"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 30 de março de 2012

Ao arqueólogo do futuro [Carta de uma arqueóloga do presente]

Niède Guidon com crânio milenar da Serra da Capivara

Caro colega do futuro,

Você está quase no final de um século que vi nascer. No exercício de minha profissão, encontrei indícios, vestígios, e propus hipóteses sobre como vivia o Homem do passado, como usava suas ferramentas, como preparava suas armas.

Meu caro colega, mesmo não sabendo como você é - talvez uma máquina inteligente -, escrevo-lhe como se estivesse dirigindo-me a um Homem. E escrevo-lhe com a emoção de um Homem. Um Homem desse início de século que nos abriga. Caso encontre dificuldade em entender-me, tenho certeza de que poderá recorrer a sofisticados dicionários, a sofisticados programas para computador, que lhe permitirão descobrir o sentido exato das minhas palavras.

No início, todos os Homens viviam como caçadores-coletores. Para adquirir conhecimento e conviver com as outras espécies da natureza, para sobreviver com os parcos recursos biológicos que tinham, esses Homens necessitavam de grande coesão social. O saber era passado dos adultos para os jovens, igualmente. Sabiam que não podiam ter proles numerosas porque, ao contrário dos outros animais, o filhote humano levava anos para aprender e ser capaz de sobreviver só. Todos executavam todas as tarefas, todos eram iguais. Os chefes comandavam com base em sua força física, que, como todos os recursos biológicos, nasce, atinge seu apogeu e definha. Assim, um chefe exercia seu poder durante um tempo limitado, até que um outro membro da tribo, mais jovem, mais forte, o suplantava.

Os Homens temiam a natureza, reconheciam seu poder, um poder que, para eles, emanava de entidades sobrenaturais. E essas entidades sobrenaturais comandavam as águas, os ventos, o fogo, os astros. Seres que viviam por sua conta e cuja passagem pela vida dos Homens era eventual. Os espíritos!

Em um momento dado de nossa história, alguém imaginou como fazer para garantir um poder mais duradouro, que não dependesse unicamente dos recursos biológicos. Como a morte é um fenômeno que assusta a todos os animais, esse alguém imaginou uma história que tratava do além, da existência de seres sobrenaturais, da boa vontade dos quais dependeria a vida e o destino pós-morte de todos os Homens. Os Deuses!

Nesse momento começaram a se diferenciar os Homens. Aqueles que somente sabiam conviver com a natureza, que dependiam de sua força para sobreviver, e aqueles que tratavam com os deuses: os sacerdotes. Os últimos, constituíam uma casta privilegiada, com poder assegurado. Com o poder assegurado, não tinham mais que enfrentar a vida difícil do dia-a-dia, pois recebiam dádivas daqueles que não tinham o poder de tratar com as divindades.

Mas como os Deuses eram muitos, havia a possibilidade de tratar com seus intermediários, e o poder se diluía. Como concentrá-lo, então? Como colocar mais elementos de uma família, de um clã, no exercício do poder?

Novamente um gênio inventou outra forma de poder. Os Deuses escolhiam e davam a um homem o poder para que ele fosse o chefe de todo seu grupo. E esse privilégio passava de pai a filho. Nasceram, assim, as dinastias. O poder concentrava-se cada vez mais.

As sociedades começaram a crescer além dos limites permitidos pela natureza, pois, para que alguns pudessem viver sem fazer nada, além de falar com os Deuses e dar ordens a seus súditos, para que pudessem viver em palácios, mergulhados em rendas e comendo iguarias, deveriam existir milhões de escravos, trabalhando para ter direito ao pão, à água e à procriação, engendrando muitos futuros escravos. Templos, túmulos monumentais e palácios, sempre exigiram multidões de escravos para serem construídos e mantidos.

Com o aparecimento da escrita, das castas, o saber ficou concentrado naqueles que dominavam. Não era mais todos ensinando a todos. Assim, começaram a aparecer as classes cultivadas e os ignorantes. Sempre poucos letrados para muitos ignaros.

E depois? Depois, um novo passo foi dado para concentrar e tornar o poder definitivamente esmagador. Um espírito genial criou o Deus único, engendrou o monoteísmo. Concentrou-se o poder em um homem que representava Deus, infalível, cuja palavra deveria ser seguida sem discussões. Em torno dele toda uma corte, formando uma estrutura triangular, sempre poucos no alto, muitos na base. O judaísmo, o catolicismo, o islamismo, o protestantismo. Cada grupo inventando seu próprio Deus, único, o certo, o bom, o que devia ser adorado. Quem nele não acreditasse, deveria ser exterminado.

Poder religioso e seu derivado, o poder civil, nunca se dissociaram. Juntos escreveram páginas com o sangue de todos os que se rebelavam e poderiam representar a menor ameaça a esse estado de coisas.

Assim, durante milênios, a sociedade humana acostumou-se com as guerras, com o extermínio dos que pensavam diferente, dos que não queriam se submeter e ser escravos.

Guerras pelo domínio das terras e dos povos, das riquezas do mundo. Guerras e perseguições contra os que negavam ou duvidavam do poder divino.

Os que falavam da bondade de Deus, de sua misericórdia, eram os que torturavam, mantinham em masmorras e matavam os que ousavam duvidar de sua palavra. Mesmo aqueles que não duvidavam, mas que representavam uma presa interessante, pela sua fortuna, por sua mulher, por suas terras, também eram perseguidos, eliminados.

E como o Poder nunca se sacia, quanto mais baixo encontrava-se o Homem na escala social, mais filhos deveria produzir. Sempre com a idéia de que, para sobreviver, necessitava de muitas mãos, mãos que o ajudariam a trabalhar e, mais e mais, agradar ao Poder.

Assim vimos Homens torturando, matando, chacinando outros Homens. Vimos a Idade Média, a Inquisição. A invasão das Américas e o aniquilamento de milhões de seres humanos que compunham os primeiros povos, que partilhavam as terras com todas as outras espécies, que viam o verde das matas e escutavam a algaravia dos bichos.

Em um dado momento, alguém se lembrou de um tipo de governo que havia existido em um pequeno país, criador de uma civilização, onde a cultura era difundida e o povo tinha suas tradições, a democracia. Imediatamente, esse alguém pensou nas possibilidades que ela abriria se fosse implantada em países com elites cultas e massas incultas. O povo acreditou que estava elegendo seus representantes. E, assim, o Poder, ao invés de ter que contentar milhões, teve unicamente de enriquecer, dar empregos e acanalhar os representantes desses milhões, algumas centenas de cidadãos que passaram a integrar um novo Poder. Assim nasceram os políticos, prometendo uma vida maravilhosa para os que nele votassem, mas pedindo que esquecessem o que haviam escrito ou prometido no instante em que se viram investidos de Poder.

Vimos agir o nazismo, o fascismo, o comunismo. Homens sendo assassinados em câmaras de gás, fuzilados, torturados. Hiroshima e Nagasaki. Os brancos rejeitando os negros e os amarelos, os negros rejeitando os brancos e os amarelos, os amarelos rejeitando brancos e negros. Os capitalistas. As classes trabalhadoras. E cada vez mais os donos do Poder aprimoravam-se. A transmissão do saber, que havia sido concentrada, que havia passado da Igreja para a Universidade, formando jovens capazes de pensar e protestar, tinha de ser demolida. E a Universidade foi destruída. Ao invés do saber, ofereciam-se diplomas.

O Poder concentrou-se na tecnologia. Os tecnocratas, sem pensar em algo mais sofisticado, menos simplista, ativeram-se apenas às operações necessárias para conseguir que uma máquina executasse uma tarefa específica, que o computador resolvesse determinado problema. Tudo orquestrado para que a necessidade de consumo aumentasse a cada instante, e mais impostos fossem pagos. Impostos que garantiriam educação para seus filhos, saúde para a família, estradas, cidades limpas e seguras, o direito ao lazer. E o Poder recebia os impostos e decidia o que fazer com eles, mudando seus destinos, oferecendo escola de péssimo nível, saúde que significava morte mais rápida, bandidos ameaçando a todos. O Poder podia solicitar empréstimos, aceitar juros extorsivos, quando precisava de dinheiro para uma fantasia qualquer, como construir uma capital nova! Mas quem pagava os empréstimos, mais os juros, era o povo, cujos filhos já nasciam com uma dívida enorme.

O rosário de sandices continuou: abriram a possibilidade para que o Homem fosse diferente dos outros animais de sua família. O Homem poderia viver mais do que seus primos macacos. Que felicidade... Para viver mais, trabalharia mais, e manteria todo o sistema necessário, com isso continuaria arrastando seus males pelo mundo.

Num mundo onde só existia espaço para a arrogância, as outras espécies passaram a existir apenas em função das necessidades do Homem. Os animais eram torturados, viviam em pânico, aterrorizados.

Por quê? O porquê de tanta atrocidade? É isso que está me perguntando, meu caro colega do futuro?

Apenas para produzir mais e para nutrir a espécie que se fez dominante. E não parou por aí, não: milhares e milhares de espécies vegetais foram destruídas, dando lugar apenas àquelas que interessavam ao Homem. Animais e plantas foram modificados geneticamente para aumentar a produtividade. Isso, apesar de continuarem pregando que Deus havia criado o mundo, e tudo o que existia sobre a face da Terra. O Homem corrigia e melhorava o que Deus havia feito!

Para culminar, decidiram que nem mesmo os filhos poderiam substituir os pais. O amor ao Poder era tal que criaram a técnica da clonagem, e cada um foi substituído por si mesmo. A reprodução e os riscos de ver nascer um filho que não fosse digno de seu patrimônio ficou relegada aos que não tinham meios para se auto-reproduzir.

Destruíram, meu caro colega, a beleza do mundo, o prazer da vida. As primeiras sociedades humanas, pouco numerosas, eram solidárias. A generosidade da natureza podia manter todos saudáveis. As sociedades humanas no início desse nosso século são compostas por bilhões de pessoas. Sociedades, na sua grande maioria, doentes, solitárias. A natureza foi destruída. Todo o alimento tem de ser comprado. A água tem de ser comprada. Os dons da natureza, hoje, têm seus donos: o Poder. O Poder, sob suas inúmeras formas. A competição é a regra da vida, e todos os Homens, mesmo sem ter consciência, odeiam seus semelhantes, potenciais competidores. E a eles atribuem a culpa de não poderem viver melhor.

E o que aconteceu com o Homem? É isso que está querendo saber agora, meu caro colega? Infelizmente, não poderei lhe responder a essa pergunta. Parti há muito. Mas tenho algumas curiosidades a respeito do seu tempo. Me diga: o Sol que o aquece agora é o mesmo que vejo brilhar lá fora, ou ele foi substituído por algo artificial? As geleiras dos Pólos degelaram e invadiram territórios hoje ocupados por populações costeiras? O que restou da camada de ozônio? Ela ainda existe? E a Floresta Amazônica, o que foi feito dela? Esvaiu-se em fogo e fumaça? A caatinga sobreviveu? Ou você nunca ouviu falar sobre ela? Você já ouviu falar em macaco-prego? Já ouviu falar em veados-galheiros, vaga-lumes, bem-te-vis? Em tamanduás? Em tatus, araras azuis e vermelhas, sapos, morcegos, onças, cobras, beija-flores, sabiás? Já conjugou o verbo sonhar, sorrir, acreditar? E as mentes? Conseguiram eles, por fim, dominar todas as mentes?

Nesse instante, caro colega do futuro, estendo o meu olhar pela vastidão do que ainda é um pedaço do paraíso - um pedaço do paraíso chamado Serra da Capivara -, que Poderes nada ocultos insistem em ignorar, em destruir, e entrego-lhe este texto para que continue a contar como prosseguiu a nossa história, a história de todos nós. Uma história que, por séculos e séculos, tem sido de amargura, aflição e terror.

Niède Guidon, arqueóloga

quinta-feira, 29 de março de 2012

O reino do Congo

Mais ao sul, na margem meridional do baixo rio Congo, existiu um reino que se tornou conhecido não só em razão da influência que teve sobre os povos da região, mas porque sobre ele foram deixados relatos, feitos por europeus que o conheceram e nele moraram. Estes, além de suas observações, registraram a história oral dos povos locais. Os textos que escreveram são a base para reconstituirmos a história dessa sociedade, que se formou a partir da chegada de grupos vindos do noroeste, da outra margem do rio Congo.

Os membros desse grupo de estrangeiros, que seguiam a liderança de Nimi a Lukeni, passaram a ser chamados de muchicongos e ocuparam terras já habitadas por outros povos bantos, como eles. Por meio de casamentos e alianças, os recém-chegados se misturaram aos antigos moradores dessas áreas, mas guardaram para si as posições de maior autoridade e poder. Sob a liderança dos muchicongos, radicados na capital (Banza Congo), se formou uma federação de províncias às quais pertenciam conjuntos de aldeias. Nestas continuaram em vigor os poderes tradicionais das famílias, as candas, que as haviam fundado. Nas aldeias, um chefe e seu conselho tratavam de todos os assuntos referentes à vida da comunidade. Já um conjunto delas estava submetido à autoridade de um chefe regional, que fazia a ligação delas com a capital, de onde o ntotila, ou mani Congo, governava todo o reino.


Banza Congo, ou São Salvador, como a capital do reino do Congo passou a ser chamada depois de seus chefes adotarem o catolicismo, em gravura do século XVII

Nas aldeias foram mantidas as chefias existentes antes da chegada dos muchicongos. Nas províncias, como os europeus passaram a chamar os conjuntos de várias aldeias, elas foram divididas entre chefes das candas tradicionais e chefes indicados pelo mani Congo entre os descendentes dos muchicongos. O reino do Congo se formou a partir da mistura, por meio de casamentos, de uma elite tradicional com uma elite nova, descendente dos estrangeiros que vieram do outro lado do rio. Isso ocorreu no início do século XV, e quando os portugueses a ele chegaram (o primeiro contato se deu em 1483), encontraram uma sociedade hierarquizada, com aglomerados populacionais que funcionavam como capitais regionais e uma capital central, na qual o mani Congo, como o obá do Benin e muitos outros chefes de grupos diversos, vivia em construções grandiosas, cercado de suas mulheres e filhos, conselheiros, escravos e ritos.

No reino do Congo, ou no que assim foi chamado pelos europeus que o descreveram, moravam povos agricultores que, quando convocados pelo mani Congo, partiam em sua defesa contra inimigos de fora ou para controlar rebeliões de aldeias que queriam se desligar do reino. Aldeias (lubatas) e cidades (banzas) pagavam tributos ao mani Congo, geralmente com o que produziam: alimentos, tecidos de ráfia vindos do nordeste, sal vindo da costa, cobre vindo do sudeste e zimbos (pequenos búzios afunilados colhidos na região de Luanda que serviam de moeda). Nos mercados regionais, geralmente nas capitais das províncias, eram trocados produtos de diferentes zonas, e a capital do reino, Banza Congo, se situava na confluência de várias rotas comerciais. Ali o mani Congo, cercado de seus conselheiros, controlava o comércio, o trânsito de pessoas, recebia os impostos, exercia a justiça, buscava garantir a harmonia da vida do reino e das pessoas que viviam nele. Os limites do reino eram traçados pelo conjunto de aldeias que pagavam tributos ao poder central, devendo fidelidade a ele e recebendo proteção, tanto para os assuntos desde mundo como para os assuntos do além, pois o mani Congo também era responsável pelas boas relações com os espíritos e os ancestrais.

Banza Congo, assim como a capital do Benin, era uma cidade do tamanho das capitais europeias da época. O mani Congo vivia em construções que se destacavam das outras pelo tamanho, pelos muros que a cercavam, pelo labirinto de passagens que levavam de um edifício a outro e pelos aposentos reais que ficavam no centro desse conjunto e eram decorados de tapetes e tecidos de ráfia. Ali o mani vivia com suas mulheres, filhos, parentes, conselheiros, escravos, e só recebia os que tivessem nobreza suficiente para gozar desse privilégio. Na praça é que participava das cerimônias públicas e fazia contato com seu povo. Além do mani Congo e sua corte, moravam na cidade artesãos, comerciantes, soldados, agricultores e cativos.

Imagem do Atlas da viagem ao Congo e ao interior da África Equinocial, Jean Baptiste Douville

Quando os portugueses conheceram esse reino, logo viram que seria um bom parceiro comercial, e trataram de manter relações amistosas com ele. O mani Congo e os chefes que o cercavam também perceberam que poderiam lucrar com a aproximação com os portugueses e a eles se associaram. Por mais de três séculos congoleses e portugueses mantiveram relações comerciais e políticas pautadas pela independência dos dois reinos, mas os portugueses acabaram pro controlar a região, que hoje corresponde ao norte de Angola.

SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil Africano. São Paulo: Ática, 2007. p. 38-40.

terça-feira, 27 de março de 2012

O coronel e o cangaceiro

As ideias do coronel Chico Heráclio, o Leão das Varjadas [O coronel foi entrevistado na varanda de sua casa, pelo repórter José Hamilton Ribeiro, a serviço da Revista Realidade, em 1966. Entrevista adaptada]

Família do coronel Chico Heráclio

P - O Sr. é rico, coronel?
R - Meu filho, você viu a minha casa. Tem geladeira? Televisão? Até o rádio anda enguiçado... O que tenho construí com meu trabalho aqui na fazenda, pois nunca fui dado às letras. Comecei a estudar no Recife, mas uma epidemia me trouxe de volta, ainda menino.

P - Não concluiu nem o primário?
R - Já tive inimigo querendo cassar meu título de eleitor por analfabetismo, ora veja! Mas, minha pouca ilustração não me atrapalhou no governo das nossas 13 fazendas e dois engenhos.

P - Sua família é muito grande, coronel?
R - Sou viúvo três vezes. Aquela mocinha que você viu lá dentro, bulindo comigo, não é esposa não! É minha afilhada e arrumadeira. Tenho quatro filhos, o menor é esse ximbute de 13 anos. Mas filho meu só é de maior quando eu morrer. Ninguém fuma nem bebe na minha frente. Nem o Francisco e o Heraclinho, que são deputados. Aliás, esse é o único diploma que dei para eles, o de deputado. O José não tem porque não quer.

P - Desculpe, coronel Chico, mas corre por aí que o Sr. tem mais de 40 filhos naturais...
R - Calúnia dos adversários, meu filho. Devo ter só uns 20 ou 30. E não desamparo nenhum. Aqui na Fazenda das Varjadas eu faço de tudo: dou injeção, distribui pílulas, empresto dinheiro, até já casei e batizei, no tempo em que existia união em Limoeiro e todos viviam bem.

P - Mas afilhados são muitos, não?
R - Mais de dez mil, menino. E compadres e comadres muito fiéis. Graças a eles nunca perdi eleição para prefeito, desde 1922.

P - Então o Sr. é muito querido...
R - Olha, a maior riqueza do mundo são as amizades, e nisso eu estou bem servido, graças a Deus. A Maria das Flores, que eu lhe apresentei há pouco, trabalha demais nas eleições. Não sei se você viu, mas ela me trouxe uma lista de 1.500 novos eleitores. Quer maior prova de amizade? Teve até um caso engraçado: ela alistou duas irmãs, de 16 e 17 anos, aumentando a idade das moças pra 18. Quer dizer, a Maria fez as duas irmãs ficar gêmeas...

Com a palavra Volta-Seca, ex-cangaceiro do bando de Lampião [A entrevista com o ex-cangaceiro foi feita em 1974, pelo jornal Pasquim, em sua casa na zona rural do Rio de Janeiro. Texto adaptado]

Bando de Lampião. Volta-Seca, ainda menino, é o primeiro da direita para a esquerda, na fila da frente

P - Quando você entrou para o cangaço?
R - Saí de casa aos nove anos, não aturava minha madrasta. Vendi doces pra poder comer, vendi água num animal, saí pelo mundo sem destino, sem ninguém por mim, só Deus.

P - Aí você virou cangaceiro?
R - Um sujeito abusou da minha irmã e eu fui lá saber. Reclamei com o juiz, ele não fez nada, aí eu pensei: "a justiça aqui quem faz sou eu mesmo". Enterrei a faca no umbigo dele. E me joguei no mundo. Sozinho, sem bando ainda.

P - Com nove anos?
R - É. Um cara que queria ser meu cunhado veio em meu encalço, ele era soldado, matei ele também. Pensei: quem tá perdido pelo caminho não vai pra casa. Eu num tenho mais liberdade na vida, num tenho mais sorte na vida. A minha vida é essa mesmo. No mundo: Bom Conselho, Antas, Jair Mulato, Santa Brisa...

P - Sozinho o tempo todo?
R - Em Goloso, Lampião chegou com uns nove companheiros e me pediu pra dar banho nos cavalos deles. Com sabão eucalói, vidro de loção! Até eu tomei banho, uai! O capitão gostou de mim, mas eu não queria ir. "Você quer ir ou quer morrer? Escolhe um dos dois". "Eu vou, capitão!" Tinha 11 anos.

P - Como você foi recebido no grupo?
R - Muito bem. O capitão disse: "olha esses homens que você tá vendo aqui, é todos por um e um por todos. Se você tomar um tiro ali, eles estão aqui pra lhe acudir; se um tomar também, você tá aí pra acudir. Então num tem ás nem reis. Eu sou o chefe. Mas, aqui, também vocês tudo manda".

P - E os choques com a polícia, com as volantes do governo?
R - Eles eram 500, 600; nós 90, 100, mas sempre a gente vencia. Teve caso dos "macacos" se pegarem entre eles mesmos, de tão apavorados. Iam atirando, sem saber em quem. E depois que eles tinha gastado bem a munição a gente encostava.

P - E como vocês faziam com os feridos?
R - Quando não tinha socorro em sítio ou fazenda perto, a gente mesmo se curava. Com a tesoura, a frio, nóis extraía as balas.

P - Muito inimigo foi morto depois de preso?
R - Quando alguns se entregavam, o capitão mandava dar água e depois matava, que era pro cabra não morrer com sede... Chamava o prisioneiro e gritava, com a espingarda na mão: "arrepare o que vai sair daqui de dentro!"

P - Então o homem era mau mesmo...
R - Ele explicava. Dizia: "se prende nóis, mata aos pouquinhos. Foi o que fizeram com meu pai, com a minha mãe. Então eu faço com eles também. Eu queria viver na paz com todo mundo. Agora, tem uma coisa: morro mas num me entrego!"

P - O que você achava do Lampião?
R - Briguei com ele, saí do bando, mas sempre achei ele um boa praça, um homem atencioso, respeitador. Matou dois do grupo que tinham tentado violar uma moça.

Chico Heráclio e Volta-Seca, o coronel e o cangaceiro. Os dois viveram no mesmo mundo rural do sertão: Limoeiro, Santa brisa, Goloso... O Nordeste produziu tipos tão diferentes!

Diferentes mesmo? Ou apenas duas faces da mesma moeda?

Essas vidas carregavam muitas mortes. O coronel mandava, o cangaceiro também. O coronel era temido, o cangaceiro também. Mas um tinha a proteção das autoridades, era a própria "autoridade"! O outro era perseguido... Os coronéis duraram muitos anos - ainda há muitos hoje modernizados - e existiram em todo o país [...].

ALENCAR, Chico et alli. Brasil Vivo 2: a República. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 11-13.

domingo, 25 de março de 2012

As centúrias de Nostradamus: uma crônica do século XVI

O imenso sucesso de Nostradamus continua a surpreender e, muitas vezes, chega a incomodar. O hermetismo da linguagem utilizada em suas Centúrias astrológicas (publicadas originalmente com o título de Profecias, em 1555) confere ao texto tamanha plasticidade que ele parece poder se adaptar a todas as épocas e a todos os temores. No entanto, quem as interpreta à luz do presente deve sempre lembrar que as Profecias foram escritas em um contexto histórico bem particular: o das guerras religiosas na França do século XVI. [...]

As Profecias foram publicadas entre 1555 e 1557, quando a tensão política e religiosa na França se aproximava do auge. No dia 4 de setembro de 1557, uma assembléia calvinista foi fechada em Paris, resultando na prisão de 128 pessoas, das quais sete foram condenadas à fogueira. No Sacro Império Romano-Germânico o cisma religioso já havia provocado guerras cujos detalhes Nostradamus conhecia bem graças à correspondência que mantinha com "clientes" em toda a Europa. Não surpreende, portanto, que suas  Profecias sejam marcadas por um clima de violência e de morte. Entre inúmeros exemplos, há o da quadra 46 da centúria II:

Após grande miséria para a
humanidade, outra maior
se aproxima
Quando se renova o grande
ciclo dos séculos
Choverá sangue, fome e guerra
Nos céus será visto um fogo
arrastando uma trilha de faíscas

Nos versos de Nostradamus, a barbárie se apresenta frequentemente com os traços do cisma religioso que desencadeia o Apocalipse. A Igreja católica e o papa aparecem como vítimas recorrentes. A quadra 15 da centúria II prevê a ruína dos eclesiásticos e de seus adversários, os protestantes:

Marte nos ameaça com a força
da guerra
E causará setenta vezes
derramamento de sangue
O clero será exaltado e aviltado
Por aqueles que não querem
dele aprender nada

As Profecias de Nostradamus são um testemunho de seu tempo. Existe uma relação profunda entre a atmosfera de caos que o autor descreve em suas quadras e o estilo que escolheu para representá-la. A linguagem de Nostradamus é cheia de invenções, de formas inusitadas e desconcertantes que introduzem a confusão na sintaxe e no léxico. A desordem das palavras é o reflexo da desordem das coisas.

O sucesso imediato de Nostradamus se deve provavelmente mais a seu gênio literário do que a suas capacidades visionárias. Sua obra registra a violência de uma época dilacerada pelo cisma religioso e atormentada pela perspectiva do Juízo Final.

Durante o Renascimento, as especulações sobre o futuro não eram obra de alguns poucos charlatães. A astrologia era uma prática comum, baseada na certeza de que qualquer coisa era um sinal. O futuro era visto como a realização de uma realidade já prevista.

As sensibilidades religiosas do século XVI concordavam plenamente com essa visão de futuro. As catástrofes naturais e as anomalias climáticas ou biológicas eram interpretadas à luz da Bíblia e de mapas astrais. As controvérsias entre astrólogos e teólogos não se referiam à legitimidade da ciência astrológica, universalmente reconhecida. O que os clérigos questionavam era o grau de contingência das previsões e o espaço que reservavam ao livre-arbítrio dos homens.

Os protestantes adotavam a mesma postura ambígua em relação à astrologia. Enquanto Lutero admitia a importância e a legitimidade da advinhação, Calvino condenava aqueles que previam o destino dos homens com arrogância.

O conflito religioso irrompeu, portanto, em um contexto de inquietação, em que os mínimos sinais da cólera divina eram interpretados como prenúncios do Juízo Final. De acordo com o historiador Denis Crouzet, esse clima teria contribuído muito para a brutalidade dos embates entre católicos e protestantes, já que a percepção do adversário religioso como um possível anticristo transformava a violência no último recurso purificador e salvador.

Nostradamus

Nenhum outro autor expressou melhor que Nostradamus essa relação entre a violência e a angústia do fim dos tempos. Aliás, seus contemporâneos perceberam as vantagens políticas e religiosas disso e sua obra foi usada tanto por católicos quanto por protestantes.

[...]

[...] Os textos de Nostradamus não só expressam o clima de terror e de violência que reinava no período, como oferecem um sentido à história. A infelicidade dos homens deixa então de parecer arbitrária para se tornar a expressão de um destino.

[...]

Hervé Drévillon. As centúrias, uma crônica do século XVI. In: Revista História Viva. Ano IX, n. 99. p. 42-45.

sexta-feira, 23 de março de 2012

A moda no Brasil Colônia e Império

A moda e a indumentária podem ser uma fonte rica de pesquisa para o historiador e dar uma importante contribuição para o entendimento da formação da sociedade brasileira. Ao longo dos séculos, o modo de vestir revela significativas diferenças regionais e sociais no interior do país, resultado da interação de diversas culturas que alteraram substancialmente o modelo europeu e "branco" transplantado para a colônia.

Em uma terra onde os nativos andavam nus, os europeus trouxeram uma cultura em que os trajes tinham a função de identificar classes sociais e demarcar as origens de cada um, formando uma intrincada e complexa dinâmica social. Relatos de religiosos, viajantes europeus e governantes portugueses nos trazem informações preciosas sobre o modo de vestir dos habitantes da colônia. A parcela mais abastada da sociedade passou a utilizar a indumentária como forma de marcar a distância em relação à grande massa de habitantes pobres e de escravos. Já os moralistas da Igreja e do Estado, as pessoas que se preocupavam com o chamado "bem público", condenavam o luxo, a vaidade e a ostentação.

Funcionário do governo saindo a passeio, Jean Baptiste Debret.  Família sai à rua ostentando roupas elegantes e escravos bem-vestidos, importantes sinais de prestígio no Brasil do século XIX.


A Igreja e a Coroa portuguesa estavam atentas a tudo que pudesse desestabilizar o modelo idealizado de sociedade, fortemente hierarquizado, não havendo espaço para a quebra das regras preestabelecidas de comportamento. [...]

Nessa época, "estar na moda" era estar em sintonia com o que era uado pela alta nobreza. Rainhas, reis, príncipes e princesas eram em quem todos gostariam de se espelhar. Mais do que elegância, vestir-se como os poderosos mostrava status, origem, classe social. Antes de tudo, era sinal de pertencer a um grupo muito seleto de pessoas que se diferenciavam do restante da população. As cortes mais importantes se alternavam como grandes referências do que se devia ou não vestir. Portugal nunca ocupou esse lugar de honra entre as nações europeias. Espanha, Inglaterra, Veneza, Florença e, principalmente, França ditavam moda.

Negro e negra do Brasil, Rugendas. Muitos negros cativos e libertos compravam roupas com o dinheiro que recebiam trabalhando nas ruas das cidades. Esse luxo da "população de cor" incomodou as elites por criar uma "promiscuidade de classe".

* Luxos coloniais. Um jesuíta ilustre, o português Antônio Vieira, chamou a atenção para o tema da ostentação e do luxo na indumentária colonial em uma de suas famosas pregações. [...] Uma elite formada por senhores de engenho, grandes proprietários de terra e traficantes de escravos, buscava se destacar na colônia, aguardando ansiosamente os navios que vinham da Europa com novos produtos e notícias sobre a moda vigente nas cortes europeias.

Existem diversos relatos de época contendo informações sobre o luxo do vestuário dos brasileiros. A maioria demonstra certo espanto com as roupas e os modos dos membros da elite, que quase sempre pecavam pelo excesso. No Brasil, os títulos de nobreza eram raros, pelo menos até a chegada da família portuguesa, em 1808, quando D. João VI começou a distribuir honrarias. Formou-se uma casta de fidalgos, geralmente sem título, mas com posses, disposta a provar a todo custo seu caráter nobre.

[...] A exibição de uma árvore genealógica sem mácula (mesmo que falsa), ter amizades influentes, praticar o ócio, exibir títulos (muitos de procedência duvidosa) eram as formas preferidas de demonstrar distinção social. Para ser reconhecido como fidalgo e ter os privilégios que isso proporcionava, não era suficiente possuir terras e grande número de escravos. Era necessário deixar bem visíveis os sinais que exteriorizavam essa condição. O ser e o parecer se confundiam nesta sociedade.

Os tecidos eram artigos muito valorizados no período colonial, já que eram todos importados via Portugal e comercializados a preços altíssimos pelos mercadores, que os traziam de navio ao Brasil. [...]

* Sociedade de contrastes. Na colônia, os hábitos ligados ao vestuário eram caracterizados por alguns paradoxos. Um dos mais interessantes é o contraste entre as roupas de sair às ruas e as adotadas dentro de casa. Até o século XIX, as mulheres fidalgas que viviam no Brasil pouco podiam sair, a não ser para ir às igrejas, em comemorações de datas religiosas, procissões, ou nas festas do Estado. Quando o faziam, sempre acompanhadas de parentes do sexo masculino (pais, irmãos ou maridos) e de suas mucamas, as damas costumavam vestir uma capa ou mantilha (de renda, sarja ou mesmo lã) que lhes cobria todo o corpo e deixava apenas os olhos de fora. Por baixo de tanto recato, vestiam-se à moda francesa, com tecidos de boa qualidade e muitas jóias [...].

Já para ficar em casa e até receber as visitas, as mulheres adotavam um traje bem simples e bem mais liberal: um tipo de camisolão ou camisa de mangas curtas, de tecido leve e transparente, decotado. [...] Algumas vestiam uma saia leve sobre essa camisola. As finas senhoras quase não usavam meias ou sapatos, apenas chinelas, ou permaneciam mesmo descalças. Nada de espartilhos ou corpetes. O peito ficava descoberto, sem pudores; os cabelos, soltos. Os homens também se tornavam desleixados na intimidade: dispensavam as meias ou as usavam caídas, a camisa branca ficava fora dos calções, sem coletes, casacas ou capas. No máximo, uma jaqueta fina ou gibão (casaco curto). Os mais despojados vestiam apenas ceroulas e camisa. Sapatos eram substituídos por chinelos.

No caso dos escravos, a responsabilidade de mantê-los decentemente vestidos era dos senhores. Em geral, estes não se preocupavam em oferecer trajes adequados para os servos. Apenas os escravos "de dentro" ganhavam roupas mais luxuosas, principalmente quando saíam à rua, pois era sinal de prestígio exibir escravos bem vestidos acompanhando seus senhores e senhoras em passeios pela cidade. Os outros costumavam andar seminus, apenas com uma camisa ou calça de tecido grosseiro (que logo viravam trapos).

Os escravos das incipientes cidades gozavam de relativa liberdade para seus negócios. Muitos deles eram "de ganho" ou aluguel, já que realizavam serviços em troca de pagamento. [...]

A prostituição foi uma das alternativas de ganho para as mulheres cativas e libertas. Com isso, não fica difícil deduzir que muitas escravas podiam adquirir mercadorias, como roupas e jóias. Os escravos alforriados representaram um papel importante na sociedade da época, principalmente com a descoberta do ouro e dos diamantes nas Minas Gerais do século XVIII. As mulatas forras, como a famosa Chica da Silva, escandalizaram as elites com seu luxo e ostentação [...].

O luxo da "população de cor" incomodava os "homens bons" e os religiosos da colônia e da metrópole, sendo criadas leis para evitar que "negras, negros e mulatos" usassem tecidos finos, jóias, brocados e adereços de ouro. Tais iniciativas mostram preocupação com a quebra da hierarquia e a "promiscuidade de classes" que o costume, tão difundido, causava aos olhos dos governantes. [...]

* Mudanças e modernidades. Em 1808, com a chegada da família real e a abertura dos portos às "nações amigas", o Brasil foi inundado por produtos importados, sobretudo da Inglaterra. A moda masculina passou a ser dominada pelos comerciantes ingleses, enquanto as mulheres adotavam a moda francesa. Os brasileiros mais ricos adquiriam o hábito de fazer compras nas ruas chics do Rio de Janeiro, como a rua do Ouvidor e a Direita. Muitos escravos e forros foram trabalhar nesse comércio do luxo e aprenderam novos ofícios, abrindo posteriormente seus próprios negócios.

A corte de D. Pedro II era austera e pouco dada a grandes eventos sociais, a exemplo do próprio imperador. A elite da época, no entanto, esforçava-se em mostrar-se elegante e opulenta. As mulheres caprichavam nos vestidos de tecidos nobres, jóias, luvas e chapéus; os homens circulavam trajando calças e casacas escuras, cartolas, lenços, luvas, relógios e bengalas.

Com a proclamação da República em 1889 e as mudanças do século XX, os brasileiros passaram a adotar roupas mais leves e práticas. O chapéu-panamá virou moda entre os homens modernos [...]. As mulheres começaram a ter certa liberdade e a trabalhar fora, não apenas nos serviços domésticos como era costume entre as mais pobres. As roupas refletiram tais novidades: saias mais curtas e sem armações, decotes e botinhas até os tornozelos. Chapéus e luvas eram obrigatórios para todas as classes sociais, assim como os terríveis espartilhos. [...]

Márcia Pinna Raspanti. Dize-me o que vestes e te direi quem és. In: Revista História Viva. Ano IX, n. 99. p. 68-73.

quinta-feira, 22 de março de 2012

África


"[...] Minha negritude não é uma pedra / E sua surdez arremessada contra o clamor do dia / Minha negritude não é uma gota d`água morta  / Sobre o óleo morto da terra  / Minha negritude também não é uma torre ou uma catedral  / Ela mergulha na carne / vermelha do solo  / Ela mergulha na carne ardente do céu  / Minha negritude perfura a / aflição de seu sossego correto." [Aimé Césaire, poeta da "Negritude"] 




quarta-feira, 21 de março de 2012

O olho de vidro da ciência: a revolução científica


A ciência estava a todo vapor na Europa. Deixando de engatinhar, começou a andar e, em seguida, a correr. Continuou a correr por algum tempo antes de ultrapassar a China na maior parte das áreas, mas, em 1520, já havia fortes indícios de que estava ganhando velocidade. A mesma imprensa que expôs Lutero explicava as últimas descobertas da ciência. A página impressa viajava com facilidade, ao contrário dos típicos estudiosos europeus. A maioria dos cientistas famosos da Europa de 1550 nunca chegara a conhecer a maioria de seus contemporâneos estrangeiros cara a cara, mesmo quando vivia apenas algumas centenas de quilômetros de distância.

Novos avanços vieram do estudo do sol, da terra e das estrelas. Nessa área, o grande descobridor foi Nicolau Copérnico, um estudioso polonês, que usou toda a sua capacidade de medir e observar, bem como aquela atividade pouco comum, conhecimento como "pensamento", para provar que o sol era o centro do universo. Com isso, destronou o planeta terra, uma vitória tão louvável que parecia inicialmente desafiar a Bíblia e toda a essência do cristianismo, que via a terra como o centro do universo.

Copérnico começou a destronar a terra por volta de 1510, logo após Colombo e suas viagens de descobrimento terem ampliado o mapa. A vitória de Copérnico, entretanto, não estava assegurada, mesmo depois de sua morte em 1543. De certa forma, ainda hoje sua visão é só parcialmente aceita. A voz do povo e a imagem poética ainda indicam que a terra é o centro do universo. Todas as manhãs, aos olhos da mente, é o sol que nasce e, não a terra que se põe.

A ênfase nas medidas e na observação, de fato um método científico completamente novo, conduziu esses avanços. A anatomia ganhou com a nova ânsia das escolas de medicina italianas em dissecar o corpo humano, em vez de confiar no que os antigos estudiosos gregos haviam escrito. A autópsia do corpo do Papa Alexandre V chegou a ser sancionada, após sua morte misteriosa em 1410. O jovem e brilhante médico, Vesalius, originário de Flandres, frequentemente dissecava corpos e, na Universidade de Pádua, ensinava suas descobertas arrojadas, na década de 1540, reescrevendo assim os antigos livros de anatomia.

Laboratório de um alquimista, 1570,Giovanni Stradano


A onda de descobertas, feitas em várias frentes científicas, era o trabalho de centenas de curiosos que passavam seu tempo como cientistas, observadores de estrelas, médicos e religiosos que dispunham de um pouco de tempo para gastar. Muitas eram pessoas de vários talentos e habilidades que estavam decididas a resolver um emaranhado de charadas intelectuais. Assim, Isaac Newton, que foi aclamado em sua vida como o maior de todos os físicos, pesquisou teologia, química, astrologia, astronomia e a fabricação de telescópios, bem como as leis do movimento e da gravidade. Nos séculos XVI e XVII, cientistas famosos raramente eram pesquisadores com dedicação exclusiva, e raramente viviam vidas longas. Isaac Newton foi uma exceção pelo fato de ter passado dos 80 anos de idade [...].

Um avanço na ciência, segundo dizem alguns observadores, nada mais é que a aplicação do bom senso, mas várias teorias pareciam desafiar o bom senso vigente à época, tanto a versão espiritual quanto secular desse bom senso. Por isso, não eram aceitas prontamente. Muitos descobridores sabiamente hesitavam em tornar público o que haviam descoberto, enquanto os descobridores de hoje se entregam à tentação de logo recorrer à imprensa, sem um dia de atraso. [...]

Enquanto a imprensa disseminava muitas das descobertas, os sacerdotes e párocos se sentiam tentados a impedi-los. Os líderes religiosos opunham-se ou mostravam-se extremamente desconfiados com várias ideias revolucionárias da ciência. A própria ideia de que as leis da natureza, até então desconhecidas, agiam no universo e que leis semelhantes poderia ser encontradas agindo sobre os seres humanos, assim como no mundo físico, era um perigo em potencial para a religião que pregava que Deus, soberano em sabedoria e em conhecimento, presidia sobre cada canto do mundo e, portanto, podia suspender qualquer lei da natureza e operar milagres. [...]

A revolução científica foi um avanço maravilhoso na forma em que o mundo era visto. Antes de 1550, enquanto o trabalhador com prática em metais foi responsável por avanços tais como o relógio mecânico e a imprensa, foi o trabalhador com prática em vidro que facilitou descobertas futuras como o microscópio e o telescópio. O vidro tornou-se o olho transplantado do cientista possibilitando ver o invisível.

Os antigos egípcios produziram os primeiros recipientes de vidro, ocos por dentro. Os sírios, por volta de 200 a.C., inventaram o maçarico para soprar vidro, dando-lhes o formato de recipientes arredondados e com paredes finas. Os romanos manufaturavam um vidro rudimentar, normalmente um pouco turvo, mas que quando bem trabalhado era transparente o suficiente. Em Veneza, o Silicon Valley (ou Vale do Silício) de sua era, os antigos métodos romanos de fabricação de vidro foram aperfeiçoados. Os vidreiros de Veneza tornaram-se tão numerosos, e o fogo que queimava em seus locais de trabalho apresentava um perigo tão grande de se alastrar por em toda a cidade que, em 1291, o governo os deslocou para a ilha de Murano, próxima ao local. Os primeiros espelhos feitos com nítidez suficiente foram produzidos em Veneza, por volta de 1500, e os habitantes dessa cidade mantiveram em segredo seu novo processo de manufatura por mais de 150 anos. Os espelhos fizeram o máximo que puderam para realçar a reputação de Veneza como o lar do luxo, da vaidade e, talvez, dos produtos femininos imorais: uma reputação já criada pelas luvas e leques de Veneza, e os calções bordados de Veneza, peças bem justas do vestuário usadas para encobrir as pernas.

Uma revolução da ciência também se encontrava nas mãos dos vidreiros. O poder que o vidro curvo tem de aumentar os objetos observados já era conhecido mesmo antes da civilização grega: mas, lentes de vidro específicas para uso em óculos e como lentes de leitura só foram inventadas por volta de 1300. Óculos preservados no Deutsches Museum, em Munique, datam de 50 anos depois, e já era possível que os médicos, exercendo sua penosa obrigação durante a Peste Negra, colocassem seus óculos para examinar de perto a pele e a língua das vítimas. Quando os livros impressos entraram na moda, a demanda por óculos aumentou, principalmente entre homens e mulheres que desejavam ler sob a luz fraca do inverno do norte da Europa.

O poder esplêndido do vidro foi drasticamente revelado na cidade litorânea de Middelburg, na Holanda. Em 1608, Hans Lippershey, um fabricante de óculos, começou a construir telescópios de bastante utilidade. Para o espanto daqueles que empregavam o telescópio, eles podiam ver claramente uma pessoa a 3 quilômetros de distância. A ideia, mas não o telescópio, chegou a Galileu Galilei, que ensinava matemática em Pádua, no norte da Itália. Fazendo sua própria versão do que ele chamou de "vidro espião", maravilhou-se ao descobrir que podia aumentar a imagem em três vezes. Moendo suas próprias lentes de vidro, ele conseguiu uma proporção de aumento de 8 vezes e, depois, 32 vezes. Na cidade próxima de Veneza, mercadores e donos de navios levaram o excitante telescópio para o alto das torres e, olhando para o mar, puderam ver navios que antes eram invisíveis a olho nu.

O telescópio melhorado de Galileu estava alcançando no céu o que Colombo e Magalhães fizeram ao navegar pelos mares. Ele estava mapeando novos mundos. Através de seus telescópios, feitos principalmente de vidro de Veneza, Galileu inspecionou a lua, a qual descreveu como "a visão mais bonita e mais prazerosa que existe". Detectou também o que ninguém havia visto antes, as crateras da lua e sua superfície acidentada. Foi ele quem primeiro viu as manchas do sol e descobriu que a Via Láctea consistia de estrelas.

Fólio de Galileu, onde retrata as fases da Lua

Ele também chegou à mesma conclusão de Copérnico: a terra não era o centro do universo a quem quase todos os corpos celestes faziam a corte. Essa visão trouxe profundas implicações para certas frases do Antigo Testamento que Galileu denunciou como sendo escritas pelos ignorantes para os ignorantes. A igreja ergueu sua mão ao alto contra ele, em 1616, e ergueu ainda mais após ele ter persistido em suas teorias. Galileu passou os últimos oito anos de sua vida sob prisão domiciliar em sua pequena fazenda perto de Florença.

Ao telescópio, os vidreiros holandeses e italianos acrescentaram o microscópio. Anton van Leeuvenhoek, que vendia materiais de costura e roupas na cidade holandesa de Delft, tornou-se um mestre na fabricação de microscópios. Com uma ampliação de pelo menos 270 vezes, seus microscópios viam mais do que jamais tinha sido visto pelos olhos humanos. Em 1667, pela primeira vez, ele descreveu com precisão um espermatozóide e as células vermelhas do sangue. Seu microscópio possibilitou quebrar vários velhos mitos: que a pulga nascia da areia e que a enguia era chocada pelo orvalho. Enquanto isso, na Inglaterra, Robert Hooke, enquanto olhava os tecidos das plantas ao microscópio, inventou uma palavra fundamental: "célula". Na época, ainda não se sabia que todas as plantas e animais consistiam de células.

O microscópio abriu os olhos da botânica e da zoologia. Exatamente na mesma época em que a exploração de novas terras multiplicava as plantas e animais conhecidos, o botânico e físico sueco, Carolus Linnaeus, ou Lineu, aperfeiçoou seu método que, em breve, tornou-se o método de todo o mundo, o de classificar todas as coisas vivas, dando-lhes dois nomes em latim, um especificando o gênero mais amplo e o outro, a espécie em particular.

O que Lineu fez pela classificação de plantas, outros cientistas, ao sul dos Alpes, alcançaram na classificação do tempo. A reforma do calendário foi um processo vagaroso. No auge de Roma, Júlio César e seus consultores haviam reformado o calendário, abandonando o ciclo da lua e voltando ao ano solar. O ano solar se estendia por 365 dias, cinco horas e 48 minutos e três quartos, mas as horas que sobravam criavam uma dificuldade para o novo calendário. Júlio César adotou uma solução conciliatória sensata. Seu calendário, mais tarde chamado de juliano em sua homenagem, admitia, por questão de simplicidade, que o sol completava seu percurso anual em 365 dias e um quarto. Dessa maneira, o ano somava 365 dias para cada primeiro, segundo e terceiro ano, e 366 dias para cada quarto ano, ou ano bissexto.

César morreu bem antes de a dificuldade inerente de seu calendário se tornar proeminente. O fato estranho era que seu calendário, a cada século consecutivo, atrasava um pouco. Na verdade, a cada ano, o calendário perdia 11 minutos e em seus 1000 anos iniciais, ele perdeu aproximadamente 7 dias. Interferia, também, com a determinação do Domingo de Páscoa, um evento desconhecido da época de Júlio César, mas que veio a ter profunda importância mais tarde.

Finalmente, em 1582, o Papa Gregório XIII agiu decisivamente. Usando os cálculos do astrônomo e médico de Nápoles, Luigi Guiraldi, o papa anunciou sua solução. Exatamente naquele ano, ele eliminaria os 10 dias que iam de 5 a 14 de outubro. Em suma, o calendário seria atualizado com o risco da pena de uma caneta. O futuro também seria controlado com a mesma decisão. Como corretivo a longo prazo, o calendário gregoriano adotou o ano bissexto em 1600 e em 2000, porém não nos anos intermediários de 1700, 1800 e 1900.

Aqueles que viviam na Espanha, Portugal e Itália iriam discutir por muito tempo o memorável outubro de 1582. Dez dias, para seu espanto, simplesmente desapareceram de sua vida. Alguns meses depois, a França e vários estados católicos da Alemanha perderam seus 10 dias. Os países protestantes, no entanto, não tinham certeza se deveriam seguir uma reforma iniciada por um papa. A Inglaterra continuou a seguir seu calendário diferente do que prevalecia na França e Espanha católica. Quando chegou o dia de Natal na Inglaterra, já era janeiro do outro lado do Canal da Mancha. Na Alemanha, somente duas cidades, a poucos quilômetros uma da outra, seguiam um calendário diferente, baseadas no fato de estarem situadas num estado católico ou luterano.

Quando a Inglaterra finalmente adotou esse novo calendário, onze dias não vividos tiveram de ser apagados. Assim, em 1752, seu calendário pulou durante a noite de 2 de setembro para 14 de setembro, uma mudança que causou desordem em muitos cantos e consternação em outros. Em Londres, uma multidão sob um estado compreensível de confusão pôde ser ouvida gritando: "Devolvam-nos nossos onze dias". A Rússia e várias outras nações da igreja oriental ou ortodoxa continuaram a seguir o antigo calendário. A Rússia acabou esperando até o ano de sua revolução comunista, em 1917, para adotar o que o papa e a Itália haviam começado mais de três séculos antes.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2004. p. 164-169.

segunda-feira, 19 de março de 2012

O Brasil dos imigrantes

Navio de Emigrantes, Lasar Segall

Eis um país forjado por exilados. Foram, de fato, "povos transplantados" - para usar a expressão de Darcy Ribeiro - aqueles que construíram esta nação. Após quase 30 anos de abandono, apenas em 1532, com a criação das capitanias hereditárias, Portugal começou a fincar as raízes da primeira civilização europeia a se estabelecer nos trópicos - região que os próprios europeus imaginavam, e até descreviam, ora como paraíso ora como inferno. Massacrados os indígenas, miscigenados os portugueses, procriados os mamelucos e cafuzos, o país seria erguido pelo braço escravo: cerca de 4,5 milhões de negros foram trazidos da África para o Brasil ao longo de quatro séculos de tráfico. Com o fim da escravatura - ou, pouco antes, com a efervescência da campanha abolicionista - o país deu início a "importação em massa" de imigrantes europeus.


Emigrantes III, Lasar Segall

De 1886 a 1914, quase três milhões de estrangeiros vieram para o Brasil na tentativa de "fazer a América": foram, mais exatamente, 2,71 milhões os imigrantes que chegaram ao país em 28 anos. Eles fizeram do Brasil uma das três nações do mundo que mais se abriram para o fluxo migratório - EUA e Canadá são as outras duas. As causas dessa vertiginosa transmigração de povos são várias e suas consequências, duradouras e complexas. Embora seja, em seu fundamento, uma nação luso-africana, o Brasil se tornaria também, em especial no Sul, um país altamente europeizado. Imigrantes japoneses, árabes e judeus viriam a seguir, dando uma contribuição igualmente notável.


Tarantella, Henrique Bernardelli

O caldeirão de raças forjou uma nova nação. Mas não foi um processo tranquilo e orgânico. Pelo contrário: os conflitos inerentes da adaptação desses povos ao "novo mundo dos trópicos" acabaram por constituir a própria alma do Brasil. "A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, senão adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. [...] O certo é que todo fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem", anotou Sérgio Buarque de Hollanda na abertura de seu clássico Raízes do Brasil.

No cafezal, Georgina de Albuquerque

Depois de portugueses e africanos, foram os italianos aqueles que chegaram em maior número ao Brasil: 1,6 milhão em mais de cem anos (921 mil apenas entre 1886 e 1900). O segundo maior contingente de imigrantes veio da Espanha: 694 mil em um século. Os alemães vêm a seguir, com 250 mil. Os japoneses ocupam o quarto lugar, com 229 mil imigrantes. Esses povos não modificaram apenas os hábitos, a língua, as formas de pensar, de agir e de se alimentar: mudaram a própria imagem que o país fazia de si mesmo. E, se não puderam mudar "o clima", transformaram profundamente "a paisagem": especialmente no Sul, o "imperialismo ecológico" dos "povos transplantados" fez brotar um Brasil europeizado, com outras árvores, outros animais, outras raízes. E, é claro, outras gentes: afinal, se na planície litorânea os povos Tupi foram massacrados para dar lugar aos colonos lusitanos, nas serranias do Sul, os Kaingang seriam exterminados para "liberar" a terra para os imigrantes teuto-italianos. No caldeirão brasileiro, algumas raças são mais iguais que outras.

BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Ática, 2003. p. 264.

domingo, 18 de março de 2012

Pale blue dot [Pálido ponto azul]


“Devido ao reflexo da luz do sol na nave espacial, a Terra parece estar pousada num raio de luz, como se nosso mundo tivesse um significado especial”. Mas é um acidente de geometria óptica. O sol emite sua radiação eqüitativamente em todas as direções. Se a foto tivesse sido tirada um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, nenhum raio de sol teria dado mais luz à Terra.

Deste ponto distante de observação, a Terra talvez não apresente nenhum interesse especial. Para nós, no entanto, ela é diferente.

Olhem de novo para aquele ponto. É ali. É a nossa casa. Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, todos os que conhecemos de quem ouvimos falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas vidas.

Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, “superastros”, “líderes supremos”, todos os santos e pecadores da história de nossa espécie, ali - num grão de poeira suspenso num raio de sol.

A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores momentâneos de uma fração deste ponto. Pensem nas crueldades infinitas cometidas pelos habitantes mal distinguíveis de algum outro canto em seus freqüentes conflitos, em sua ânsia de recíproca destruição, em seus ódios ardentes.
Nossas atitudes, nossa pretensa importância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no universo, tudo é posto em dúvida por este ponto de luz pálida. O nosso planeta é um pontinho solitário na grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, no meio de toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos.

A Terra é, até agora, o único mundo conhecido que abriga a vida. Não há nenhum outro lugar, ao menos em futuro próximo, para onde nossa espécie possa migrar. Visitar, sim. Estabelecer-se, ainda não. Goste-se ou não, no momento a Terra é o nosso posto.

Tem-se dito que Astronomia é uma experiência que forma o caráter e ensina humildade.

Talvez não exista melhor comprovação das loucuras da vaidade humana do que esta distante imagem de nosso mundo minúsculo. “Para mim, ela sublinha a responsabilidade de nos relacionarmos mais bondosamente uns com os outros e de preservarmos e amarmos o pálido ponto azul, o único lar que conhecemos.”

Carl Sagan, “Um pálido ponto azul”, 1994



sábado, 17 de março de 2012

O fenômeno 2012

Tempestades solares, inversão dos pólos magnéticos da Terra, erupção de um supervulcão, cataclismo planetário... Entenda como o mercado da catástrofe transformou uma data ritual maia em sinônimo de fim dos tempos

por Bruno Fiuza

Descoberta em 1790 na Cidade do México, a Pedra do Sol é uma representação da doutrina das Eras do Mundo que os astecas herdaram dos maias.

Assim como aconteceu por volta do ano 1000, a chegada do terceiro milênio foi acompanhada pela proliferação de profecias escatológicas. Agora, porém, os supostos presságios de cataclismo não vêm da tradição cristã, mas de uma antiga civilização que surgiu em meio às florestas tropicais da América Central e viveu seu período de apogeu entre os séculos II e IX: os maias.

Para esse povo, o ano de 2012 marca o fim de um ciclo de 5.125,36 anos de seu calendário. Segundo a tradição maia, ao fim de cada ciclo a humanidade entra em uma nova era [...].

O sistema de Conta Longa do calendário maia foi utilizado por séculos, até desaparecer após a decadência dos centros de poder do Período Clássico, no século IX. No entanto, cerca de mil anos mais tarde os boatos da existência de uma civilização perdida nas florestas do sul do México despertaram o interesse de exploradores modernos como o mexicano Antonio del Rio, o francês Jean-Frédéric Maximilien de Waldeck, o americano John Lloyd Stephens e o inglês Frederick Catherwood. Entre as décadas de 1820 e 1840 eles localizaram as primeiras ruínas de cidades maias e, com elas, os vestígios dos sistemas de escrita e de calendário dessa civilização.

Inspirado por essas descobertas, na década de 1880 o pesquisador inglês Alfred Maudslay fotografou os glifos gravados nas ruínas localizadas até então. Ao analisar essas imagens, o americano Joseph Goodman identificou o funcionamento do calendário maia. Na mesma época, o alemão Ernst Förstemann chegava a conclusões semelhantes ao estudar textos maias reunidos no Códice de Dresden.

Em 1905, Goodman apresentou um modelo de correlação entre as datas da Conta Longa do calendário maia e as do calendário gregoriano. Sua teoria foi complementada pelo antropólogo mexicano Martinez Hernández e pelo arqueólogo inglês J. Eric S. Thompson na década de 1920. O trabalho combinado dos três deu origem à fórmula usada atualmente para converter as datas da Conta Longa do calendário maia para o calendário gregoriano.

As analisar essas datas à luz da cosmologia maia, os pesquisadores chegaram a uma constatação para esse povo, a história do mundo se dividia em eras de 5.125,36 anos, e cada vez que um desses ciclos terminava nosso planeta passava por um período de intensa renovação, quando começava uma nova etapa para a humanidade.

Como a Longa Data do calendário maia era extremamente precisa e informava que a era atual havia começado em 11 de agosto de 3114 a.C., o arqueólogo americano Michael Coe calculou que o atual ciclo terminaria em 24 de dezembro de 2011. Coe publicou essa data final em seu livro Os maias, de 1966, mas pesquisas posteriores demonstraram que a conta estava errada. O equívoco foi corrigido nas edições seguintes da obra, e hoje a data mais aceita para o fim do ciclo é 21 de dezembro de 2012.

Até esse momento, o calendário maia era um assunto restrito a pesquisadores especializados, mas no início da década de 1970 ocorreu uma mudança que transformaria 2012 em um fenômeno de massas, como explica o pesquisador americano John Major Jenkins em seu livro 2012 - A história. Nessa época, dois escritores americanos viram nas traduções místicas dos povos ancestrais do México um antídoto para os males da civilização industrial moderna.

O primeiro foi Tony Sheaner, jornalista de Denver que no fim da década de 1960 largou tudo para viver no México. No início dos anos 1970 ele publicou dois livros em que relacionou a cosmologia e os ciclos de calendário utilizados pelos astecas para formular uma teoria segundo a qual a humanidade estaria vivendo os últimos momentos de um ciclo que terminaria em 1987. Nessa data que se batizou de Convergência Harmônica, o planeta passaria por um renascimento espiritual que marcaria o início de uma nova era.

O segundo foi Frank Waters, que em 1975 publicou um livro no qual estudou o significado místico da Conta Longa do calendário maia. Segundo Waters, os ciclos de 5.125,36 anos se baseariam em cálculos astronômicos e astrológicos e estariam ligados a uma doutrina de Eras do Mundo. Por ter sido o primeiro autor a tratar o fim de um ciclo do calendário maia como um marco de transformação espiritual, Jenkins afirma que Waters "pode ser considerado o homem que desencadeou o fenômeno 2012".

Inspirado por essas descobertas, o escritor americano José Arguelles organizou um grande evento para celebrar a Convergência Harmônica que Sheaner havia previsto para 1987. Nesse mesmo ano, Arguelles publicou um livro chamado O fator maia, no qual apresentou sua própria interpretação espiritual dos ciclos de Conta Longa. Segundo ele, 2012 seria uma nova Convergência Harmônica, que provocaria uma grande transformação espiritual na Terra.

Graças ao sucesso do livro e da Convergência Harmônica de 1987, Arguelles se tornou o líder de movimento que se propunha a adotar o calendário maia e viver de acordo com seus princípios. Em 1991, o escritor desenvolveu um sistema de contagem de tempo batizado de Dreamspell, que ele inicialmente apresentou como uma versão moderna do próprio calendário maia, mas que tinha diferenças importantes em relação à contagem de dias tradicional desse povo.

* A invenção da catástrofe. O movimento criado por Arguelles transformou o calendário maia em um fenômeno pop, mas ele mesmo não via 2012 como o fim do mundo. As teorias que associavam o fim do atual ciclo a cenários catastróficos ganharam força a partir da década de 1990.

Em 1995, o engenheiro e cientista Maurice Cotterell e o escritor Adrian Gilbert publicaram o livro As profecias maias, que apresenta a teoria desenvolvida por Cotterell segundo a qual os ciclos de Conta Longa do calendário maia estariam relacionados a ciclos de atividade solar. Segundo o cientista, o fim da era atual em 2012 coincidiria com um enorme aumento das explosões no interior do Sol, quando o astro envia nuvens de prótons e elétrons em direção à Terra que poderiam inverter os pólos magnéticos do planeta.

Cotterell não apresenta nenhuma evidência concreta tirada da cultura maia que respalde sua tese, mas o sucesso comercial de As profecias maias popularizou essas ideias. Algumas foram retomadas pelo escritor americano Lawrence Joseph no livro Apocalipse 2012, publicado em 2004. Joseph se baseia na teoria do pico da atividade solar em 2012 e acrescenta alguns elementos à fórmula: segundo ele, o fenômeno poderia ser acompanhado por megarrajadas de radiação com potencial para acabar com a vida em nosso mundo, provocar a inversão dos pólos magnéticos da Terra e aquecer o núcleo do planeta a tal ponto que um supervulcão localizado sob o Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos, entraria em erupção.

Por causa dessas teorias absurdas, sem nenhuma ligação com o antigo pensamento maia, o estudo do significado de 2012 para essa civilização foi praticamente descartado pelos pesquisadores acadêmicos. Muitos especialistas afirmam que os maias nunca fizeram nenhuma menção a 2012 e que tudo não passaria  de uma grande invenção moderna.

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Bruno Fiuza. O fenômeno 2012. In: Revista História Viva. Ano IX, n. 99. p. 46, 48-49.