"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Copa do Mundo 2014: Quem paga a conta?

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“Menos democracia ajudaria na organização da Copa”. A frase infeliz, de autoria de Jérôme Valcke, secretário-geral da FIFA, circulou em jornais e redes sociais, alimentando críticos da organização do evento no Brasil [...]. Admitir a preferência por “chefes de Estado fortes” [...] acabou por oferecer munição aos críticos que vêem na escolha de países como África do Sul, Brasil, Rússia e Catar uma estratégia para levar seus negócios a lugares menos transparentes. [...] ninguém precisa ser especialista em Brasil para perceber que os atrasos e os (im)previstos para a Copa não são resultado de muita democracia.

[...]

[...] o desempenho na organização de grandes eventos tem uma longa lista de experiências análogas que isenta de culpa nosso suposto excesso de democracia.

Fossem eles de cunho esportivo, religioso ou político, os megaeventos no país ao longo do período republicano foram desejados como marcos para [...] justificar o sacrifício coletivo em nome de sua realização e [...] projetar internacionalmente uma imagem de sucesso e desenvolvimento. Sob a batuta do Estado, que decide ser de interesse nacional sediar esse tipo de evento, obras são planejadas, promessas são feitas e reformas sugeridas. [...] Infelizmente, o trágico inventário das experiências anteriores mostra que, ao contrário de suas nobres intenções, os megaeventos por aqui acabaram por reforçar estereótipos, como desorganização e subdesenvolvimento, além de destacar publicamente a incapacidade em lidar com questões históricas, como problemas de segurança, desigualdade social e falta de infraestrutura.

[...] Em 1992, quando o Rio de Janeiro abrigou a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, mais conhecida como ECO-92, problemas de infraestrutura, como mobilidade urbana, estavam na pauta de preocupações. Mais de 20 anos depois, quando a cidade recebeu a Jornada Mundial da Juventude, o problema era o mesmo, mas agora agravado. Como se não bastasse o colapso do metrô, que sucumbiu a um fluxo de passageiros já esperado, até o papa ficou preso no trânsito [...].

[...]

Nenhuma novidade. Os grandes eventos sempre deixaram claro o antagonismo entre seus promotores (Estado, políticos, empreiteiros...) e a população local. Apesar dos argumentos técnicos e de promessas de reestruturação e grandes legados, é inegável a disparidade entre as obras e as medidas que simulam o cenário idílico a ser freqüentado pelos visitantes ocasionais e o que de fato sobra para a população. [...]

Em 1908, para comemorar o Centenário da Abertura dos Portos às Nações Amigas e a chegada da família real portuguesa ao Brasil, foi organizada uma grande exposição nacional. Custou a bagatela de 1% do orçamento da União. [...]

A capital da nova república brasileira passava por profundas reformas urbanas [...]. Por onde passavam as réguas dos arquitetos, populares eram deslocados para dar lugar a novos prédios e avenidas, antecipando um dos aspectos mais controversos e comuns nos grandes eventos do século XX: as remoções. [...] Os jornais da época anunciavam o deslumbre dos visitantes diante do espetáculo de luzes montado. [...] Pouco importa o fato de que, à exceção de alguns trechos em regiões centrais da cidade, a tecnologia fosse inexistente na maior parte do Rio. Afinal, esta é uma das marcas dos megaeventos: oferecer aos visitantes aquilo que a população não tem.

Sobretudo segurança. Em 1992, os jornais cariocas anunciaram que, para alívio dos chefes de Estado e estrangeiros que viriam para o Rio de Janeiro, durante todo o período da ECO-92, o Exército iria manter dois canhões apontados para a favela da Rocinha. Os blindados ficavam em São Conrado, próximo à comunidade, como símbolo de um Estado militarmente presente. [...]

A democracia brasileira, a mesma que tanto atrapalha a organização da FIFA, dá exemplos de não ter mudado muito. A tradição nacional de resolver as questões sociais como problema de polícia ataca agora dando novos sentidos a palavras como “pacificação” e “segurança”. O problema, para a infelicidade da organização da Copa que esperava convencer a comunidade internacional de que está sendo preparada a “Copa das Copas”, é que a imprensa estrangeira já se deu conta da distância entre intenção e gesto. Em matéria publicada no jornal inglês The Guardian, no dia 27 de março deste ano, Benjamin Parkin pergunta “como o Brasil vai fazer para manter a festa da Copa do Mundo rolando?”. Ele mesmo responde: “mandando o Exército”. Nenhum jornal brasileiro foi tão direto [...]. Parker afirma que a demonstração de força revela que pouco a pouco o Brasil parece estar criando um estado de exceção para evitar tumultos semelhantes aos que ocorreram na Copa das Confederações no ano passado.

[...]

[...] meses antes da eleição do Brasil para a Copa do Mundo de 2014 e do Rio de Janeiro para os Jogos Olímpicos de 2016, a comunidade internacional já alertava para os riscos sociais de uma política de segurança pautada exclusivamente no uso da polícia. Um mês antes da ação no Alemão, a Anistia Internacional publicou um relatório no qual denunciava abusos da Polícia Militar em ocupações na mesma comunidade em outubro de 2006 e fevereiro de 2007 e a “militarização do policiamento”. Segundo a entidade, as operações nas favelas colocam em risco a vida de todos os moradores, além de provocar o fechamento do comércio e impor toques de recolher. Entidades como a ONU e a Human Rights Watch também passaram a supervisionar as atividades do Estado nas favelas a partir de meados de 2007, chamando a atenção para os altos custos sociais deste tipo de operação.

[...]

[...] [os] protestos iniciados em junho de 2013 [e] espalhados pelo país inteiro que puseram em xeque o caráter democrático dos grandes eventos no país. Incitados num primeiro momento pelo aumento das passagens de transporte público, o movimento ganhou força com a crítica aos imensos gastos com a Copa do Mundo. Os jogos da Copa das Confederações assistiram, em torno dos estádios, a batalhas campais entre manifestantes e a Polícia Militar pelo Brasil todo, expondo ao vivo o antagonismo entre uma população revoltada e um Estado dialogando exclusivamente através de suas forças de segurança.

Enquanto os protestos viraram notícia no mundo inteiro, governo federal, governadores e prefeitos se uniam para criar leis mais rigorosas e oferecer demonstrações de força. O objetivo? Tranqüilizar o atônito turista que agora pensava duas vezes se deveria aparecer no país. A solução muito democrática foi juntar forças para impedir mais protestos. O governo federal criou uma tropa de choque com 10 mil homens a serem distribuídos nas 12 sedes da Copa. [...]

A democracia brasileira, apontada por Valcke como obstáculo para a plena realização das recomendações da FIFA, parece afinal ser composta por um complexo e irregular sistema de esferas políticas brigando entre si para saber quem está mais comprometido com o evento. [...] Como se não bastasse os gastos vultosos (na ordem de R$ 28 bilhões, mais do que as duas últimas duas Copas somadas), cerca de 170 mil famílias já foram removidas de suas residências, segundo a agência jornalística Pública. [...]

A Copa vai acontecer, e ninguém precisa se sentir culpado em aproveitar os jogos. Ainda assim, a concentração de grandes eventos num curto espaço de tempo e a forte reação de manifestantes contra seus excessivos gastos fizeram com que o Brasil perdesse a inocência. No final disso tudo, ainda que a Seleção levante mais uma taça, vai ser difícil disfarçar o sorriso amarelo da consciência de que todos perdemos alguma coisa.


Bruno Garcia. Tradição de exclusão. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 9 / Nº 105 / Junho 2014. p. 17-25.

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