"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Mulher e exclusão no Brasil do século XIX

A imagem da mulher presente nas obras dos viajantes que visitaram o Brasil na primeira metade do século XIX era de uma mulher quase criança, vivendo seus primeiros anos sob a tutela de um pai despótico e, mais tarde, sob o controle estrito do marido, ao qual, de acordo com o costume, a lei e a religião, ela devia total obediência; uma criatura sexualmente inibida, mas que poderia de repente romper as barreiras que a cercavam e se entregar ao desvario de uma paixão, e por isso era estreitamente vigiada; uma mulher com pouca ou nenhuma educação e iniciativa, que aspirava apenas ao casamento e à maternidade [...].


Cena de família de Adolfo Augusto Pinto, José Ferraz de Almeida Junior

As referências ao isolamento em que viviam as mulheres da classe alta e média na primeira metade do século XIX, quando elas eram mantidas quase segregadas, longe dos olhos dos estranhos, sendo vistas apenas de esguelha quando iam à igreja, cederam lugar ao longo do século a imagens de maior sociabilidade. Mulheres passaram a ser vistas frequentando bailes, teatros e confeitarias, visitando amigos e até mesmo servindo-se do bonde para ir às compras ou à praia. Mas o retrato da mulher dependente [...] persistia [...].


Negro e negra numa fazenda, Rugendas

Durante muito tempo, esses dois retratos - o da mulher dependente e o do poder patriarcal com seu inegável viés classista - ocultaram dos historiadores não só a complexidade e variedade da experiência feminina como também as mudanças que estavam tendo lugar na vida das mulheres no decorrer do século XIX. Tais generalizações baseavam-se na experiência das classes média e alta. Ninguém parecia perguntar se essa forma de representação era válida para outros grupos sociais. Durante muito tempo, ninguém parecia prestar muita atenção às discrepâncias entre o comportamento real das mulheres e as prescrições das leis, da Igreja e dos moralistas. Sistematicamente ignorados ou minimizados foram os casos de separação e até mesmo divórcio autorizados pela Igreja em certas circunstâncias. [...] Esquecidas foram também as que simplesmente se negaram a casar, preferindo permanecer solteiras. Ignoradas também foram aquelas que se rebelaram contra os pais, insistindo em obter uma educação superior e até mesmo uma profissão. Até a segunda metade do século XX, a história pouco valorizou as mulheres que, um século antes, criaram sociedades abolicionistas e literárias, escreveram livros e artigos criticando o sistema patriarcal, publicaram revistas em favor da emancipação da mulher, apoiaram o movimento republicano, associaram-se aos primeiros grupos socialistas e anarquistas e exigiram o direito à educação e ao voto. Na penumbra também permaneceram as mulheres que, à testa de negócios e de fazendas, conseguiram sustentar suas famílias depois da morte dos maridos, assim como as mulheres das camadas subalternas, escravas ou livres.


Largo da Carioca (com o Chafariz da Carioca, na frente e o Convento de Santo Antônio, no fundo). 
Eduard Hildebrandt

Se bem que a imagem do patriarcalismo persistisse, ela estava se tornando cada vez menos adequada para representar a experiência das mulheres das classes média e alta, nas últimas décadas do século XIX, pelo menos em algumas regiões do país. Note-se que essa imagem nunca corresponderia à experiência de mulheres das classes subalternas. [...] Dificilmente se enquadrariam nesse retrato patriarcal as escravas, mulheres que trabalhavam como empregadas e amas de leite na casa dos ricos, as trabalhadoras da indústria, as prostitutas e vendeiras nas ruas das cidades, assim como as que, na zona rural, trabalhava, de sol a sol ao lado dos homens.

COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Unesp, 2007. p. 493-498.

NOTA: O texto "Mulher e exclusão no Brasil do século XIX" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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