hércules Florence

O sucesso da colonização portuguesa só foi possível com a consolidação do povoamento, garantido pela colaboração dos indígenas e o aprendizado de seus conhecimentos sobre a natureza. Num primeiro momento, os europeus tinham muitas deficiências diante do meio natural desconhecido, ao passo que os índios eram capazes de percorrer os caminhos, evitar animais perigosos, utilizar-se de frutas, plantas e raízes para sua alimentação, enfim, sabiam conviver com o ambiente a que estavam acostumados. Foi com os índios que os europeus aprenderam a caçar e pescar nas matas e rios brasileiros, a colher a mandioca (e livrar-se de seu veneno), a cultivar o milho, o fumo, a batata-doce, a alimentar-se com frutas e animais "exóticos", a lidar com os infernais insetos e com os caprichos do clima.

Muitos costumes indígenas foram incorporados, então, pelos colonos - agricultores, comerciantes, sertanistas, burocratas - que, algumas vezes, acharam por bem distanciar-se dos hábitos europeus inadequados à vida nas novas terras. Em alguns casos, adaptações foram feitas procurando harmonizar traços da cultura europeia com elementos da indígena.

Com relação à postura diante da natureza, havia, entretanto, uma diferença básica entre europeus e índios. Enquanto estes concebiam o homem como parte praticamente indistinta da natureza, enxergando o universo como um todo, os europeus, apoiados ideologicamente na tradição bíblica, que atribuía ao homem direito de vida e morte sobre os animais e plantas, acreditavam no ser humano como o senhor absoluto da natureza, com direito e poder de usufruir de seus recursos sem preocupar-se com as consequências predatórias e destrutivas desse tipo de exploração do meio ambiente.

E, finalmente, os europeus utilizaram-se dos índios como instrumento de apropriação dos recursos naturais. Por ocasião dos primeiros contatos e no início da colonização, em troca de objetos de metal e ferramentas, os índios atuaram na extração do pau-brasil e outros produtos desejados pelos comerciantes europeus, colaboraram no assentamento de povoações, na formação de pequenas roças e de grandes plantações, forneceram alimentos, animais e peles aos navegantes, aventureiros, missionários e colonos.

Foi com o auxílio dos saberes indígenas - senso de orientação, conhecimentos geográficos, capacidades desenvolvidas para andar adequadamente na mata e navegar com segurança nos rios - que os portugueses puderam desbravar o litoral e os sertões. A habilidade e a força dos indígenas para a corrida, o salto, a caça, a pesca e a  natação os tornava também muito úteis para os colonos. Revelaram-se grandes remadores e hábeis no manejo dos barcos a vela. Aprendiam ainda com facilidade ofícios como o de marceneiro, carpinteiro, oleiro, saleiro, carreiro e vaqueiro.

MESGRAVIS, Laima e PINSKY, Carla Bassanezi. O Brasil que os europeus encontraram. São Paulo: Contexto, 2000. p. 26-27.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Costumes indígenas: vida sexual, banhos, bebedeiras, família e educação


[...] uma das primeiras coisas que chamava a atenção dos europeus era a nudez dos índios. Oriundos de uma cultura na qual o uso de roupas pesadas que recobriam todo o corpo era a regra social e moral e o pudor era imprescindível, a nudez dos índios foi uma surpresa agradável para uns e chocante para outros. Segundo o Gênesis bíblico - referência fundamental da cultura europeia -, o primeiro efeito do pecado de Adão e Eva foi a vergonha da própria nudez e isto deu início ao hábito de os seres humanos cobrirem o corpo. O encontro de homens que andavam sem a mais leve noção de culpa, e mantinham costumes sexuais mais liberais que os dos europeus convenceu muitos destes de que se encontravam perante uma parcela da humanidade que não teria caído em pecado. Daí a racionalização posterior de que ao sul do Equador não existia pecado e que tudo era lícito tanto do ponto de vista sexual assim como as mais sanguinárias violências.

A nudez revelava a perfeição física generalizada entre os índios, e entre eles não se viam aleijados, pois eram enterrados vivos ao nascer.

A imagem mais antiga do indígena conhecida na Europa é a de Jean de Léry, tão bem descrita que podemos visualizá-la de imediato:

Se quiserdes agora figurar um índio, bastará imaginardes um homem nu, bem conformado e proporcionado de membros, inteiramente depilado, de cabelos tosquiados como já expliquei, com lábios e faces fendidos e enfeitados de ossos e pedras verdes, com orelhas perfuradas e igualmente adornadas, de corpo pintado, coxas e pernas riscadas de preto com o suco de jenipapo, e com colares de fragmentos de conchas penduradas ao pescoço. Colocai-lhe na mão seu arco e suas flechas e o veres retratado bem garboso ao vosso lado.

Outras vezes, os índios untavam o corpo ou partes dele com resinas e aplicavam penas verdes, amarelas ou vermelhas, com guizos de sementes nos pés.

Souza fala do costume de cortar os cabelos na testa e nas orelhas, deixando-os mais longos atrás. Outros arrepiavam o cabelo para cima com resina, pregavam peninhas amarelas e contas brancas. Como enfeite usavam, por vezes, saiotes de penas de ema, cocares de penas coloridas muito bem-feitos e colares de dentes de inimigos.

As mulheres não furavam os lábios, usavam sim braceletes e colares de contas de búzios ou de osso e pintavam o rosto com os mais variados desenhos. De maneira geral, seus enfeites eram bem mais discretos que os dos homens. Depilavam as sobrancelhas e o corpo e usavam cabelos longos, pelos quais tinham grande apreço.

[Banhos] Um dos costumes nativos que mais surpreenderam os europeus foi o de tomar banho todos os dias, e em alguns mais de uma vez, pois na Europa não havia esse costume. Ao contrário, lá acreditava-se que "muito banho" fazia mal à saúde.

Quando eram obrigados pelos brancos a usar roupas, muitos índios aí sim ficavam doentes; banhavam-se vestidos e demoravam a secar ou usavam panos não tão limpos nos quais proliferavam bactérias e fungos. Os índios resistiam em usar roupas alegando que atrapalhavam a realização de suas atividades.

[Bebedeiras] As bebedeiras rituais periódicas dos índios, que duravam vários dias durante os quais só bebiam, sem se alimentar, levavam-nos a um frenesi. Nessas ocasiões, agrediam-se mutuamente, resolvendo velhos agravos e, por vezes, chegavam a provocar até o incêndio da aldeia. O hábito de beber, a poligamia e a liberdade sexual das moças não eram censurados pelos colonos que os encorajavam e os adotavam. Os jesuítas, entretanto, percebendo a impossibilidade de converter e aculturar os índios sem o abandono ou controle desses hábitos, puseram-se a combatê-los incansavelmente pela catequese, chegando a apelar para o apoio da força militar dos administradores coloniais.

[Família e educação] A célula básica da aldeia era a família nuclear, que vivia em um espaço determinado juntamente com agregados eventuais (prisioneiros ou parentes). A maioria dos homens tinha apenas uma esposa, mas alguns, como os principais (chefes) e certos guerreiros e caçadores destacados, podiam desposar mais de uma mulher. Quanto mais esposas, mais vantagens para o homem que se beneficiava do trabalho delas. Cada esposa ocupava um espaço específico na cabana e tinha sua própria horta para cuidar.

[...]

Hierarquicamente, as mulheres eram inferiores aos homens e tinham de se submeter às vontades dos principais e dos mais velhos (pai, tio, marido). Quando necessário, eram dadas em casamento para o fortalecimento de alianças políticas.

[...]

Algumas nativas ofereciam favores sexuais aos portugueses em troca de produtos e enfeites.

Antes do casamento, diferentemente do pregado pela moral cristã, as índias tinham liberdade sexual e não precisavam preocupar-se em manter a virgindade, que não era um valor entre os nativos. Thévet registrou ser muito raro que, entre os nativos, uma jovem se casasse virgem. Após o casamento, entretanto, esperava-se que se mantivessem fiéis aos maridos.

Casar-se, conforme Léry, era simples: desejando unir-se a uma mulher, solteira ou viúva, um varão perguntava-lhe sobre sua vontade, se ela aceitasse, depois de obtida a permissão do pai ou do parente mais próximo, já eram considerados casados por todos, sem cerimônias ou promessas de união perpétua.

Espantava os europeus que o divórcio entre os índios pudesse acontecer simplesmente se um dos cônjuges assim decidisse. Relações sexuais entre parentes (irmãos, sobrinhos e tios) também não era considerado um delito muito grave. A homossexualidade masculina também era relativamente aceita. Muitos cronistas europeus, comparando a realidade dos costumes indígenas com suas verdades cristãs, acusaram os nativos de serem bárbaros e luxuriosos.

Todas as mulheres de uma aldeia tupinambá, por exemplo, acompanhavam um trabalho de parto que, em casos difíceis, também contaria com a participação do pai. Os recém-nascidos eram lavados e tinham seu nariz comprimido, depois eram untados com óleo e pintados. Depois de parir, a esposa descansava por dois ou três dias após os quais levantava-se para trabalhar. O pai permanecia na rede descansando, como se tivesse sido ele a parturiente, a fim de evitar os maus espíritos sobre si e a mulher e a morte do bebê.

Os filhos eram amamentados por mais de um ano pelo menos. As mães não deixavam seus bebês nem mesmo quando iam trabalhar na roça.


Para educar as crianças, os adultos preferiam utilizar-se do exemplo a empregar castigos físicos. Se viam seus filhos sendo castigados fisicamente por algum branco, zangavam-se e imediatamente procuravam levá-lo embora. O mesmo costume de respeitar a vontade do indivíduo para trabalhar estendia-se às crianças, e qualquer tentativa dos jesuítas de mudá-lo por meio de repreensões severas, gritos ou pancadas resultava na imediata reação dos pais indignados.

O total respeito por parte dos índios à vontade do indivíduo contra qualquer necessidade ou pressão da sociedade, com exceção de uma persuasão gentil, foi também interpretado pelos europeus como prova de sua animalidade, porque a submissão à autoridade paterna, do Estado e da Igreja eram consideradas como a característica fundamental da civilização.

MESGRAVIS, Laima e PINSKY, Carla Bassanaezi. O Brasil que os europeus encontraram. São Paulo: Contexto, 2000. p. 44-49.

Amor e sexualidade no mundo romano

Cena de amor. Afresco na Casa del Centenario, Pompéia

Amor é um tema delicado [...], varia tanto de sociedade a sociedade e de época a época. [...] as mulheres romanas, à diferença das gregas, não viviam tão apartadas e interagiam mais com os homens. [...] as sociedades patriarcais como a grega e a romana estavam baseadas no domínio masculino e alguns estudiosos chegam a afirmar que se trataria de "sociedades do estupro". Os estudiosos divergem, no entanto, quanto à caracterização das relações entre homens e mulheres no mundo romano.

Todos concordam que as mulheres romanas tinham relativamente uma inserção social bastante ampla, participavam de banquetes e reuniões sociais importantes, à diferença das esposas gregas, tinham direito de propriedade e podiam ser até mesmo proprietárias de empresas. Embora, por definição, não pudessem votar ou ser eleitas, as inscrições encontradas na cidade de Pompéia mostram que as mulheres não se furtavam a apoiar, com cartazes, seus candidatos aos cargos públicos, o que está a demonstrar sua influência social. Também graças à Arqueologia, possuímos alguns documentos escritos por romanas [...]. Entre os documentos epigráficos escritos por mulheres, há poemas amorosos, tanto de lavra erudita como popular. [...]

[...]

Na literatura latina, as mulheres aparecem de forma contraditória. Muitos autores foram francamente misóginos, apresentando uma visão bastante crítica da mulher ainda que, mesmo nesses casos, se possa entrever a importância social das mulheres. [...]

[...]

Mas nem todos os autores romanos eram misóginos, pelo contrário. Ovídio [...] escreveu:

Quero ver a mulher de olhos rendidos,
a exausta mulher que desfalece
e que por muito tempo não consente
que lhe toquem no corpo dorido de prazer.

[...] na elite romana, aceitava-se como natural que um homem mantivesse relações com mulheres e com homens, em especial, o patrão com seus escravos e escravas. [...]

Cena erótica: dois homens e uma mulher. Termas de Pompéia 

Sabemos, por meio de pinturas e grafites parietais, que os pobres namoravam, frequentavam prostíbulos. E há mesmo indícios de que havia mulheres de posses que pagavam pelos serviços de prostitutos.

Para os romanos, ricos ou pobres, a sexualidade também era intimamente ligada à religiosidade e, em particular, ao culto à fertilidade. Em toda a parte, encontravam-se objetos fálicos, nas paredes das casas, nos cruzamentos, como pingentes em colares, em anéis. As casas tinham, no telhado, falos nas extremidades [...]. Até mesmo as campainhas das casas romanas podiam ser em forma de um ou mais falos, que o visitante tinha de tocar para fazer o ruído e fazer-se notar. Essa presença generalizada de membros eretos causa, nos modernos, uma certa surpresa, um estranhamento de que os romanos não tivessem vergonha de tão explícita referência sexual. Para os romanos, contudo, o falo era associado à magia da reprodução e, por isso, era considerado um potente amuleto contra o mau-olhado e o azar. Sua presença nos limites, como no telhado, nas soleiras e nas campainhas, tinha essa função protetora contra as más intenções. As próprias relações sexuais, pelo mesmo motivo, eram consideradas abençoadas e propiciatórias e até mesmo a referência verbal ao ato sexual tinha essas conotações. Nós herdamos dos romanos a figa - que quer dizer vagina, em latim popular - como gesto que representa a relação sexual e que, por isso, traz a sorte. [...]

FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2011. p. 103-108. (Repensando a História).

Amor e sexualidade no mundo grego

Menino servindo vinho em um banquete. Cerâmica, ca. 460-450 a.C.
[...] Sexualidade é uma noção inventada modernamente, e refere-se à maneira como se expressam as relações entre os sexos e os seus desejos. Amor e sexualidade estão relacionados um ao outro e, no mundo ocidental em que vivemos, não se pode separar estes temas de dois aspectos que não existiam na Antiguidade grega: a herança judaico-cristã e o discurso científico surgido no século XIX d.C. No primeiro caso, as relações sexuais ligam-se tradicionalmente às noções de culpa e pecado, de abstinência e controle dos desejos, considerados, de uma maneira ou de outra, ligados às forças do demônio. A noção de pecado original é outro importante, pois se associa a queda do homem do Paraíso à descoberta da nudez e, portanto, da sexualidade. [...]


O homem com barba está representado em um tradicional gesto de cortejo pederasta, com uma mão procurando acariciar ao jovem e a outra tocando sua barbilla olhando aos olhos. Detalhe de uma ânfora ateniense do século V a.C. 

No Cristianismo tradicional, justifica-se a relação sexual apenas e tão somente para a reprodução e, por isso, o casamento foi, durante muitos séculos, algo somente tolerado pela Igreja. O Protestantismo, que viria a abençoar a procriação, seguia uma tradição também presente na Bíblia, segundo a qual o homem devia "crescer e multiplicar-se". Contudo, mesmo aqui, justifica-se a relação sexual apenas na busca da procriação. Isto não significa que não tenha, sempre, havido muitas práticas diversas destas aqui expostas, mas o que importa é que havia um padrão moral que, ao não ser seguido, implicava uma sanção extrema, por parte das autoridades eclesiásticas, mas também internas. A internalização da culpa associada ao sexo fez com que, ainda que o comportamento fosse muito diverso, o sentimento de culpa fosse muito forte. A partir do século XIX d.C., houve um crescente interesse do homem pelo estudo das ciências, e a sexualidade humana passou a ser considerada algo não do meio divino, mas do animal. A inserção do ser humano no reino animal foi capital para se encarar a sexualidade como instintiva e, em muitos aspectos, semelhante àquela dos outros animais. Retirada, aparentemente apenas, a culpa, a sexualidade passou a ser considerada algo cientificamente estudável. [...] Criaram-se, então, conceitos novos, como o de "homossexualidade", tal como o usamos no dia-a-dia, ou seja, aplicado a pessoas que se relacionam com outras do mesmo sexo. Com o tempo, e como decorrência surgiram conceitos como "heterossexualidade" e "bissexualidade". O que nos interessa é que, hoje em dia, somos herdeiros de duas concepções bastante diversas de sexualidade: aquela tradicional, ligada às sanções morais da religião, e a abordagem derivada da ciência. Para que entendamos como era a sexualidade grega, temos que nos despir destas duas concepções que não existiam no mundo grego.

As relações sexuais entre os humanos não existem fora da cultura [...].

[...] nas elites, os casamentos eram arranjados e não ocorriam, portanto, por amor, tal como nós o concebemos, entre duas pessoas que, por comunhão de ideias e de atrações, namoram e se casam. A própria ideia de beleza feminina era completamente diferente da nossa. Em primeiro lugar, os maridos gregos procuravam nas mulheres a perfeição física, ou seja, a ausência de defeitos e, em seguida, uma robustez que permitisse antever bons partos. Pele clara demonstrava a beleza, significando que a mulher não era obrigada a se expor ao sol para o trabalho e ficava reclusa no gineceu, como se chamavam os aposentos femininos. A timidez era também considerada uma qualidade para uma boa esposa. Na escolha dos futuros maridos para as filhas, a força era valorizada, mas ainda mais o era a coragem e sua inserção social, sua posição. Isto tudo se dava entre a gente "de bem", pois, para a imensa maioria de cidadãos mais simples, o casamento, mais do que uma união de famílias e de propriedades, era uma maneira de conseguir sobreviver trabalhando em conjunto.

Na elite, o sistema familiar era patriarcal e fortemente limitador da liberdade das mulheres. Um de seus traços mais marcantes era a separação muito clara entre o mundo feminino e o masculino, aquele voltado para a casa e para a reprodução e este para a vida em sociedade.

Desde tempos antigos, antes do uso da escrita alfabética, na sociedade homérica, já existia entre os gregos o conceito de "amor nobre", aquele entre homens. Isso mesmo, "nobre", porque baseado nas afinidades de ideias, na relação de aprendizado, a chamada pederastia. Este nome indica que se trata de uma relação "pedagógica", ou seja, de educação, de uma relação entre professor e aluno. (em grego, menino é paidos, palavra da qual derivam pederastia e pedagogia). Havia, pois, relações sexuais e amorosa entre adultos e meninos imberbes sem que, no entanto, houvesse a culpa (que, como vimos, se origina do Cristianismo), ou a "homossexualidade", no sentido de relação exclusiva entre homens. Esses homens, em primeiro lugar, eram considerados homens, não eram classificados como uma outra categoria, como hoje seriam os gays. Em segundo lugar, este tipo de comportamento era generalizado entre a elite grega e não era exceção, era a regra. Por isso mesmo, os romanos se referiam ao amor entre homens como "amor à grega". Em terceiro lugar, esses homens não deixavam de se relacionar com mulheres; antes do casamento, mantinham relações com as hetairas, "companheiras" de banquetes, que, obviamente, não seriam as esposas legítimas. Nesses banquetes, comia-se, bebia-se e, principalmente, conversava-se, filosofava-se, mas havia também relações sexuais que envolviam tanto homens entre si como com as hetairas, enfim, verdadeiras orgias. Um poema de Alceu é claro a este respeito: "Que alguém me traga o belo Menón, se querem que eu desfrute o banquete".

Os casados não deixavam de se preocupar com a reprodução da família. Porém, podia-se, ainda, manter relações sexuais com os escravos, homens ou mulheres.

Havia, pois, na Grécia Antiga, diversos tipos de relações sexuais e amorosas concomitantes e socialmente bem-aceitas.

[...] os gregos não sentiam culpa, nem encaravam o sexo como algo cientificamente analisável: para eles o sexo era algo ligado à natureza das coisas e, portanto, às forças divinas. Não é à toa que acreditassem em diversos deuses ligados à sexualidade e ao amor: Afrodite, a Vênus dos romanos, era, sem dúvida, considerada a deusa mais importante. Por isso mesmo, a palavra para designar as relações amorosas era, em geral, aphrodisia, "o que está sob domínio de Afrodite".

Nem todos se comportavam sexualmente do mesmo modo. A imensa maioria de camponeses não participava da cultura sexual da elite, embora, mesmo entre eles, não houvesse qualquer reprovação moral às eventuais relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo [...].

Havia, entretanto, críticas sociais a dois tipos de comportamentos gerados, em ambos os casos, pelo descontrole. Deixar-se levar pelos desejos sexuais, caso isso implicasse atitudes consideradas pouco apropriadas, como uma paixão incontrolável, era condenado. Nesse caso, a reprovação poderia recair também sobre o amor desenfreado por alguém de outro sexo, mas isto era menos provável, tendo em vista as distâncias intelectuais entre homens e mulheres. Um segundo comportamento moralmente condenável era o descontrole que levava, no homem, aos modos efeminados, considerados falta de moderação.

FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2011. p. 52-56. (Repensando a História).

segunda-feira, 18 de abril de 2011

A medida do tempo

O primeiro instrumento utilizado para medir o tempo existe desde dez séculos antes de Cristo: o gnômon, um relógio de sol. Depois dele vieram a clepsidra, que utilizava água para registrar o passar do tempo, a ampulheta, que usava areia, até a invenção do relógio de rodas no século X. Em 1370, o artesão Henrique Vick instalou em Paris o primeiro relógio mecânico, que pesava algumas toneladas.

Foi apenas em 1583 que Galileu Galilei, que elaborava seus cálculos medindo o tempo pelas batidas do coração, descobriu as leis do pêndulo, a partir do qual a técnica relojoeira evoluiu. A existência de relógios adornando lares e salões reais, torres de igrejas e castelos, não estava, no entanto, vinculada ao tempo preciso que poderiam marcar, eram simples objetos para ornamento e ostentação. No século XVII surgiu o primeiro relógio com ponteiro de minutos, mas o relógio com marcador de segundos surgiu somente no século XVIII.

No entanto, esses instrumentos eram utilizados para medir tempos longos. As pessoas da Antiguidade, da Idade Média e mesmo da Idade Moderna não tinham a mesma noção de tempo que temos na contemporaneidade, em que nos preocupamos em medir as horas, os minutos, os segundos, os milésimos de segundo, etc. A noção de tempo que tinham estava vinculada ao intervalo necessário para a realização de uma tarefa: plantar, colher, alimentar os animais; ou então, à passagem de um dia para outro e de uma estação para outra.

Foi somente com a consolidação da sociedade industrial e urbana, no século XIX, que a humanidade passou a preocupar-se com a marcação precisa do tempo. A passagem da vida no campo para a predominância da vida na cidade e a expansão do trabalho assalariado, fizeram com que ocorresse uma mudança no ritmo de vida das pessoas, que se tornou mais acelerado e sistematicamente organizado, passando a existir a necessidade de controlar o transcorrer do tempo.

SCHIMIDT, Dora. Historiar: Fazendo, Contando e Narrando a História. São Paulo: Scipione, 2004.

Vida cotidiana nas treze colônias inglesas da América do Norte

Puritanos indo à igreja, Boughton

A família das colônias em muito se assemelhava às famílias europeias. Havia uma média de sete filhos por casa, com uma alta taxa de mortalidade infantil. A autoridade residia no pai, mas todos os membros da família deveriam trabalhar.

As mulheres tinham trabalhos dentro e fora de casa. Por suas mãos a família se vestia, comia e obtinha iluminação, tendo em vista que tecidos, alimentos e velas eram geralmente produção caseira. No século XVIII, as mulheres das colônias dificilmente ficavam solteiras, casando-se por volta dos 24 anos - bem mais tarde que as mulheres europeias do período. Já no século XIX, o autor francês Alexis de Tocqueville notaria que as mulheres da América eram muito mais liberadas do que as europeias.

A História tradicional preocupou-se pouco com a vida das pessoas anônimas, guardando para si os atos dos reis e figuras notáveis. Mesmo assim, por meio de poucos documentos, podemos reconstituir uma parte da vida cotidiana. O viajante francês Durant de Dauphiné descreveu, por exemplo, um casamento na Virgínia de 1765:

Havia cerca de cem pessoas convidadas, várias delas de boa classe, e algumas damas, bem vestidas e agradáveis à vista. Mesmo sendo o mês de novembro, o banquete realizou-se debaixo das árvores. Era um dia esplêndido. Éramos oitenta na primeira mesa e nos serviam carnes de todo o tipo e em uma abundância, que, estou seguro, havia suficiente para um regimento de quinhentos homens [...].

Prossegue o cronista relatando a falta de vinho, substituído por cerveja, cidra e ponche. Temos até a receita desse ponche: três partes de cerveja, três de brandy, um quilo e meio de açúcar e um pouco de noz-moscada e canela.

O banquete começava por volta das duas da tarde e durava até noite alta. As mulheres dormiam dentro da casa e os homens pela rua e no celeiro. Quase todos pernoitavam no anfitrião e retornavam para suas casas no dia seguinte.

As mulheres brancas gozavam de boa fama entre os viajantes que visitavam a América. Lord Adam, um inglês visitando os EUA em 1765, descreve-as como diligentes, excelentes esposas e boas para criar família.

Apesar dos elogios, as mulheres não tinham identidade legal. Sua vida transcorria à sombra do pai e do marido. O divórcio foi escasso nas colônias. A maior parte das mulheres casava-se uma única vez.

O universo puritano dividia a existência humana entre infância e idade adulta, sem intermediários. Assim, depois dos sete anos de idade, as crianças eram vestidas como adultos pequenos. Aprender a ler e escrever e o ofício dos pais era, basicamente, a educação que os pequenos recebiam. As crianças tinham várias tarefas na casa colonial, concebida como uma microcomunidade de trabalho.

Mesmo com o desenvolvimento do comércio e das atividades manufatureiras, grande parte da população ligava-se ao campo; a maioria dos homens, portanto, dedicava-se à agricultura.

Em uma cultura prática, os objetos também são, acima de tudo, práticos. Casas geralmente pequenas, camas compartilhadas por várias crianças. Banheiro exterior à habitação. Poucos móveis.

As roupas eram [...] confeccionadas em casa. A sociedade puritana, em particular, vestia-se sobriamente, com tons escuros. As jóias eram quase inexistentes. Quase todos os homens andavam armados.

A vida cotidiana nas colônias inglesas da América do Norte revela uma cultura voltada à função e não à forma. Nas igrejas coloniais ibéricas, quadros ornamentados, altares cheios de detalhes, pinturas - tudo destacava uma forma opulenta que devia levar a Deus. As igrejas da América anglo-saxônica eram despojadas, com bancos para os fiéis, um local elevado para a pregação do pastor (o púlpito) e um órgão. As igrejas puritanas, notadamente, tinham o destaque para o púlpito, ao contrário das católicas, que destacavam o altar.

Batismo de Pocahontas, John Gadsby Chapman

Em um mundo que se dedicava pouco às diversões, o anglo-saxão costumava ligar trabalho e lazer. As reuniões festivas dos colonos tinham, quase sempre, um objetivo prático: construir um celeiro, preparar conservas etc. A festa misturava-se ao trabalho.

Em 1759, o clérigo britânico Burnaby descreveu Williamsburg (na Virgínia) como uma cidade de duzentas casas, ruas paralelas, praça ao centro e construções de madeira. O autor destaca a simplicidade dos edifícios públicos, à exceção do palácio governamental. A cidade só ficava mais "animada" em época de assembléias, quando a população rural se destinava a ela.

Nos relatos da vida cotidiana nas colônias há um princípio prático que volta com insistência. Tanto na vida cultural como na econômica, as populações das colônias dedicaram-se pouco a atividades de especulação filosófica ou artística. Poucos documentos ilustrariam tão bem essa característica como uma carta de John Adams, em 1780. Residindo em Paris, escrevia ele:

Eu poderia encher volumes com descrições de templos e palácios, pinturas, esculturas, tapeçarias e porcelanas - se me sobrasse tempo. Mas não poderia fazer isso sem negligenciar os meus deveres... Devo estudar política e guerra para que meus filhos possam ter a liberdade de estudar matemática e filosofia, geografia, história natural, arquitetura naval, navegação, comércio e agricultura, a fim de que dêem a seus filhos o direito de estudarem pintura, poesia, música, arquitetura, estatuária, tapeçaria e porcelana.

Logo, na mentalidade de Adams, que não constitui uma exceção nas colônias, a guerra era o primeiro item, depois viriam as atividades econômicas e, por fim, quando tudo isso estivesse feito, sobraria o espaço para a arte formal propriamente dita.

KARNAL, Leandro (org.). História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2010. p. 67-69.

Mecanismos da conquista colonial

Cena do filme "1492 - A conquista do paraíso", de Ridley Scott


[Mecanismos da conquista colonial] Violência, injustiça, hipocrisia caracterizam a conquista. Não se trata de colocar a história americana sob a égide da legenda negra. Simplesmente, e longe de qualquer julgamento moral, quer-se sublinhar que as formas, os métodos, as maneiras da conquista, mesmo que se queira (e, em certos casos extremos se pode) justificá-los em nome da moral corrente dos séculos XV e XVI, não continham em si nenhum germe de desenvolvimento positivo, pois destinados à mais completa involução, cujas consequências vencidos e vencedores teriam suportado juntos.

O poeta canta:
"La espada, la cruz y el hambre iban diezmando la familia salvage" (Pablo Neruda).

Talvez não seja inútil partir desses versos para tentar perceber por que elementos  - que encarados em seu conjunto constituem um mecanismo - foi possível a conquista da "mais rica e bela parte do Mundo" (Montaigne).

La espada...

A palavra nos introduz diretamente no cerne do assunto, pelo menos do seu aspecto militar, belicoso, sangrento.

Dos desenhos ingênuos do início do século XVI aos afrescos gigantescos de Diego Rivera no século XX, a desproporção dos armamentos entre as duas partes em luta foi frequentemente posta em relevo: aço contra madeira e couro; armas de longo alcance contra armas de alcance curto e muito curto. Além disso, concepções táticas e estratégicas elaboradas contra princípios bastante rudimentares... Mais precisamente, é necessário mostrar que a superioridade do armamento dos brancos sobre o dos índios se evidencia em três pontos essenciais:

a) pelas armas de fogo, uma grande superioridade de ordem psicológica e uma possibilidade maior de combate à distância;
b) pelos meios de transporte (o cavalo), uma incomparável superioridade;
c) pelo emprego do aço, armas de ataque e de defesa infinitamente mais resistentes.

Dizia Fernão Cortez: "Nós não tínhamos, afora Deus, nenhuma outra segurança além de nossos cavalos". (...)

Os espanhóis compreenderam muito depressa que a margem de segurança que lhes assegurava a técnica militar, tornava-se muito pequena e que teria sido muito fácil alterar um equilíbrio que, apesar das aparências, permaneceu frágil durante muito tempo. A conquista  efetuada pelas armas devia, portanto, ser mantida por outros meios.

...la cruz...

O primeiro gesto de Cristóvão Colombo, ao tomar posse da terra, foi fincar uma cruz. Tomada de posse (com bandeira dos reis de Espanha), justificação, arma, instrumento de reinado: a conquista espiritual das Américas começava.

Mas a religião também desempenhou um grande papel na conquista material, militar, do Novo Mundo. Um conjunto surpreendente de circunstâncias de ordem religiosa contribui poderosamente para tornar a tarefa mais fácil para os espanhóis. Com efeito, a chegada dos brancos foi percebida, tanto no México como no Peru, por toda uma série de sinais e de profecias que asseguravam a chegada iminente de novos deuses... ou de calamidades.

(...) Mas ainda há mais. Todo o mundo americano, na base de sua esfera religiosa, conheceu o mito de dois civilizadores que, após haverem estendido seus benefícios aos homens, desapareceram prometendo voltar. Isto nos ajuda a compreender como e por que a chegada dos homens brancos é percebida pelos índios através da rede do mito.

Inocência, ingenuidade, "selvagens".É fácil sorrir. Mas o terror - não se pode empregar outra palavra - que se apoderou dos americanos em 1939, por ocasião de uma célebre emissão radiofônica de Orson Welles anunciando aos seus concidadãos, como fato consumado, o terrífico desembarque dos marcianos na Terra, acaso não pode ajudar a compreender como a credulidade pode se alastrar mesmo entre "civilizados"?

O desconhecido, fortalecido pelo esquema mítico e religioso, contribuiu poderosamente para simplificar a "entrada em cena" dos espanhóis. Com certeza, a "divindade" pessoal dos conquistadores rapidamente perdeu o seu encanto e se apagou. Mas resta assinalar que a falência das religiões indígenas ajudou a penetração da cruz. Essa falência foi facilitada, também, pelo fato de que a autoridade religiosa e a autoridade política estavam frequentemente confundidas em uma mesma pessoa física, acarretando a queda do poder leigo, o desmoranamento do poder religioso e dos valores que representava. Assim, o poderoso cimento que a religião deveria ter representado para a manutenção dos Estados e das civlizações indígenas se dissolvia e deixava penetrar de maneira formal e superficial a nova religião. Penetração fácil: os batismos se sucedem e se multiplicam.

...y el hambre...

A fome. Não se deve, absolutamente, tomar esta palavra no sentido próprio: a subalimentação na América do Centro e do Sul não é um fato da conquista; os índios se alimentavam bem, ao menos até a metade do século XIX. Se nos servimos deste termo, é porque ele nos parece resumir bem todos os valores da cultura material que foram levantados pela conquista. Toda uma certa ordem de coisas foi levantada: ritmos de trabalho, tipos de cultura, tipos de vida. Tudo foi mudado ou, ao menos, consideravelmente modificado.

(...) Nessas condições é possível compreender melhor todos os aspectos da queda colossal da população indígena durante o século XVI. Sem penetrar no labirinto dos números, é possível afirmar que a metade, senão dois terços, da população indígena desapareceu em cerca de cinquenta anos. Pode-se verdadeiramente acreditar que houve matanza, assassinato premeditado? Seria ceder muito facilmente às explicações simplistas da legenda negra. Certamente houve assassinatos, assassinatos premeditados, mortes deliberadas, genocídio. É um fato que nenhuma legenda rosa pode apagar. E é um fato que nossa consciência moral nunca deve esquecer. Mas ao nível da explicação, da compreensão crítica deste enorme fenômeno que foi a conquista, isso não pode ser suficiente. É preciso lembrar que a simples transferência (por assim dizer) da população da costa para os altos planaltos, acarretando toda uma série de modificações no tipo de vida, determinava uma forte mortalidade, que as mudanças de ritmos de trabalho (mais do que as quantidades de trabalho exigidas) constituem um elemento desfavorável para a demografia indígena, que as mudanças de tipo higiênico também têm consequências negativas.

A desestruturação é, portanto, um elemento, e um elemento determinante, da conquista. (...)

Assim, por este mecanismo complicado, a conquista foi possível. Obra de um grupo muito pequeno de homens contra massas demográficas enormes, ela é absolutamente incompreensível se quisermos explicá-la com argumentos de "coragem", o que não deixou de ser feito, de "proteção divina", ou, ainda, por uma esmagadora inferioridade de civilização das populações vencidas. Trata-se, na realidade, de um mecanismo extremamente complexo, no qual, em proporções diferentes (inútil tentar estabelecer receitas absolutas) entraram em combinação os elementos que tentamos apresentar (...). ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 12-24. (Coleção Khronos, vol. 4).


[Os presunçosos conquistadores cristãos europeus] Uma cultura não deve ser avaliada pela quantidade de bens culturais que possui, nem tampouco pela capacidade intelectual de produzir conhecimentos semelhantes aos de povos mais sofisticados. Cada povo tem um modo próprio de viver, sua maneira de buscar o equilíbrio nas relações sociais e com a natureza.


Quando se forma um modelo a partir do pressuposto de que existem culturas superiores, criam-se preconceitos e justificam-se dominações e injustiças. Foi com base nessa ideia que os europeus tentaram legitimar a conquista, ou seja, acreditavam-se superiores aos povos aqui encontrados, consideravam-se donos de verdade, até mesmo emissários de Deus.

O historiador Ciro Flamarion Cardoso faz a seguinte análise das consequências dessa presunção:

Os conquistadores destruíram monumentos - grandes centros urbanos da última fase pré-colombiana foram transformados em cidades espanholas (México, Cuzco) - e obras de arte (fundidas quando confeccionadas com metais preciosos), queimaram quase todos os códices (manuscritos pré-colombianos, encontrados principalmente na área que hoje corresponde ao México centro-meridional). Mais grave ainda, a conquista e as primeiras fases da colonização significaram a destruição física da maioria absoluta dos índios, através de epidemias repetidas, escravidão e trabalhos forçados diversos, confisco de terras, ruptura violenta da organização social, familiar, religiosa, cultural. CARDOSO, Ciro Flamarion. América pré-colombiana. São Paulo: Brasilienese, 1984. p. 8.

domingo, 17 de abril de 2011

Uma "belle époque" não tão "belle"

Avenida Central - Rio de Janeiro da "belle époque"

Os anos posteriores à proclamação da República foram marcados por um turbilhão de transformações. A europeização, antes restrita ao ambiente doméstico, transforma-se agora em objeto - o melhor seria dizer "em obsessão" - de políticas públicas. Tal qual na maior parte do mundo ocidental, as cidades, prisões, escolas e hospitais brasileiros passam por um processo de mudança radical, em nome do controle e da aplicação de métodos científicos [...].

Por apresentar uma visão otimista do presente e do futuro, o período que se estendeu do final do século XIX ao início do século XX, foi caracterizado [...] como sendo uma belle époque. Havia, contudo, uma face sombria nesse período. O início da República conviveu com crises econômicas, marcadas por inflação, desemprego e superprodução de café. Tal situação, aliada à concentração de terras e à ausência de um sistema escolar abrangente, implicou que a maioria dos libertos passasse a viver em um estado de quase completo abandono. Esses últimos, além dos sofrimentos da pobreza, tiveram de enfrentar uma série de preconceitos cristalizados em instituições e leis., feitas para estigmatizá-los como subcidadãos, elementos sem direito à voz na sociedade brasileira.

Nesse sentido, é possível afirmar que a importação do ideário da belle époque esteve longe de ser ingênuo. A ciência europeia da época, que passou a ser vista como critério definidor das sociedades civilizadas, era marcada por visões racistas, na qual os brancos ocupavam o primeiro lugar do desenvolvimento humano, e os negros, o último. Conforme já foi observado por vários historiadores, a importação desse ideário tinha objetivos claros: após o 13 de maio deixava de existir a instituição que definia quem era pobre e rico, preto e branco, na sociedade brasileira. O racismo emergia assim como uma forma de controle, uma maneira de definir os papéis sociais e de reenquadrar, após a abolição da escravidão, os segmentos da população não identificados à tradição europeia.

[...]

Tal perspectiva de ver mestiços e negros como criminosos em potencial, também levou à ampliação dos poderes da polícia e à edificação de penitenciárias públicas, muito mais atentas do que as instituições repressivas do Império aos crimes cometidos por descendentes de africanos. Nem mesmo as crianças escaparam ao preconceito. Assim, em fins do século XIX, quando as instituições de caridade brasileiras registravam um crescimento vertiginoso do abandono de meninos e meninas negras, foi também o período que deu início à mudança do status jurídico da infância carente. Se até então os meninos e meninas sem família eram vistos como anjinhos a serem socorridos por instituições misericordiosas, eles passam agora a ser encarados como "menores abandonados", membros mirins das "classes perigosas", que deveriam ser isolados do convívio social, em asilos destinados a esse fim.

A política racista da belle époque desdobrou-se ainda no espaço urbano. Após 1889, seja nas cidades centrais do sistema político, como Rio de Janeiro, da economia, como São Paulo e - devido à expansão da borracha - Manaus e Belém, ou então em localidades relativamente periféricas, como Fortaleza, foi dado início ao que ficou conhecido como a era do bota-abaixo. O espaço urbano colonial, fruto de uma experiência secular de adaptação da arquitetura portuguesa aos trópicos, cede agora lugar a projetos de reurbanização orientados pela abertura de largas avenidas e pela imitação de prédios europeus; decisão levada a cabo pelos poderes públicos e que implicava desalojar milhares de famílias pobres - a maior parte delas de negros e mulatos -, expulsando-as de áreas centrais, onde habitavam em cortiços, para locais de difícil edificação. Dessa maneira, a mesma cidade que se embelezava era também aquela que inventava a favela, termo que nasce nessa época [...].

O racismo dos tempos iniciais da República voltou-se também ao combate de tradições culturais. A capoeira, assim como as várias formas de religiosidade africanas tornam-se, segundo o código penal de 1890, práticas criminosas, enquanto a culinária dos antigos escravos sofre severa condenação médica. Nem mesmo as festas escapam ao furor antiafricano. Em plena Salvador, os batuques e afoxés (na época denominados candomblés) são colocados na ilegalidade. Enquanto isso, em diversas outras cidades, o entrudo, comemoração pública na qual os negros participavam como coadjuvantes, nas festas de momo ou na condição de alvo de brincadeiras com água-de-cheiro, começa a perder adeptos entre a elite, que passa a frequentar os bailes de salão, com serpentina e confete, à moda veneziana.

[...]

Porém, nem todas as transformações ocorridas na belle époque foram assimiladas ou aceitas com tranquilidade. Tanto nas cidades quanto no meio rural, as intervenções do poder governamental deram origem a importantes levantes coletivos. [...] Assim, em 1871 [...] teve início na capital do Império uma dessas insurreições; seu motivo, aparentemente, era surpreendente: a população carioca voltava-se contra a adoção do novo sistema métrico, inspirado, como seria de se esperar, no modelo francês, baseado em medidas lineares de superfície e peso. Tal movimento ficou conhecido pelo revelador nome de Quebra-Quilos, estendendo-se até 1874, pelo interior nordestino, onde atingiu Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Rio Grande do Norte.

[...] a Quebra-Quilos pode ser considerada uma revolta social contra a pobreza e uma manifestação contra a europeização forçada. Tanto foi assim que, além de atacarem ricos comerciantes e fazendeiros, queimarem documentação de cartórios e câmaras, os revoltosos nunca deixaram de destruir, nas feiras e nos estabelecimentos por onde passavam, os novos pesos e medidas impostos pelo governo imperial.

Bem mais conhecida e com efeitos mais profundos foi a revolta de Canudos. Seu líder, Antônio Conselheiro, desde a década de 1870, pregava pelo sertão nordestino. Em 1893, em uma velha fazenda arruinada no interior baiano, Conselheiro abandona a vida errante e cria a comunidade de Belo Monte, aonde chegará a reunir 25 mil seguidores. Quem o acompanhava era a gente pobre do sertão, prostitutas e criminosos arrependidos, assim como muitos ex-escravos que não conseguiram se inserir na sociedade baiana pós-abolição. No mesmo ano em que é fundada a comunidade de Canudos, tem início um conflito entre Antônio Conselheiro e os poderes republicanos. [...] os conflitos evoluem para um confronto entre o mundo tradicional do sertão e a República.

[...] a comunidade de Belo Monte tornou-se alvo de uma implacável perseguição, conseguindo resistir a várias campanhas militares até finalmente, em 1897, ser derrotada e massacrada.

Alguns anos mais tarde, foi a vez de a população carioca levantar a bandeira contra a modernidade imposta de cima para baixo. Em 1904, um levante envolvendo milhares de pessoas e que deixou como saldo 23 mortos e 90 feridos tomou conta da capital republicana. O motivo dos revoltosos: protestar contra a vacinação antivaríola obrigatória. Uma vez mais, o levante popular apresenta características ambíguas, sendo ao mesmo tempo uma manifestação contra a pobreza urbana [...] como também uma resistência aos projetos autoritários liderados pelos higienistas, que subestimavam os temores populares frente ao possível contágio com outras doenças, como a sífilis ou mesmo que a vacina em si fosse um meio de propagação da varíola.

Nem mesmo para quem estava escondido no meio do mato, a belle époque deixou boas lembranças. Na Amazônia, observa-se, ao longo do século XIX, o renascimento da escravização indígena, enquanto nas áreas do Centro-Sul, a ampliação das estradas de ferro possibilitou a incorporação de terras afastadas do litoral à agricultura de exportação. No estado de São Paulo, em razão da expansão da fronteira oeste, registram-se, nas proximidades de Bauru, sucessivos massacres de caingangues; o mesmo ocorrendo em Santa Catarina, onde os xoklengs entram em processo acelerado de extermínio; fenômeno que estava longe de ser caso isolado e que levou, nas primeiras décadas do século XX, à quase extinção das populações indígenas brasileiras.

[...] paralelamente às rebeliões datadas desse período e ao trágico destino dos grupos indígenas, havia um outro movimento social em formação na belle époque, que, nos centros urbanos mais desenvolvidos economicamente, dará muita dor de cabeça à elite. Seu nome: anarquismo. Seu objetivo: destruir o mundo capitalista e burguês em processo de formação no BrasiL.

DEL PRIORE, Mary e VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 269-273, 275-280.

sábado, 16 de abril de 2011

Buda, Cristo e Maomé: o trio triunfante

Cristo, Velásquez

As três religiões universais a terem cruzado fronteiras, capazes de converter uma variedade de terras e povos, nasceram durante uma fase especial da história humana. Buda, Cristo e Maomé surgiram num espaço de tempo um pouco maior que 1000 anos. A primeira crença, o budismo, apareceu por volta do primeiro século antes de Cristo e a última, o Islã, emergiu no sétimo século depois de Cristo. Desde então, nenhuma nova versão de uma religião universal atingiu tamanho sucesso.

Essas religiões mundiais relfetiram uma transição da crença de que Deus era predominantemente um símbolo de medo para uma convicção de que o amor é divino. Elas incorporaram um alto senso de humanidade. Nenhuma dessas religiões jamais teve a chance de ser a monopolizadora de uma raça. Pode-se admitir que o judaísmo foi, em grande parte, uma religião universal, tendo sido a geradora de duas religiões de grande alcance, mas, na maior parte do tempo, ela não procurou ativamente a conversão de pessoas.

Os comerciantes que faziam negócios entre cidades inicialmente tinham mais probabilidade de acolher bem as novas religiões do que a religião rural. Essas crenças enfatizavam a confiança numa época em que os comerciantes em terras estranhas precisavam de um clima de confiança, no qual os contratos e os acordos verbais pudessem ser honrados. Os primeiros seguidores de Buda geralmente eram comerciantes, Maomé também era um comerciante. O cristianismo foi inicialmente disseminado longe de casa pelos judeus, muitos dos quais eram comerciantes em terras estranhas. Embora Cristo tenha afastado os comerciantes de dinheiro do templo de Jerusalém, isso aconteceu porque estavam no lugar errado e, não, porque seguiam uma ocupação indigna, Muitas de suas parábolas solidárias sobre os dilemas do cotidiano de fazendeiros e de pastores sugerem que ele não era hostil para com os empreendimentos de negócios. Como carpinteiro ou filho de carpinteiro, ele conhecia o mundo do comércio.

O grande sucesso dessas religiões em novas terras devia-se principalmente aos devotos generosos que desejavam dar suas vidas, ou perder suas vidas, simplesmente defendendo sua causa. Para que uma religião consiga se espalhar em uma nova terra depende de o governante querer recebê-la. As religiões universais atraíram de forma especial os imperadores que tentavam governar povos que não tinham uma coesão social. O budismo e o cristianismo, que ainda estavam lutando após vários séculos de pregação de fé, deveram muito de seu sucesso posterior à conversão de dois poderosos imperadores, Asoka, da Índia, e Constantino, de Roma. Um rei de um vasto império achava-se propenso a acolher bem uma religião que fizesse seu povo se sentir contente com suas vidas simples e, às vezes, difíceis.

Por volta do ano 900, as três religiões universais tinham alcançado, entre si, a maior parte do mundo conhecido. Só o continente americano, o sul da África, a Nova Guiné, a Austrália e outras ilhas afastadas além de seu alcance. Dessas três religiões, a mais jovem era talvez a mais vigorosa e, com a ajuda de comerciantes árabes, o Islã estava conquistando uma vasta área do sudeste asiático. Por outro lado, a mais antiga das religiões, o budismo, estava influenciando o maior número de vidas por causa de sua força na populosa China, Coréia, Japão e Indochina. Embora tivesse quase esgotado sua influência em sua terra natal da Índia, ainda continuava conquistando novas regiões.

O cristianismo era agora a menos viva das três. Contava com partes do nordeste da África e da Ásia Menor, mas conquistou poucas conversões na Ásia propriamente dita. Na Europa, era dominante praticamente desde a Irlanda à Grécia, mas tinha perdido terreno para o Islã ao longo do Mediterrâneo e tinha fracassado ao penetrar no norte gelado do continente. Fracassou em converter a Suécia e a Dinamarca. Outros evangelizadores fizeram pouquíssimo progresso na Rússia.

Todas as religiões de importância dependiam de apoio de governantes fortes e profanos, mas os governantes da Europa cristã não eram tão poderosos quanto tinham sido na época do Império Romano. Uma religião de importância também dependia, para oportunidades de expansão, daqueles seguidores que eram comerciantes e que, fazendo negócios longe de casa, espalhavam a palavra ou preparavam o terreno para os missionários. No ano 900, no entanto, os comerciantes cristãos da Europa encontravam-se encurralados pelo Islã de um lado e o desconhecido Atlântico do outro.

Se tivessem existido, no ano 900, alguns sábios observadores com grande noção de mundo conhecido, e se tivessem sido questionados sobre qual das principais religiões parecia ter o futuro em suas mãos, eles certamente não teriam apontado para o cristianismo. Este estava principalmente ancorado à civilização estagnante da Europa e, ainda ssim, quase que por milagre, suas perspectivas vieram a ser transformadas seis séculos depois.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve História do mundo. São Paulo: Fundamento, 2004. p. 98-100.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Os conceitos de História e Pré-história na Europa e na América

Pintura rupestre. Caverna da província de Santa Cruz, Argentina

[...] Durante muitos séculos, acreditou-se, no Ocidente, que o mundo havia sido criado por Deus há poucos milhares de anos e que os primeiros seres humanos teriam sido Adão e Eva. Por incrível que pareça, essa explicação da origem do homem só foi contraposta em meados do século XIX! No início do século, houve já uma primeira tentativa de interpretação dos períodos mais recuados da vida humana. A partir de 1816, Christian J. Thomsen, o primeiro conservador do Museu Nacional Dinamarquês, deu ordem às sempre crescentes coleções de antiguidades. Assim o fez, classificando-as em três idades, da Pedra, do Bronze e do Ferro. A ideia era, realmente, muito simples: antes de o homem aprender a usar esses metais, vivera numa idade da pedra e, após ter aprendido, utilizou-se de início, apenas o cobre e o bronze, só mais tarde passando ao ferro. Apenas com a teoria do Evolucionismo haveria, no entanto, uma verdadeira revolução no entendimento da questão das origens do homem.

Em 1809, nascia Charles Darwin, que se formaria em Teologia, em Cambridge, em 1831, e mais tarde se interessaria por Entomologia e Botânica, tornando-se um naturalista, viajante dos rincões mais afastados, como o Atlântico Sul e o Pacífico, sempre pesquisando a natureza. Publicou diversas obras com suas considerações sobre o que conheceu, como Viagem de um naturalista ao redor do mundo (1839). Em 1859, Darwin publicou seu livro mais famoso, A origem das espécies, obra que teve um impacto enorme, tendo sido vendida toda a primeira edição, de 1.250 exemplares, em um único dia! A segunda edição, com 3 mil exemplares, esgotou-se em uma semana.

Na introdução do livro, Darwin afirmava que "as espécies não são constantes, mas as que pertencem a um mesmo gênero provêm, em linha direta, de outras, em geral já extintas, assim como as variedades reconhecidas de uma determinada espécie provêm desta espécie". A espécie humana passou a ser vista como parte do reino animal e o homem como resultado de uma evolução e não de uma criação pronta e acabada. Em 1871, Darwin publicou A origem do homem e a seleção sexual, completando a proposta de uma interpretação alternativa àquela teológica da origem humana.

De início, a reação ao Evolucionismo de Darwin foi violenta por parte dos clérigos e também de todos os que não aceitavam que o ser humano não havia sido criado por Deus já da forma que nós somos. Com o passar do tempo, entretanto, começou-se a difundir a visão de que o ser humano é um animal e, mesmo para os que crêem no relato bíblico - excetuando-se os fundamentalistas - a criação de Adão e Eva passou a ser aceita como uma metáfora, não como um fato histórico. Apenas com essa revolução no conhecimento pôde surgir o interesse e o estudo dos antigos vestígios humanos.

Na Europa, o estudo dos antepassados dos povos europeus já existia por meio da leitura dos autores gregos e romanos que a eles se referiam. Os germanos haviam sido citados pelos gregos e, mais extensamente, pelos romanos - como na obra clássica Germânia, do historiador romano Tácito. Os gauleses foram bem descritos pelo general romano Júlio César em sua obra Guerra das Gálias. No século XIX, além de textos como estes, começaram-se a estudar os vestígios materiais, encontrados na França e na Alemanha, do que passaram a ser chamadas de culturas proto-históricas, "da primeira história".

Foi no século XIX que surgiu o conceito de História como uma ciência voltada para o estudo do passado a partir dos documentos escritos. Definindo que a História se faz com documentos escritos, convencinou-se que a escrita seria o início da História. Em diferentes regiões do planeta, a escrita começou a ser usada em diferentes momentos, pelo que a História começaria há 5 mil anos no Egito e na Mesopotâmia e há 3 mil na Grécia. Proto-História referia-se, portanto, ao primeiro momento em que se usava a escrita e, em particular, o termo foi usado com relação às sociedades que ainda não usavam a escrita (como no caso dos gauleses e dos germanos antigos), mas que foram descritas por povos letrados.

E o passado mais distante? Como defini-lo? Com o Evolucionismo, começou-se a aceitar a ideia de que haveria restos muito mais antigos associados ao homem. Em 1856, no vale do rio Neander, perto de Düsseldorf, na Alemanha, encontrou-se a calota craniana de um homem primitivo, que ficou conhecido como "Homem de Neandertal". Em 1865, surgiam os termos Paleolítico (Idade da Pedra Antiga) e Neolítico (Idade da Pedra Recente). Abriam-se, assim, as portas para o estudo da Pré-história, definida como todo o imenso período anterior à invenção da escrita.

A Pré-história trata dos últimos 100 a 200 mil anos, período em que existe a espécie humana, o Homo sapiens sapiens, e também dos milhões de anos anteriores, em que existiram os hominídeos, espécies que antecederam à nossa: 99,9% do passado, portanto. Apenas 0,1% do tempo da existência do homem e dos seus ancestrais na cadeia evolucionária corresponde ao período em que existe a escrita.


No continente americano, entretanto, a definição de pré-história tem como referência tradicional o período anterior à chegada dos europeus ao continente, em fins do século XV. Os europeus chamaram a sua presença na América de "história" e reservaram para todo o período que veio antes o termo "pré-história", ainda que hoje se saiba que se usava a escrita na América já antes da vinda dos colonizadores. Os maias, civilização que se desenvolveu no México e na América Central, possuíam uma escrita muito elaborada, embora usada quase sempre em contexto religioso, ainda por ser totalmente decifrada. Os incas usavam cordas para registrar eventos, chamados quipos. Na verdade, muitos povos ameríndios tinham sistemas de registros comparáveis à escrita, como os povos nambiquaras e tupis., - na forma de pinturas corporais, adereços e decorações de objetos - como propôs recentemente o americanista britânico Gordon Brotherston.

Apesar disso, generalizou-se o uso do termo Pré-história da América para todo o período anterior a 1492, data da chegada de Colombo ao continente. Como se explicaria a continuidade desse uso do termo ainda hoje, sabendo-se que havia escrita entre os nativos antes dessa data?

Os conceitos de Pré-história na Europa e na América diferem muito, apesar de os pesquisadores dos dois lados do Atlântico usarem o mesmo termo. Isso se explica facilmente se buscarmos as origens desses estudos lá e cá.

Na Europa, a Pré-história foi sempre definida com referência à História, como o período anterior à escrita, estudado pelos "pré-historiadores", pesquisadores preocupados com os próprios antepassados europeus. Daí a busca dos antigos germanos, mas também dos antigos homens do Paleolítico, considerados seus antecessores.

No continente americano, o estudo da Pré-história surgiu em outro contexto. Nas Américas, a vinda dos europeus quase sempre significou o massacre e a escravização dos ameríndios após duras batalhas e surtos epidêmicos e, mesmo quando e onde houve grande miscigenação, como no caso do Brasil, a referência dos estudiosos sempre foi a Europa e os europeus. A História era e, em certo sentido, continua sendo, a História da civilização europeia (ou ocidental), não da indígena. O interesse pelo conhecimento da vida dos indígenas levou, no século XIX, ao surgimento de uma outra ciência, a Antropologia, voltada para o estudo das línguas, sociedades, costumes e tradições ameríndias. O estudo do passado dessas sociedades ficou por muito tempo a cargo dos antropólogos especializados na análise dos vestígios materiais, os arqueólogos. Nesse contexto, no continente americano adotou-se o termo Pré-história para se referir ao período anterior à chegada de Colombo.

[...] O que entendemos por Pré-história do Brasil? Do nosso ponto de vista, não se pode fugir das definições correntes, mas, ao mesmo tempo, não se deve aceitá-las de forma acrítica. Separar a História da Pré-história pelo critério do "uso da escrita" é inconsistente, no caso da América; assim como é artificial caracterizar a Pré-história como o estudo das origens de "outros povos", pois, no caso do Brasil, ao menos um terço da população possui antepassados indígenas e, além disso, boa parte das nossas heranças culturais é ameríndia. Ademais, grande parte do que hoje constitui o Brasil ficou alheia ao mundo do colonizador, concentrado na costa: a maior parte da Amazônia (uma área imensa), mas mesmo o que chamamos Centro-Oeste, até a recente Marcha para o Oeste, na década de 1930.

Por tudo isso [...] adotamos uma definição mais ampla e menos restrita e comprometida de Pré-história do Brasil, partindo das origens mais remotas (o que nos levará ao Velho Mundo), os percursos pelo continente americano até o povoamento do território barsileiro, passando pelas culturas que aqui floresceram até chegarmos aos ameríndios contemporâneos. E essa Pré-história do Brasil compreende a existência de uma crescente variedade linguística, cultural e étnica, que acompanhou o crescimento demográfico das primeiras levas constituídas por umas poucas pessoas (centenas ou poucos milhares) que chegaram à região até alcançar muitos milhões de habitantes na época da chegada da frota de Cabral. Também precisamos compreender que, para que isso ocorresse, não houve apenas um processo histórico, mas numerosos, distintos entre si, com múltiplas continuidades e descontinuidades, tantas quanto as etnias que se foram constituindo ao longo dos últimos 30, 40, 50, 60 ou 70 mil longos anos de ocupação humana das Américas.

FUNARI, Pedro Paulo e NOELLI, Francisco Silva. Pré-história do Brasil. São Paulo: Contexto, 2002. p. 11-15. (Repensando a História).