Você
está quase no final de um século que vi nascer. No exercício de minha
profissão, encontrei indícios, vestígios, e propus hipóteses sobre como vivia o
Homem do passado, como usava suas ferramentas, como preparava suas armas.
Meu
caro colega, mesmo não sabendo como você é - talvez uma máquina inteligente -,
escrevo-lhe como se estivesse dirigindo-me a um Homem. E escrevo-lhe com a
emoção de um Homem. Um Homem desse início de século que nos abriga. Caso
encontre dificuldade em entender-me, tenho certeza de que poderá recorrer a
sofisticados dicionários, a sofisticados programas para computador, que lhe
permitirão descobrir o sentido exato das minhas palavras.
No
início, todos os Homens viviam como caçadores-coletores. Para adquirir
conhecimento e conviver com as outras espécies da natureza, para sobreviver com
os parcos recursos biológicos que tinham, esses Homens necessitavam de grande
coesão social. O saber era passado dos adultos para os jovens, igualmente.
Sabiam que não podiam ter proles numerosas porque, ao contrário dos outros
animais, o filhote humano levava anos para aprender e ser capaz de sobreviver
só. Todos executavam todas as tarefas, todos eram iguais. Os chefes comandavam
com base em sua força física, que, como todos os recursos biológicos, nasce,
atinge seu apogeu e definha. Assim, um chefe exercia seu poder durante um tempo
limitado, até que um outro membro da tribo, mais jovem, mais forte, o
suplantava.
Os
Homens temiam a natureza, reconheciam seu poder, um poder que, para eles,
emanava de entidades sobrenaturais. E essas entidades sobrenaturais comandavam
as águas, os ventos, o fogo, os astros. Seres que viviam por sua conta e cuja
passagem pela vida dos Homens era eventual. Os espíritos!
Em
um momento dado de nossa história, alguém imaginou como fazer para garantir um
poder mais duradouro, que não dependesse unicamente dos recursos biológicos.
Como a morte é um fenômeno que assusta a todos os animais, esse alguém imaginou
uma história que tratava do além, da existência de seres sobrenaturais, da boa
vontade dos quais dependeria a vida e o destino pós-morte de todos os Homens.
Os Deuses!
Nesse
momento começaram a se diferenciar os Homens. Aqueles que somente sabiam
conviver com a natureza, que dependiam de sua força para sobreviver, e aqueles
que tratavam com os deuses: os sacerdotes. Os últimos, constituíam uma casta
privilegiada, com poder assegurado. Com o poder assegurado, não tinham mais que
enfrentar a vida difícil do dia-a-dia, pois recebiam dádivas daqueles que não
tinham o poder de tratar com as divindades.
Mas
como os Deuses eram muitos, havia a possibilidade de tratar com seus
intermediários, e o poder se diluía. Como concentrá-lo, então? Como colocar
mais elementos de uma família, de um clã, no exercício do poder?
Novamente
um gênio inventou outra forma de poder. Os Deuses escolhiam e davam a um homem
o poder para que ele fosse o chefe de todo seu grupo. E esse privilégio passava
de pai a filho. Nasceram, assim, as dinastias. O poder concentrava-se cada vez
mais.
As
sociedades começaram a crescer além dos limites permitidos pela natureza, pois,
para que alguns pudessem viver sem fazer nada, além de falar com os Deuses e
dar ordens a seus súditos, para que pudessem viver em palácios, mergulhados em
rendas e comendo iguarias, deveriam existir milhões de escravos, trabalhando
para ter direito ao pão, à água e à procriação, engendrando muitos futuros
escravos. Templos, túmulos monumentais e palácios, sempre exigiram multidões de
escravos para serem construídos e mantidos.
Com
o aparecimento da escrita, das castas, o saber ficou concentrado naqueles que
dominavam. Não era mais todos ensinando a todos. Assim, começaram a aparecer as
classes cultivadas e os ignorantes. Sempre poucos letrados para muitos ignaros.
E
depois? Depois, um novo passo foi dado para concentrar e tornar o poder
definitivamente esmagador. Um espírito genial criou o Deus único, engendrou o
monoteísmo. Concentrou-se o poder em um homem que representava Deus, infalível,
cuja palavra deveria ser seguida sem discussões. Em torno dele toda uma corte,
formando uma estrutura triangular, sempre poucos no alto, muitos na base. O
judaísmo, o catolicismo, o islamismo, o protestantismo. Cada grupo inventando
seu próprio Deus, único, o certo, o bom, o que devia ser adorado. Quem nele não
acreditasse, deveria ser exterminado.
Poder
religioso e seu derivado, o poder civil, nunca se dissociaram. Juntos
escreveram páginas com o sangue de todos os que se rebelavam e poderiam
representar a menor ameaça a esse estado de coisas.
Assim,
durante milênios, a sociedade humana acostumou-se com as guerras, com o
extermínio dos que pensavam diferente, dos que não queriam se submeter e ser
escravos.
Guerras
pelo domínio das terras e dos povos, das riquezas do mundo. Guerras e
perseguições contra os que negavam ou duvidavam do poder divino.
Os
que falavam da bondade de Deus, de sua misericórdia, eram os que torturavam,
mantinham em masmorras e matavam os que ousavam duvidar de sua palavra. Mesmo
aqueles que não duvidavam, mas que representavam uma presa interessante, pela
sua fortuna, por sua mulher, por suas terras, também eram perseguidos,
eliminados.
E
como o Poder nunca se sacia, quanto mais baixo encontrava-se o Homem na escala
social, mais filhos deveria produzir. Sempre com a idéia de que, para
sobreviver, necessitava de muitas mãos, mãos que o ajudariam a trabalhar e,
mais e mais, agradar ao Poder.
Assim
vimos Homens torturando, matando, chacinando outros Homens. Vimos a Idade
Média, a Inquisição. A invasão das Américas e o aniquilamento de milhões de
seres humanos que compunham os primeiros povos, que partilhavam as terras com
todas as outras espécies, que viam o verde das matas e escutavam a algaravia
dos bichos.
Em
um dado momento, alguém se lembrou de um tipo de governo que havia existido em
um pequeno país, criador de uma civilização, onde a cultura era difundida e o
povo tinha suas tradições, a democracia. Imediatamente, esse alguém pensou nas
possibilidades que ela abriria se fosse implantada em países com elites cultas
e massas incultas. O povo acreditou que estava elegendo seus representantes. E,
assim, o Poder, ao invés de ter que contentar milhões, teve unicamente de
enriquecer, dar empregos e acanalhar os representantes desses milhões, algumas
centenas de cidadãos que passaram a integrar um novo Poder. Assim nasceram os políticos,
prometendo uma vida maravilhosa para os que nele votassem, mas pedindo que
esquecessem o que haviam escrito ou prometido no instante em que se viram
investidos de Poder.
Vimos
agir o nazismo, o fascismo, o comunismo. Homens sendo assassinados em câmaras
de gás, fuzilados, torturados. Hiroshima e Nagasaki. Os brancos rejeitando os
negros e os amarelos, os negros rejeitando os brancos e os amarelos, os
amarelos rejeitando brancos e negros. Os capitalistas. As classes
trabalhadoras. E cada vez mais os donos do Poder aprimoravam-se. A transmissão
do saber, que havia sido concentrada, que havia passado da Igreja para a
Universidade, formando jovens capazes de pensar e protestar, tinha de ser
demolida. E a Universidade foi destruída. Ao invés do saber, ofereciam-se
diplomas.
O
Poder concentrou-se na tecnologia. Os tecnocratas, sem pensar em algo mais
sofisticado, menos simplista, ativeram-se apenas às operações necessárias para
conseguir que uma máquina executasse uma tarefa específica, que o computador
resolvesse determinado problema. Tudo orquestrado para que a necessidade de
consumo aumentasse a cada instante, e mais impostos fossem pagos. Impostos que
garantiriam educação para seus filhos, saúde para a família, estradas, cidades
limpas e seguras, o direito ao lazer. E o Poder recebia os impostos e decidia o
que fazer com eles, mudando seus destinos, oferecendo escola de péssimo nível,
saúde que significava morte mais rápida, bandidos ameaçando a todos. O Poder
podia solicitar empréstimos, aceitar juros extorsivos, quando precisava de
dinheiro para uma fantasia qualquer, como construir uma capital nova! Mas quem
pagava os empréstimos, mais os juros, era o povo, cujos filhos já nasciam com
uma dívida enorme.
O
rosário de sandices continuou: abriram a possibilidade para que o Homem fosse
diferente dos outros animais de sua família. O Homem poderia viver mais do que
seus primos macacos. Que felicidade... Para viver mais, trabalharia mais, e
manteria todo o sistema necessário, com isso continuaria arrastando seus males
pelo mundo.
Num
mundo onde só existia espaço para a arrogância, as outras espécies passaram a
existir apenas em função das necessidades do Homem. Os animais eram torturados,
viviam em pânico, aterrorizados.
Por
quê? O porquê de tanta atrocidade? É isso que está me perguntando, meu caro
colega do futuro?
Apenas
para produzir mais e para nutrir a espécie que se fez dominante. E não parou
por aí, não: milhares e milhares de espécies vegetais foram destruídas, dando
lugar apenas àquelas que interessavam ao Homem. Animais e plantas foram
modificados geneticamente para aumentar a produtividade. Isso, apesar de
continuarem pregando que Deus havia criado o mundo, e tudo o que existia sobre
a face da Terra. O Homem corrigia e melhorava o que Deus havia feito!
Para
culminar, decidiram que nem mesmo os filhos poderiam substituir os pais. O amor
ao Poder era tal que criaram a técnica da clonagem, e cada um foi substituído
por si mesmo. A reprodução e os riscos de ver nascer um filho que não fosse
digno de seu patrimônio ficou relegada aos que não tinham meios para se
auto-reproduzir.
Destruíram,
meu caro colega, a beleza do mundo, o prazer da vida. As primeiras sociedades
humanas, pouco numerosas, eram solidárias. A generosidade da natureza podia
manter todos saudáveis. As sociedades humanas no início desse nosso século são
compostas por bilhões de pessoas. Sociedades, na sua grande maioria, doentes,
solitárias. A natureza foi destruída. Todo o alimento tem de ser comprado. A
água tem de ser comprada. Os dons da natureza, hoje, têm seus donos: o Poder. O
Poder, sob suas inúmeras formas. A competição é a regra da vida, e todos os
Homens, mesmo sem ter consciência, odeiam seus semelhantes, potenciais
competidores. E a eles atribuem a culpa de não poderem viver melhor.
E
o que aconteceu com o Homem? É isso que está querendo saber agora, meu caro
colega? Infelizmente, não poderei lhe responder a essa pergunta. Parti há
muito. Mas tenho algumas curiosidades a respeito do seu tempo. Me diga: o Sol
que o aquece agora é o mesmo que vejo brilhar lá fora, ou ele foi substituído
por algo artificial? As geleiras dos Pólos degelaram e invadiram territórios
hoje ocupados por populações costeiras? O que restou da camada de ozônio? Ela
ainda existe? E a Floresta Amazônica, o que foi feito dela? Esvaiu-se em fogo e
fumaça? A caatinga sobreviveu? Ou você nunca ouviu falar sobre ela? Você já
ouviu falar em macaco-prego? Já ouviu falar em veados-galheiros, vaga-lumes,
bem-te-vis? Em tamanduás? Em tatus, araras azuis e vermelhas, sapos, morcegos,
onças, cobras, beija-flores, sabiás? Já conjugou o verbo sonhar, sorrir,
acreditar? E as mentes? Conseguiram eles, por fim, dominar todas as mentes?
Nesse
instante, caro colega do futuro, estendo o meu olhar pela vastidão do que ainda
é um pedaço do paraíso - um pedaço do paraíso chamado Serra da Capivara -, que
Poderes nada ocultos insistem em ignorar, em destruir, e entrego-lhe este texto
para que continue a contar como prosseguiu a nossa história, a história de
todos nós. Uma história que, por séculos e séculos, tem sido de amargura,
aflição e terror.
Niède Guidon, arqueóloga