"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

A história da História Antiga 5: História, Antropologia, Economia e Sociologia

Portão Herculano em Pompeia, Jakob Philipp Hackert

Um dos marcos da nova forma de pensar a História Antiga foi o livro A cidade antiga, do francês Fustel de Coulanges, publicado em 1864. A ideia central desse autor era de que a cidade greco-romana se originara da comunidade religiosa indo-europeia, centrada no culto ao fogo doméstico e aos ancestrais. Ela seria uma família progressivamente ampliada e transformada pela evolução das ideias religiosas.

De Coulanges, na verdade, dividiu seu livro em duas partes. Na primeira parte, apresentou uma espécie de pré-história da cidade antiga, que remontava às origens dos tempos e na qual a cidade era tratada como uma comunidade de culto oriunda da junção de famílias (gentes), destas em tribos, e por fim em cidades, cada qual exclusiva, pois compartilhava deuses e rituais únicos. A cidade religiosa seria, assim, a unidade básica da História Antiga, vista como uma etapa no desenvolvimento da inteligência dos indo-europeus. Cada cidade seria uma igreja específica, embora os fundamentos da comunidade religiosa fossem comuns a todas elas. Seu particularismo era, portanto, seu traço de união, assegurado pela unidade da raça ariana.

Na segunda parte da obra, a que trata da cidade histórica propriamente, esta já aparecia em pleno processo de sua dissolução. Os vínculos comunitários teriam se enfraquecido progressivamente e as cidades assumido as características de sociedades em conflito, pelo poder e por bens materiais, o que prenunciava seu desaparecimento sob a conquista romana.

Dois autores, que não eram historiadores da Antiguidade, merecem uma menção especial, pois influenciaram muito a História Antiga na segunda metade do século XIX: Karl Marx e Max Weber. Os escritos de Marx sobre a Antiguidade são esparsos e muitas vezes contraditórios. Há duas linhas de pensamento principais, que influenciaram a historiografia do século XX. A mais conhecida delas é claramente evolucionista. Marx definiu etapas do desenvolvimento histórico que denominou modos de produção, caracterizados pelas diferentes relações de exploração entre proprietários e trabalhadores. Esses modos seriam universais e apareceriam na História como uma sequência: a comuna primitiva, o modo de produção asiático, o escravista, o feudal e o capitalista.

Mas foi em um rascunho escrito em 1857, intitulado Formas que precedem a exploração capitalista, que Marx apresentou sua mais bem elaborada visão da Antiguidade. Nesse texto [...] Marx contrapunha a forma da cidade greco-romana, que chamava de cidade antiga, com o que denominava de forma asiática e de forma germânica. Ao contrário do mundo contemporâneo, essas formas se caracterizariam por um forte vínculo comunitário, entendido como condição para a apropriação produtiva da terra. Na forma antiga [...] a comunidade também era a condição prévia da apropriação da terra, mas não aparecia na forma de uma comunidade superior - como no mundo asiático, que englobava as comunidades menores -, mas sim como uma associação única, a cidade. O trabalho da terra não era difícil, não sendo necessários esforços coletivos. [...] A guerra (e não as obras públicas) era a grande tarefa comunal.

A comunidade/cidade seria assim uma força militar. A concentração de moradias na cidade seria a base de uma organização bélica. A guerra, por sua vez, e a própria natureza da estrutura tribal anterior levariam à diferenciação entre os membros da comunidade (inferiores e superiores, conquistadores e conquistados, livres e escravos).

Seria dessa forma, segundo Marx, que a propriedade comunal teria se separado da propriedade privada. [...]

Para ser proprietário privado, a condição prévia era ser membro da comunidade, era ser cidadão. [...] O fato de possuir terra dependia da existência do próprio Estado. Mas a cidade só se mantinha se as diferenças entre os cidadãos não fossem muito acentuadas. O crescimento da desigualdade entre os proprietários livres levava à guerra civil e à dissolução da comunidade.

[...]

Max Weber, que conhecia bem as fontes da História Antiga, também centrou suas interpretações em torno da cidade antiga, sem se importar com as divisões tradicionais entre as Histórias da Grécia ou de Roma. Max Weber escreveu três textos fundamentais para o historiador da Antiguidade: As causas do declínio da cultura antiga, de 1896, Relações agrárias na Antiguidade, de 1898, e um texto denso e complexo, publicado postumamente em 1924 e que não diz respeito apenas à Antiguidade, A cidade. [...]

[...] a ideia essencial de Weber é a de que existiu uma cidade "ocidental", diferente daquela "oriental". A cidade ocidental caracterizava-se por uma comuna de agricultores, cidades independentes e proprietários privados. Já a cidade oriental era dominada por uma burocracia e dependia de um poder centralizado, que podia ser um palácio monárquico e guerreiro ou um grande templo.

Na cidade ocidental, que primeiro fora aristocrata, os pobres haviam ganhado, com sua cidadania e sua liberdade política, o direito de não serem explorados pelos mais ricos. Estes últimos dependiam da exploração racional do trabalho escravo, tanto no campo, como na cidade. [...]

Para Weber, tanto a cidade antiga como a medieval eram burguesas, no sentido de que se sobrepunham às grandes famílias, suprimiam as relações entre gentes aristocráticas e instituíam uma forma de poder público, e não familiar ou hereditário. Para Weber, a cidade antiga era, acima de tudo, a sede dos proprietários rurais, que viviam das rendas obtidas no campo. [...]

[...] A riqueza urbana do mundo antigo conduziu as elites a um estilo de vida ocioso, voltado para o luxo e a produção cultural: essa foi uma de suas fraquezas, mas também uma das causas do brilho da cultura antiga. O declínio do abastecimento de escravos, provocado pelo fim das conquistas do Império Romano, levou à queda da produção mercantil e racional, marcando a decadência da cidade antiga e a perda de brilho de sua cultura erudita.

GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Conexto, 2013. p. 23-6.

Nenhum comentário:

Postar um comentário