Quando Henry Ford iniciou sua primeira linha de montagem, em 1913, o mundo estava agitado. Uma das evidências mais marcantes acerca disso era quantas pessoas havia, em comparação com qualquer outro momento do passado. Nos 150 anos desde 1763, a população mundial mais do que dobrara, indo de 800 milhões para mais de 1,6 bilhão de pessoas. Isso se deveu em parte aos avanços na medicina. Graças a um melhor entendimento dos processos infecciosos e da importância da higiene, melhorias no saneamento, introdução da vacinação e fornecimento de água limpa, a expectativa de vida em muitos aumentara. Isso era particularmente verdadeiro nas cidades dos países industrializados. Antes do século XIX, as cidades eram um escoadouro populacional, em que as pessoas morriam precocemente. Somente o constante reabastecimento oriundo do campo possibilitara manter a quantidade de gente existente. Agora o número de habitantes das cidades crescia rápido e, em muitos países, ocorrera um notável aumento na proporção de população total vivendo em um ambiente urbano.
Nesses países, a queda de taxa de mortalidade tivera lugar contra um cenário de taxas de natalidade estáveis, com o resultado de que o crescimento populacional fora particularmente acelerado. Um dos exemplos mais marcantes dessa tendência foi a Inglaterra, onde uma população de cerca de 7 milhões de pessoas em 1763 aumentara em 1913 para 40 milhões, a despeito da emigração de quase 20 milhões de pessoas.
Mas higiene melhorada e avanços médicos não teriam levado a aumentos populacionais não fosse a quantidade cada vez maior de alimento disponível. Entre 1763 e 1913, a área de terra cultivada do mundo praticamente triplicara e, em muitos países, técnicas melhoradas haviam resultado em produção maior por hectare tanto de colheitas como de gado. Os padrões de vida melhoraram consideravelmente, a despeito de dobrar a população no mundo todo.
Nem todo país se beneficiou do aumento de alimento disponível. A tiranizada colônia britânica da Irlanda registrara uma população de 6,5 milhões ainda em 1840, mas, devido à fome e ao empobrecimento esmagador, perdera 5 milhões para a emigração e, agora, tinha menos de 4 milhões. Essas regiões de privação contra um cenário de comparativa abundância revelam que ocorreu um grande aumento da desigualdade nos padrões de vida entre as nações prósperas e as menos afortunadas.
O crescimento populacional global durante o século precedente ou um pouco além disso fora acompanhado de um volume assombroso de deslocamentos entre os países. Em 1890, essas migrações vinham ocorrendo havia setenta anos, mas atingiram um pico no quarto de século entre 1890 e 1913. O motivo para isso incluía:
1. a remoção de obstáculos legais à migração em inúmeros países;
2. uma queda acentuada no custo da viagem oceânica;
3. uma depressão agrícola causada pela importação de grãos baratos de países como Argentina e Estados Unidos, o que culminou em escassez para os trabalhadores rurais europeus.
O fator mais importante nessas migrações foi a queda nos custos de transporte associada à chegada do barco a vapor, que atuou não só como "empurrão", mas também como "puxão". Facilitando o transporte de gêneros alimentícios por longas distâncias, ele tornou grande parte da atividade agropecuária tradicional pouco rentável em face da competição de países como Estados Unidos e Austrália, lançando no desemprego trabalhadores de outros países. Esse foi o "empurrão". Ao mesmo tempo, proporcionou viagens mais baratas, tornando possível à gente pobre deixar seus lares pela oportunidade de uma vida melhor em outro lugar. Esse foi o "puxão".
Os emigrantes, Angiolo Tommasi
Algumas dessas migrações atingiram proporções fenomenais. Entre 1840 e 1913, algo como 60 milhões de europeus partiram de suas casas para tentar a sorte em outro lugar. Por volta de três quartos deles foram parar na América do Norte, onde as estradas de ferro haviam desbravado o país e a terra era barata. Outros 10 milhões e tanto, na maioria espanhóis, portugueses e italianos, acabaram desembarcando na América Latina. Quantidades substanciais vindas da Inglaterra e da Irlanda encontraram um novo lar em países como Canadá, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul. Essa foi uma época em que os impérios europeus atingiram seu ápice e foi de muitas maneiras uma era dourada de oportunidade para emigrantes europeus em busca de um novo lar em países onde ainda podiam se sentir "em casa";
Não foi apenas da Europa ocidental e meridional que as pessoas saíram para tentar fazer fortuna em terras estrangeiras. Na segunda metade do século XIX, quatro ou cinco milhões de pioneiros russos encontraram um novo lar na Sibéria. E no sul e no leste da Ásia as pessoas estavam igualmente se deslocando à procura de uma vida melhor, ou apenas um modo de ganhar a vida. Entre 1830 e 1913, dezenas de milhões de trabalhadores indianos com contratos de curta duração supriram a mão de obra necessária em minas e fazendas em colônias britânicas como Trinidad, África do Sul, Ceilão e Burna. Durante esse mesmo período, talvez até 15 milhões de camponeses chineses, desesperados por fugir de dívidas, tiraram vantagem do comércio de "cules", que os fornecia como mão de obra para patrões do mundo todo, mas sobretudo para as fazendas de borracha e as minas de estanho da Malásia.
Graças à disponibilidade maior de alimentos, e a essas grandes migrações, algumas áreas do mundo haviam registrado grandes crescimentos populacionais desde 1763. A população da Europa, excluindo a Rússia, mesmo com suas perdas para a migração, explodira de cerca de 110 milhões para algo em torno de 350 milhões. A própria Rússia, incluindo a Sibéria, tinha agora uma população de 150 milhões. A população dos Estados Unidos, na outra ponta dessa maré de imigração europeia, atingira os 100 milhões.
Entre as nações asiáticas, o Japão abrigava 60 milhões de pessoas: um povo próspero, instruído e transbordando de autoconfiança nacional. A China, com mais de 500 milhões, e um passado brilhante, deveria ter se tornado uma das grandes potências mundiais. Mas os anos de guerra e fome, governo complacente e ineficaz e maus-tratos por parte dos algozes estrangeiros haviam-na reduzido a uma sombra de seu antigo eu e deixado grande parte de sua população atolada em dívidas e ignorância.
A população de 350 milhões da Índia - igual à da Europa - continuava sujeita aos caprichos de uma certa ilha ao largo da costa europeia. Por ora, as classes cultas indianas não tinham outra escolha a não ser se deixar ficar sob a tutela de pessoas cujos ancestrais iletrados ainda corriam por aí em peles de animais quando seus próprios ancestrais criavam obras-primas supremas da arte e da literatura. Mas elas não iam continuar aturando isso por muito mais tempo.
Dois outros vastos territórios, Austrália e Canadá, continuavam teoricamente parte do império britânico, mas seus habitantes não podiam ser tutelados como era o povo da Índia. A Índia britânica fora criada por um empreendimento comercial, que obtivera controle de um subcontinente densamente povoado por intermédio de armamentos superiores e velhacarias diplomáticas. O Canadá e a Austrália, por outro lado, haviam sido efetivamente esvaziados de seus povos nativos por uma combinação de doenças europeias e limpeza étnica. Esses lugares haviam sido repovoados, como acontecera nos Estados Unidos, por imigrantes europeus de mentalidade independente, que teriam rapidamente afirmado sua independência se a Inglaterra tentasse tratá-los como o fez com aquelas colônias cujos povos tinham uma cor de pele diferente. O Canadá vinha se autogovernando na prática desde a promulgação da Lei do Governo do Canadá, em 1867. Um terço de seu povo era cultural e linguisticamente francês e muitos deles teriam preferido formar uma nação separada. Mas em 1913 os sentimentos separatistas não eram fortes o bastante para ameaçar a sobrevivência do Estado.
A Austrália se tornara uma commonwealth autogovernada desde 1901, com uma constituição que proporcionava a seus estados individuais, como as províncias canadenses, uma grande dose de controle sobre os próprios negócios. Como o Canadá, ela era abençoada com extensas terras de cultivo de trigo e rica em recursos minerais. Os cidadãos de ambos os países usufruíam um padrão de vida que causava inveja a outros povos.
Também a antiga colônia britânica da Nova Zelândia era, para todos os propósitos práticos, agora um país independente. Ela fora administrada separadamente de New South Wales desde 1841 e, em 1907, fora designada um "domínio", assumindo seu lugar junto a Austrália e Canadá como um território autogovernado unido à Inglaterra apenas por laços de amizade e um rei compartilhado.
Conforme o ano de 1913 se aproximava do final, os bronzeados jovens desportistas da Austrália e da Nova Zelândia, como os atletas de todas as nações bem nutridas, já ansiavam pelos próximos Jogos Olímpicos. Excetuando as mulheres. Ao contrário dos gregos, o mundo moderno não estava preparado para o espetáculo de mulheres atletas exibindo suas habilidades físicas em público. O antigo festival grego fora revivido em 1896 como resultado do entusiasmo de um aristocrata francês, o barão Pierre de Coubertin, que visitara a pequena vila inglesa de Much Wenlock na época de seus Jogos Olímpicos anuais, uma mistura de "esportes viris e recreações ao ar livre" que atraía atletas de toda a região. O que viu por lá o persuadiu de que um festival similar em escala internacional podia ser um meio de promover a paz e a boa vontade entre as nações. As Olimpíadas de 1896 foram tal sucesso que ficou resolvido que se repetiriam a intervalos de quatro anos. Em 1916 o lugar planejado para sediá-las era Berlim. Mas em 1914 ocorreu um evento que comprometeu os países do mundo numa disputa muito mais desesperadora.
AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 309-313.