"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 11 de março de 2013

Arqueologia e poder


Pesquisa arqueológica em Bet Shemesh, Jerusalém, Israel

O poeta alemão Goethe descreveu, em 1788, com as seguintes palavras, os sentimentos que experimentara quando da sua primeira visita à Roma:

Também as antiguidades romanas começaram a me agradar. História, inscrições, museus, dos quais antes nada queria saber, tudo se abria diante de mim. O que se passara comigo quanto à história natural, aconteceu também aqui, pois neste lugar condensava-se toda a história do mundo e, desde o dia que fui para Roma, contei um segundo nascimento, um verdadeiro renascimento.

As impressões de Goethe ressaltam que a constituição de uma identidade depende da preservação de lugares com suas evocações à nossa memória, sendo o caso de Roma muito claro, com seus tantos monumentos de fama internacional: diante de tais monumentos o poeta acabou desenvolvendo uma admiração por aquela antiga civilização e reconhecendo-se, como ser humano, herdeiro das realizações daqueles antepassados. [...]

Embora os documentos escritos se prestem a essa reconstrução histórica, sua pouca acessibilidade confere-lhes uma significação consideravelmente menor do que a cultura material, cuja presença física atinge diretamente os membros da sociedade. Na concepção do arqueólogo [...] Karl-Heinz Otto, a arqueologia - ao resgatar os vestígios materiais das pessoas comuns, não apenas das elites, que monopolizaram os documentos escritos por milênios - permite ao cidadão "avaliar o papel dos homens comuns, o papel das massas populares, como agentes e forjadores da história".

O reconhecimento da significação político-ideológica da arqueologia não se restringe a apenas alguns grupos ou tendências. Em fins da década de 1970, um arqueólogo britânico [...], Grahame Clark, considerava que a arqueologia "apresenta questões mais radicais do que aquelas comumente posta pela ciência política ou pela sociologia, pois elas são colocadas numa perspectiva mais ampla", ao tratar das pessoas comuns, dos indígenas, sob uma perspectiva menos enviesada do que a prevalecente nas fontes escritas. Essa abordagem mais ampla da arqueologia engloba toda a história da humanidade [...] assim como permite um acesso ao conhecimento da vida e da história da imensa maioria de analfabetos de todos os tempos.

Qual a relação entre arqueologia, em geral percebida como uma ciência neutra, e a política, ou seja, a esfera das relações de poder? A arqueologia é sempre política, responde a necessidades político-ideológicas dos grupos em conflito nas sociedades contemporâneas. Como afirmou o arqueólogo britânico Clive Gable:

A arqueologia surgiu, de forma gradual, nos últimos duzentos anos como o estudo sistemático do passado. [...] A força motora foi a nova ordem política, social e econômica da Revolução Industrial, primeiro na Europa e depois na América do Norte. Uma reação à arqueologia imperialista foi a fundação do Congresso Mundial de arqueologia, em 1986 e a inovadora série de livros One World Archeology. [...]

[...]

A ligação entre arqueologia e política apresenta-se, contudo, sempre mediatizada. Não se trata apenas de justificar certas relações de poder, ou de fortalecer certas ideologias, mas de legitimá-las pela presença de testemunhos materiais que dêem sustentação científica a essas pretensões. [...]

A criação e a valorização de uma identidade nacional ou cultural relacionam-se, muitas vezes, com a arqueologia. Neste caso, predominam com frequência os interesses dos grupos dominantes mediados pela ação do Estado. Assim, por exemplo, a importância ideológica da arqueologia em Israel, bem como a grande participação de voluntários nas escavações e na preservação e exibição do material arqueológico, explica-se pela busca de identidade entre o atual Estado judeu e a antiga ocupação hebraica da Palestina.

A primazia cronológica da entrada dos judeus na região em relação aos filisteus serve como potente justificativa de sua reocupação pelos primeiros. [...]

[...]

A exploração e a valorização dos territórios nacionais implicam, também, um relacionamento particular entre a arqueologia, a sociedade e os grupos no poder. Trata-se, em geral, da incorporação de monumentos e objetos numa prática de valorização e transformação econômica da paisagem. [...]

[...]

[...] Um dos objetivos da New Archeology americana era, explicitamente, estudar modos de domínio da natureza por parte dos antigos habitantes indígenas, para permitir a utilização desse conhecimento no planejamento da futura exploração econômica das regiões estudadas pelos arqueólogos, na forma da implantação de indústria ou agricultura mecanizada capitalista.

De maneira geral, a arqueologia tem privilegiado os artefatos dos segmentos dominantes das sociedades estudadas como objetos admiráveis, justamente, pelo seu caráter elitista. [...] Pode-se, contudo, estudar a cultura material tanto de exploradores como de explorados, os objetos únicos e aqueles feitos em série.

[...]

[...] A partir da descolonização, a apropriação dos vestígios arqueológicos passou a ocorrer por mecanismos econômicos. Assim, com a expansão dos mercados de peças arqueológicas, a saída - em geral ilegal - de objetos da "periferia", países subdesenvolvidos, para o "centro", países desenvolvidos, efetua-se, primordialmente, pela venda das peças no mercado internacional. Isso significa que, à expropriação do período colonial, seguiu-se uma nova fase na qual a transferência do patrimônio arqueológico adquiriu, via mercado, uma capa de legalidade.

A arqueologia pode, contudo, ser usada por grupos subalternos na luta por seus direitos ou para criticar as injustiças e opressões sociais. Dois exemplos vêm logo à mente: a arqueologia preocupada com as relações de gênero e a que trata das relações étnicas e raciais com propostas claramente anti-racistas. [...]

Assim, por exemplo, estudos têm permitido mostrar como a cultura material ligada às mulheres, no mundo industrializado, foi usada para a liberação feminina. A pletora de máquinas domésticas, da lava-roupas à batedeira, nessa concepção, foi imprescindível para que as mulheres pudessem entrar no mercado de trabalho e adquirir, em poucas décadas, destaque e, mais importante, independência econômica. A relação entre homens e mulheres [...] foi, portanto, resultado, em parte ao menos, da cultura material voltada à satisfação das mulheres.

[...]

Outro bom exemplo de uso político do estudo da cultura material relaciona-se à luta contra o racismo e a opressão étnica. Assim, por exemplo, a defesa dos direitos de indígenas e afro-descendentes, nos Estados Unidos e alhures, tem contado com a concorrência da arqueologia preocupada com a valorização desses grupos étnicos. A arqueologia, também, tem mostrado como todas as sociedades do passado foram [...] resultado de fusão cultural, com mistura biológica e de costumes, desmistificando a própria noção de "pureza étnica". Enfim, todos somos beneficiários dessa arqueologia humanista, que visa combater as opressões.

FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2010. p. 99-106.

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