"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

“Entre homens”: homossexualidade e virilidade em 1968

Pátroclo, Jacques-Louis David

Se falar em sexo publicamente ainda era complicado nos anos 1968, era prudente que os homossexuais se reservassem ao espaço privado. Embora causassem polêmica, determinados comportamentos que confrontavam a noção de masculinidade criada pela sociedade não eram debatidos abertamente, como recorda Ricardo:

A gente supunha que algum rapaz que não falava em mulher, não jogava futebol e não bebia, pudesse ser uma mocinha. Mas, os homossexuais eram muito caricaturizados, discriminados, agredidos e era muito natural que não se expusessem.

A caracterização do homossexual atingia direto o estereótipo do "macho" e o preconceito era o preço mais alto a ser pago:

Eu fui criado numa sociedade onde ser homossexual era ser criminoso, era ser pecaminoso, uma coisa feia que não se conta, uma coisa vergonhosa. Então, o meu desejo foi levado... meu desejo ele foi ensinado a se manifestar somente em situações ligadas à marginalidade: Noite! A palavra noite é feminina já notaram? Dia é masculino: claro, luz, razão, precisão! Noite é feminina: escura, obscura, indefinida, marginal!... Então, meu desejo foi educado para ser ativado em locais tipo barzinhos à noite, becos escuros, saunas... Os tipos de caras que me atraem são caras assim, mais ou menos, que lembram esse ambiente, submundo de coisa assim.

Muitas vezes sem poder (e nem querer) frequentar os mesmos lugares que rapazes heterossexuais, a vivência homoerótica levava à prática de uma subcultura masculina, marginalizada. Os espaços de sociabilidade, caracterizados em sua grande maioria pela escuridão e seus sinônimos, eram restritos, e cabia ao jovem descobrir os mesmos. Os cinemas, desde décadas anteriores, eram espaços privilegiados para isso. Armando Antunes relembrou sua primeira experiência num cinema da capital mineira:

A primeira vez que eu fui num cinema e que aconteceu alguma coisa comigo foi no cine Piratininga. Eu sentei lá e de repente eu percebi que sentou alguém do meu lado, mas eu não me toquei, eu não estava ali para caçar. Eu era novo ainda. Quando eu percebi alguém me pegou. Eu senti uma mão me pegar. Mas eu dei um berro que o cara fugiu para um lado e eu fugi para o outro.

O grito instintivo não foi entendido por ele como uma agressão. Na verdade, foi o momento em que se deu conta de que não estava sozinho no mundo ao se interessar por um homem: "Eu não era a aberração da humanidade. Existia um núcleo, mas era um núcleo tão escondido que eu teria que procurar quem era". Armando relembra como começava um namoro na penumbra do cinema:

Você encostava a perna no rapaz e sentia se ele queria. Bom, se encostou e ele não tirou, é porque não se sentiu incomodado. Mas houve uma época em que o lanterninha pegava você no flagra. Ele jogava a lanterna em cima de você e chamava a polícia.

Se as condições permitissem, os contatos sexuais anônimos podiam terminar em masturbação mútua, em sexo ou em um hotel barato fora do cinema, como revelou o historiador americano James Green.

O Rio de Janeiro desde os anos de 1950 passou a atrair homens (que gostavam de homens) vindos de outros estados do país onde se sentiam pressionados, ou ainda hostilizados, pela família e pela sociedade em que viviam. Mudar-se para a cidade maravilhosa significava "livrar-se da supervisão e do controle familiar e da pressão para o casamento e filhos". Além do já consagrado local do centro da cidade nos arredores da Lapa, da Cinelândia e da Praça Tiradentes, os anos 1968 viram o bairro de Copacabana como o lugar de vida noturna mais vibrante não somente para a classe média em geral, mas também para os homossexuais. Este ainda é o momento em que estabelecimentos começam a atrair um público majoritariamente gay sem serem hostilizados pelos empresários locais. Algumas casas noturnas, como o Alfredão, o Alcatraz e o Stop, passaram a abrigar uma clientela composta por rapazes homossexuais. Entretanto, o grande charme de Copa era o mar e o desfile dos corpos seminus, que podiam ser observados sem pudor algum. E, em frente ao luxuoso hotel Copacabana Palace, local reservado ao jet set nacional e internacional, as bichas, como já eram chamadas desde os anos de 1930, fizeram do espaço o seu "posto", que passou a ser conhecido como a Bolsa de Valores: "lugar onde você pode mostrar-se aos holofotes e virar notícia tinha data e local marcado. O concurso de Miss Brasil era ponto de "bonecas", como também eram chamados os homossexuais mais afeminados, do Rio de Janeiro, como apresentou uma reportagem da revista Realidade:

Às oito da noite, 40 mil pessoas já estão no Marcanãzinho lotado, pois nada mais importante existe para elas que um concurso de Miss Brasil. O ginásio está explodindo em gritaria e aplausos, a cada "miss" que dá a paradinha, o rodopio e manda dois beijos para o público. De repente a polícia resolve entrar na "passarela". As "misses" assustadas saem correndo e dando gritinhos desesperados. Levantadas no ar, indefesas, pequeninhas diante do tamanho dos guardas. são levadas para algum canto misterioso. É o fim tradicional do desfile dos bonecas, ou transviados sexuais, que todo ano, em algum pedaço vazio da arquibancada, precede o desfile de verdade.

Entretanto, boa parte dos homossexuais se resignava a um universo privado, pessoal, muitas vezes relutando contra suas próprias vontades em nome do preconceito que lhes atingia. Mesmo nos círculos mais "avançados", como as organizações de esquerda que resistiram à ditadura militar, o homossexualismo era visto com muita reserva. Herbert Daniel, militante de organizações guerrilheiras, como a Polop (Política Operária) e a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), foi um desses que, em nome da aceitação no grupo e das práticas revolucionárias, negou sua sexualidade durante anos. Em seu livro, Meu corpo daria um romance, Herbert desabafa sua vida duplamente clandestina:

Quis extirpar o sexo antigo. Aos poucos, adotei um sexo futuro. novo, que naquele instante se tornava pura abstinência. A última vez que trepei com alguém deve ter sido em meados de 67. Abstinente passei toda a clandestinidade. Sete anos. (Não posso deixar de escrever o prometido elogio à punheta, senão dificilmente poderei fazer alguém compreender a minha clandestinidade. Porque creio que se tivesse apagado meu sexo nunca teria acreditado na militância. Um militante sem sexo é um totalitário perigoso. Um punheteiro é apenas um confuso ingênuo e esperançoso.)

As noites solitárias foram o preço a ser pago em nome de um "ideal" cujo "ideal de homem" era o guerrilheiro, viril e másculo. Os revolucionários dos anos 1968 carregavam muito do traço mais tradicional da cultura patriarcal desde a época colonial: a supremacia masculina. Nesta hegemonia, o importante era parecer "macho", mesmo não sendo.

James Green indicou que muitos homossexuais saíam em busca de homens "verdadeiros": uma reversão dos papéis tradicionais onde o sujeito "passivo" torna-se ativamente aquele que procura uma relação sexual. Segundo o brasilianista, essa dinâmica sexual, na qual o homossexual tinha de tomar a iniciativa, contribuiu para a formação de uma identidade imbuída de autoconfiança e que se contrapunha aos estereótipos sociais do bicha patético e passivo. É interessante ressaltar, com essa constatação. o quanto dos valores viris também foram apregoados por homossexuais. Uma reversão do entendimento, que vem desde o início da era cristã, de que o homem homossexual não era viril (lembrando que as relações homoeróticas entre gregos e romanos eram entendidas sobretudo como viris, expressando a potência masculina em detrimento do elemento feminino). Esta autoridade de si, juntamente com a evolução política dos anos 1968, permitiu o questionamento dos papéis sociais e sexuais rígidos assumidos pelas "bonecas", ou seja, de que para ser homossexual era preciso necessariamente ser efeminado. Certamente esses fatores contribuíram para formação de uma consciência que em fins dos anos 1970 passou a ser expressa pelo movimento gay no Brasil.

Angélica Müller. Não se nasce viril, torna-se: juventude e virilidade nos "anos 1968". In: PRIORE, Mary del; AMANTINO, Marcia. (Orgs.). História dos homens no Brasil. São Paulo: UNESP, 2013. p. 319-323.

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