"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Peregrinação a Kiev e bailes de máscaras em Moscou (Parte 2)

Catarina II da Rússia, Fyodor Rokotov

"Sabendo como minha mãe se exaltava facilmente e que seu primeiro impulso era sempre muito violento, temi que ela me desse um tapa se eu discordasse dela. Sem querer mentir para ela nem ofender o grão-duque, fiquei calada. Contudo, acabei dizendo a minha mãe que eu não achava que o grão-duque tinha feito de propósito."

Joana então se voltou contra Catarina.

Quando minha mãe estava com raiva, tinha de achar alguém com quem brigar. Permaneci em silêncio e depois explodi em lágrimas. A princípio, meu silêncio enraiveceu a ambos. Então o grão-duque, vendo que toda a raiva de minha mãe se dirigiu para mim porque eu tinha tomado o partido dele e que eu estava chorando, acusou minha mãe de ser uma megera arrogante e injusta. Ela contra-atacou, dizendo que ele era "um menininho mal-educado". Seria impossível brigar com mais violência sem chegar aos tapas.

A partir de então, o grão-duque tomou grande antipatia por minha mãe e nunca esqueceu aquela briga. Minha mãe, por sua vez, guardou por ele um irremediável rancor. Aquele relacionamento tenso se tornou cada vez mais cheio de amargor e suspeita, passível de azedar a qualquer momento. Nenhum dos dois conseguia esconder de mim seus sentimentos. E por mais que me esforçasse para obedecer a uma e agradar ao outro - e de algum modo promover a reconciliação -, conseguia isso apenas por curtos períodos. Cada um tinha sempre uma farpa de sarcasmo ou malícia pronta a ser arremessada. Minha posição ficava mais difícil a cada dia.

Catarina estava angustiada, mas o mau gênio da mãe e a simpatia de catarina pelo grão-duque surtiram um efeito: "Na verdade, naquela época, o grão-duque abriu seu coração para mim mais que para qualquer outra pessoa. Ele via que minha mãe sempre me atacava e me repreendia quando não conseguia encontrar alguma falta nele. Isso me colocou numa alta posição em sua estima; ele acreditava poder confiar em mim."

No clímax da peregrinação, a imperatriz e a corte passaram dez dias em Kiev. catarina teve uma visão inicial panorâmica da magnífica cidade, com seus domos dourados se erguendo de uma encosta na margem oeste do rio Dnieper. Elizabeth, Pedro e Catarina entraram a pé na cidade, andando com uma multidão de padres e monges atrás de uma grande cruz. Em toda parte da mais sagrada de todas as cidades russas, numa época em que a Igreja era imensamente rica e o povo devotamente piedoso, a imperatriz foi recebida com uma pompa extravagante. Na famosa igreja de Assunção no monastério Pecharsky, Catarina ficou admirada com o fausto das procissões, a beleza das cerimônias religiosas, o incomparável esplendor das próprias igrejas. "Nunca, em toda a minha vida", ela escreveu mais tarde, "algo me deixou tão impressionada quanto a extraordinária magnificência daquela igreja. Todos os ícones eram recobertos de ouro maciço, prata, pérolas e incrustados de pedras preciosas."

Embora tão impressionada por esse espetáculo visual, nunca em sua vida Catarina foi muito devotada à religião. Nem a austera crença luterana de seu pai, nem a apaixonada fé ortodoxa da imperatriz Elizabeth jamais tomaram posse de sua mente. O que ela via e admirava na igreja russa era a majestade da arquitetura, da arte e da música, mescladas numa esplêndida unidade de inspirada - embora feita pela mão do homem - beleza.

Tão logo Elizabeth e a corte retornassem de Kiev, começou nova temporada de óperas, festas e bailes de máscaras em Moscou. Cada noite Catarina aparecia com um vestido novo e lhe diziam que estava muito bonita. Ela era astuta o bastante para reconhecer que a lisonja era o óleo lubrificante da vida na corte, e estava também ciente de que algumas pessoas ainda a desaprovavam. Bestuzhev e seus seguidores, damas ciumentas que invejavam a estrela em ascensão, parasitas que mantinham minuciosa contabilidade da distribuição de favores. Catarina tentava de todas as maneiras desarmar seus críticos. "Eu tinha medo de não ser querida e fazia tudo em meu poder para conquistar aqueles com quem iria passar minha vida", ela escreveu mais tarde. Acima de tudo, ela nunca esqueceu a quem devia maior lealdade. "Meu respeito pela imperatriz e minha gratidão a ela eram extremos", ela disse. "E ela costumava dizer que me amava tanto ou mais que ao grão-duque."

Um modo certo de agradar a imperatriz era dançar. Para Catarina era fácil: assim como Elizabeth, ela gostava apaixonadamente de dançar. Diariamente, às sete horas da manhã, monsieur Lande, o mestre francês de balé na corte, chegava com seu violino e, durante duas horas, ensinava-lhe os passos da última moda em Paris. De quatro a seis da tarde, ele voltava para outra aula. E assim, à noite, Catarina impressionava a corte com sua dança graciosa.

Alguns desses bailes noturnos eram bizarros. Toda terça-feira, por decreto da imperatriz, os homens vinham vestidos de mulher e as mulheres vestidas de homem. Catarina, aos 15 anos, se deliciava com essa mudança de trajes. "Devo dizer que não havia nada mais horrendo e ao mesmo tempo mais cômico do que ver quase todos os homens vestidos desse jeito e nada mais triste do que ver as mulheres em roupas de homem." A grande maioria da corte detestava profundamente essas noites, mas Elizabeth tinha um motivo para esse capricho: ela ficava esplêndida em roupas de homem. Embora longe de ser esguia, sua silhueta de busto farto ficava realçada pelo par de pernas esbeltas, maravilhosamente bem torneadas. Sua vaidade exigia que aquelas pernas elegantes não permanecessem escondidas, e a única maneira de exibi-las era em calças justas masculinas.

Catarina descreveu o perigo com que se defrontou numa dessas noites:

Monsieur Sievers, muito alto, usando um vestido com ampla anágua armada que a imperatriz lhe emprestara, estava dançando uma polonaise comigo. A condessa Hendrikova, que dançava atrás de mim, tropeçou na anágua armada de monsieur Sievers no momento em que ela dava um rodopio segurando minha mão. Ao cair, ela esbarrou em mim com tanta força que caí debaixo da anágua, que tinha saltado como uma mola bem ao meu lado. Sievers, por sua vez, se embaraçou nas próprias saias longas, que estavam em grande desordem, e acabamos nós três estatelados no chão, eu inteiramente coberta pela anágua dele. Eu estava morrendo de rir, tentando me levantar, mas foi preciso que viessem nos ajudar porque estávamos tão embrulhados na roupa de monsieur Sievers que nenhum dos três conseguia se levantar sem fazer com que os outros dois tornassem a cair.

MASSIE, Robert K. Catarina, a grande: retrato de uma mulher. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. p. 84-87.

Nenhum comentário:

Postar um comentário