"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 2 de junho de 2013

África Negra 2: As civilizações africanas e os Estados antigos. Egito. Axum. Gana. Mali. Songhai

Representação de asiáticos (detalhe). Tumba de Khnoumhotep II

[...] o Egito abrigou a primeira grande civilização surgida na África, embora fosse muito diferente das outras regiões africanas. Além das terras férteis, a região possuía uma importância estratégica fundamental ao situar-se como eixo de ligação entre o continente africano, a Ásia e o mundo mediterrâneo. Desde muito cedo, a fertilidade das terras egípcias fazia com que os agricultores pudessem produzir muito além de suas necessidades. No entanto, é importante considerar as origens do progresso alcançado pelos egípcios.


Campo de Hotep

Esses grupos, que até então viviam de forma dispersa e desorganizada, sentiram a necessidade de organizar-se. As colheitas, cada vez mais abundantes, aumentaram ainda mais o crescimento demográfico. A demarcação das terras foi resultado desse desenvolvimento, atividade na qual se ocupavam chefes, sacerdotes e seus servidores. A medição dessa rica e fértil terra fez surgir a agrimensura e a profissão de escriba. Da mesma forma, foram dados os primeiros passos em direção ao cálculo e à escrita.


Ordenhando uma vaca (modelo funerário). XIIª dinastia. Museu de Belas-Artes de Lyon. Foto: Rama

As lutas internas e as consequentes trocas culturais e biológicas que mesclaram os povos em volta do Nilo deram origem ao desenvolvimento de uma grande civilização. A utilização dos metais certamente ampliou o poder dos chefes e a capacidade, do ponto de vista militar e diplomático, de superar os inimigos. Por fim, o Rei Narmer, do sul, conseguiu unificar todo o território por volta de 3100 a.C. A posição geográfica do Egito, situado entre a Ásia, o Mediterrâneo e a massa africana do sul, bem como sua capacidade de desenvolvimento, destinou a região a uma série de invasões que marcaram os reinados das diversas dinastias.


Estatueta de Osíris. Artista desconhecido. Ca. 664-332 a.C.

Outra importante civilização é a de Axum, localizada no nordeste da África, atual Etiópia, Somália, parte do Sudão e Eritréia, entre os séculos I e V. O surgimento de Axum esteve ligado à sua localização privilegiada, próxima aos antigos núcleos urbanos cuchitas, egípcios e árabes. Devido às intensas trocas culturais que a proximidade entre as regiões proporcionava, a formação étnica e cultural dessa sociedade tinha um caráter profundamente miscigenado. Todavia, sua população era majoritariamente negroide. Culturalmente, entretanto, a sociedade tinha características semitas, embora reelaborada. Na interação entre o chifre da África e o sudoeste da Península Arábica formou-se o "reino do insenso", produto intensamente exportado para os antigos centros civilizacionais.

Entre os séculos III e IV, a civilização de Axum adquiriu caráter imperial, impondo-se à força sobre os vizinhos da região nordeste da África, em particular sobre Meroé, capital do reino Kush entre os séculos VII e IV a.C., e sobre a Arábia Meridional. A expansão de Axum permitiu-lhes assumir o controle de uma vasta extensão de terras cultiváveis até o Mar Vermelho, e a ocupar também uma posição intermediária no comércio marítimo do Índico, entre os impérios do Oriente (chineses, mongóis e hindus) e o Império Romano, então em decadência.

Assim, além das conexões que ligavam o litoral norte da África à Europa e ao Levante (litoral do Oriente Médio) através do Mar Mediterrâneo, havia os fluxos norte-sul através do Vale do Nilo e os do Mar Vermelho e os do leste-oeste, por meio do Oceano Índico. Navegadores árabes, persas, indianos e malaios (até chineses, em uma ocasião) frequentaram as costas da África Oriental por muitos séculos. Esses comerciantes traziam e levavam mercadorias, influências culturais e conhecimentos que, de várias maneiras, conectavam a África ao Extremo Oriente.

Na África Ocidental surgiu uma série de reinos de população negra, cuja base econômica estava no controle das rotas comerciais transaarianas. A antiga Costa do Ouro, atual Gana, deve seu nome moderno ligado ao de um antigo império que dominou a África Ocidental durante o período que corresponde à Idade Média europeia. O Reino de Gana ficava a muitos quilômetros ao norte do atual, entre o Deserto do Saara e os rios Níger e Senegal.

O antigo Reino de Gana foi provavelmente fundado durante os anos 300. Desde essa data até 770, seus governantes constituíram a Dinastia dos Magas, uma família berbere, apesar de o povo ser constituído por negros das tribos Soninque. Em 770, os Magas foram derrubados pelos Soninques, e o império expandiu-se amplamente sob o domínio de Kaya Maghan Sisse, que governou por volta de 790. A capital de Gana, Kumbi Saleh, tinha uma população com cerca de 15 mil pessoas, parte das quais muçulmanas, que participavam ativamente do comércio transaariano.

A maior parte da população de Gana era agricultora. Entretanto, o reino enriqueceu graças à sua localização, no extremo sul da rota comercial do Saara. Os berberes Sanhaja aprenderam a utilizar o camelo, que foi introduzido da Ásia a partir do Egito, e estabeleceram uma rota transaariana que ligava o Marrocos a Gana. No início, eles traziam sal e trocavam por ouro na base de um peso equivalente. A essa altura, o Reino de Gana passou a ser reconhecido como uma região extensamente rica em ouro. Gana atingiu o máximo de sua glória durante os anos 900 e atraiu a atenção dos árabes. Depois de muitos anos de luta, a Dinastia dos Almorávidas berberes subiu ao poder, embora não o tenha conservado durante muito tempo. O reino entrou em declínio e, em 1240, foi destruído pelo povo de Mali.

O Império de Mali deu início ao seu desenvolvimento como um pequeno Estado chamado Kangaba. Em 1235, um guerreiro chamado Sundiata tornou-se soberano e fundou o império. Sundiata construiu uma nova capital em Niani e conquistou territórios ao sul, onde havia minas de ouro, e ao norte, em Tanghaza, onde existia muito sal, controlando, assim, todo o comércio transaariano. O império anexou as cidades de Timbuktu e Gao. Entre os anos de 1324 e 1326, Mansa Kankan Musa fez sua peregrinação a Meca, levando consigo aproximadamente 60 mil servos, 100 camelos e enorme quantidade de ouro, no valor aproximado de três milhões de libras. Como resultado de sua peregrinação, o Império de Mali tornou-se conhecido por todo o mundo mediterrâneo, além de ter convertido a cidade de Tumbuktu, em 1337, em um famoso centro de estudos islâmicos.

Por volta do século XV, a Dinastia Songhai ganhou gradualmente a independência do Império de Mali. A expansão do Songhai avançou mais agressivamente com Sunni Ali, que conquistou o Mali em 1471. A organização de Songhai era mais elaborada que a de Mali. Askia Mohammed criou um exército profissional, o que melhorou a qualidade dos guerreiros e libertou o povo para a produção agrícola, artesanal e comercial ao reduzir os tributos cobrados da população.

Os reinos africanos da região se baseavam no controle das minas de ouro, em sua exportação para o norte e no comércio do sal, marfim, óleos vegetais e escravos. Os songhais estavam vinculados a uma segunda rota estabelecida a partir do Saara e que atingia o Mediterrâneo através da Argélia. Uma terceira ligava o Reino de Kanem, no Lago Tchad, à Tripolitânia e, já no século XIX, mais uma foi estabelecida pela irmandade dos senussi, ligando o Reino de Wadai a Benghazi que, como Trípoli, ficavam na atual Líbia. Assim, várias rotas de caravanas ligavam a África subsaariana ao Mediterrâneo.

VISENTINI, Paulo Fagundes et alli. História da África e dos africanos. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 34-36.

Nenhum comentário:

Postar um comentário