"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A cidade do Novo Mundo no século XIX

5ª Avenida no Madison Square, Nova Iorque, 1894-1895. 
Theodore Robinson 

Apenas na segunda metade do século XIX assume o fenômeno urbano proporções dignas de nota. Nos Estados Unidos em 1850, mais de 19 milhões de habitantes, num total de 23 milhões, vivem ainda nos campos. Todas as cidades das regiões austrais são modestíssimas. Mas em 1900, de 75 milhões, 30 milhões de americanos são citadinos, 12 milhões aglomeram-se em cidades de mais de 100.000 habitantes - em número de 30. A partir de 1870, Chicago saltou, de 300.000 para 1.700.000; Nova Iorque ultrapassou os 3 milhões e Filadélfia, 1 milhão. O avanço, bem modesto na África do Sul, vigoroso no Canadá, afirma-se excepcionalmente rápido na Austrália, onde, em 1890, Sydney, Melbourne e Adelaide reúnem um quarto da população total, cabendo a Melbourne quase a metade dos habitantes de Victoria.

Rua George, Sydney, 1883. Alfred Tischbauer 

Nestas condições, surgem por toda a parte cidades novas e cidades-cogumelos. Na frente pioneira a cidade é uma formação primária - a rural non farm - que agrupa os albergues, as igrejas, as escolas, os postos de mudas de cada township. Corresponde, com efeito, à função de intercâmbio que se impôs imediatamente com homens do campo. Mas frequentemente a mina ou fábrica cria a cidade. Em tal caso, a toponímia evoca com intensidade o pensamento criador: assim, ao redor de Pittsburgh, os Bessemer, Etna, Carnegie, Monessen (Essen e Monongahela), alhures os Ironton, Ironmoutain e Ironwood. Há também capitais fundadas para abrigar os serviços governamentais e administrativos, a exemplo de Washington.
Passou o tempo em que era possível a compra de "todo o maldito pântano" de Chicago por um par de velhos sapatos, como se pretendeu mais tarde. John Astor, o comerciante de peles, deu o exemplo com a aquisição de terrenos em Nova Iorque; um de seus filhos, falecido em 1875, deixa uma fortuna de 100 milhões de dólares, dos quais 700 imóveis às margens do Hudson; em 1912, graças a novas compras e à alta da renda territorial, os Astor possuem um capital de 450 milhões. Em Chicago, o preço de 1.000 metros quadrados passa, de 20 dólares em 1830, a 1 milhão em 1892.

O loteamento regular de amplas superfícies, geograficamente cadastradas, explica o plano em tabuleiro. A este do Atlântico, a rua é alinhada segundo as casas, pois acompanha o desenho irregular das propriedades; aqui, a casa é que vem se colocar ao longo da rua. Resulta daí uma extrema monotonia, sublinhada pela numeração das ruas. Chicago, com 44.000 hectares, tem uma densidade quatro vezes menor que Londres (30.000) e Filadélfia (33.500), cinco vezes.

Este gigantismo dispersa as habitações, em geral pouco elevadas, frequentemente construídas de tijolos. O hábito de construir em altura apenas se manifestou após 1890, nos bairros de negócios, onde o terreno atingiu enormes valores: assim, por volta de 1890, na ponta de Manhattan, na cidade baixa, próxima do porto, levantam-se cerca de trinta imóveis de 10 a 30 andares, construídos por ricos particulares, companhias de seguros ou bancos. Não longe destes gigantes, que abrigam lojas e escritórios, estende-se uma zona de habitações, já escurecidas e maltratadas, progressivamente abandonadas à gente pobre; assim, por vezes, o slum é vizinho do arranha-céu; depois, estende-se para além uma nova cidade industrial, cercada por um subúrbio residencial. Em Nova Iorque, a parte oriental da cidade baixa é o bairro do sweating system; um segundo centro de negócios e de residências constitui-se no centro. Verifica-se a justaposição de conjuntos disparatados, sendo as perspectivas cortadas pelas vias férreas e pelas instalações industriais. Em Adelaide, ao contrário, a cidade do trabalho e a das residências são distintas, cada uma cercada de parques. As cidades australianas, de resto, parecem ser as mais cuidadas; as ruas são calçadas de madeira e as casas, pouco originais, não salientam demasiado as diferenças sociais. Nos Estados Unidos, bairros ricos e bairros pobres contrastam rudemente. Os viajantes descrevem complacentemente as belas vivendas dos círculos opulentos de Boston, de Filadélfia e de Nova Iorque; assim, o Barão de Hübner, por volta de 1875, admira, em Chicago, "a célebre Michigan Avenue... bairro da plutocracia, (suas) casas luxuosas, todas de madeira, mas estucadas e construídas nos mais diversos estilos, italiano clássico barroco, gótico, românico, quase todas cercadas ou precedidas de belos jardinzinhos..." Mas a poeira, no verão, a lama, no inverno, são verdadeiros flagelos. O fato de a 5ª Avenida em Nova Iorque ser um pouco tratada é uma exceção, nota um observador. Há imundícies por toda parte; em qualquer estação, é preciso usar botas de borracha. No Canadá, relata um outro, apenas são pavimentadas as ruas de Toronto e Winnipeg. A iluminação é superior à das cidades europeias, mas o sistema de esgotos deixa a desejar e, por vezes, há falta de água. Já em 1878 Búfalo inaugura um aquecimento central a vapor, adotado em seguida por Detroit e Nova Iorque. Multiplicam-se os meios de locomoções e, ao contrário das cidades australianas, que dão uma impressão de tranquilidade, com seus ônibus puxados por cavalos, as aglomerações americanas espantam o visitante com o estrépido de seus veículos.

Tempestade de neve, Madison Square, Nova Iorque, ca. 1890. Childe Hassam

O colorido étnico caracteriza também as cidades dos Estados Unidos. Em Nova Iorque, italianos, irlandeses, judeus, negros têm seus bairros próprios. O melting-pot não faz, de maneira alguma, desaparecerem estes particularismos; cria e acrescenta a cada tipo especial um tipo suplementar, americano, que é o tipo comum.

SCHNERB, Robert. O Século XIX: as civilizações não-eruopeias; o limiar do século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. p. 39-41, (História geral das civilizações, v. 14)

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