"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 31 de março de 2014

50 anos do golpe de 64: o que aprendemos?

A verdade ainda que tardia (detalhe). Painel instalado na Câmara. Elifas Andreato

Leia neste blog:

Os militares no poder (1964-1985)


O movimento negro durante a ditadura militar


Operação Condor / Mercosul do terror


O golpe de 64 e a ditadura militar 1: o jogo político


O golpe de 64 e a ditadura militar 2: a luta armada


O golpe de 64 e a ditadura militar 3: a repressão

http://oridesmjr.blogspot.com.br/2013/10/o-golpe-de-64-e-ditadura-militar-3.html

NOTA: Os textos acima citados não representam, necessariamente, o pensamento deste blog. Foram publicados com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

Safo de Lesbos

Σαπφώ

Busto de Safo. Cópia romana de um original grego. Início do século V a.C. Artista desconhecido

I - Assim como os filósofos e artistas, os poetas e dramaturgos gregos também deram expressão ao desabrochar do indivíduo e ao surgimento dos valores humanistas. Uma das primeiras e mais inspiradas poetisas gregas foi Safo, que viveu por volta de 600 a.C. na ilha de Lesbos. Safo fundou uma escola onde ensinava música e canto a meninas ricas e as preparava para o casamento. Com grande ternura, escreveu poemas de amizade e amor.  (PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 70.)

“Há quem afirme serem nove as musas. Que erro!
Pois não vêem que Safo de Lesbos é a décima?”

Platão

II - Poco se sabe de Safo.

Dicen que nació hace dos mil seiscientos años, en la isla de Lesbos, que por ella dio nombre a las lesbianas.

Dicen que estaba casada, que tenía un hijo y que se arrojó desde un acantilado porque un marinero no le hizo caso, y también dicen que era petiza y fea.

Quién sabe. A los machos no nos cae muy bien eso de que una mujer prefiera a otra mujer, en vez de sucumbir a nuestros irresistibles encantos.

En el año 1703, la Iglesia Católica, bastión del poder masculino, mandó quemar los libros de Safo.

Algunos poemas, pocos, se salvaron. (GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI & Siglo XXI Iberoamericana, 2006. p. 50-1.)


Safo e Alceu, Sir Lawrence Alma-Tadema

III - Concebeu Safo uma escola para moças, onde lecionaria a poesia, dança e música - considerada a primeira "escola de aperfeiçoamento" da história. Ali as discípulas eram chamadas de hetairai (amigas) e não alunas. A mestra apaixona-se por suas amigas, todas. Dentre elas, aquela que viria a tornar-se sua maior amante, Atis - a favorita, que descrevia sua mestra como vestida em ouro e púrpura, coroada de flores. Mas Atis apaixona-se por um moço e, com ciúmes, Safo dedica-lhe os versos:

"Semelhante aos deuses parece-me que há de ser o feliz
mancebo que, sentado à tua frente, ou ao teu lado,
te contemple e, em silêncio, te ouça a argêntea voz
e o riso abafado do amor. Oh, isso - isso só - é bastante
para ferir-me o perturbado coração, fazendo-o tremer
dentro do meu peito!
Pois basta que, por um instante, eu te veja
para que, como por magia, minha voz emudeça;
sim, basta isso, para que minha língua se paralise,
e eu sinta sob a carne impalpável fogo
a incendiar-me as entranhas.
Meus olhos ficam cegos e um fragor de ondas
soa-me aos ouvidos;
o suor desce-me em rios pelo corpo, um tremor (…)

A aluna foi retirada da escola por seus pais, e Safo escreve que "seria bem melhor para mim se tivesse morrido". (Wikipédia)

Safo e Erina em um jardim em Mitilene, Simeon Solomon

IV - Safo foi uma poetisa que floresceu em um período muito antigo da literatura grega. De suas obras, poucos fragmentos restam, mas são suficientes para assegurar-lhe um lugar entre os grandes gênios poéticos da humanidade. Um caso a que frequentemente se faz alusão, com referência a Safo, é o de que ela se apaixonou por um belo jovem chamado Faonte e, não sendo retribuída em seu afeto, atirou-se do promontório de Leocádia ao mar, de acordo com uma superstição segundo a qual quem desse aquele “Pulo do Amante”, se não morresse, ficaria curado de seu amor.

Byron faz alusão a Safo, no Canto II do “Childe Harold”:

Velejou Childe Harold e a desolada
Plaga de onde Penélope fitava,
Saudosa, as ondas, visitou depois.
E, mais adiante, contemplou o monte,
Lembrando túmulo da cantora Lésbia.
Sombria Safo! Os versos imortais
De tão mortal amor não te salvaram!

(BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. p. 198-9.)

NOTA: O texto "Safo de Lesbos" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sábado, 29 de março de 2014

No, as origens do teatro japonês 能


O movimento artístico que se desenvolveu durante o predomínio dos Ashikaga foi fruto, sobretudo, do mecenato dos xoguns e da forte influência exercida pelos mosteiros zen na cultura japonesa da época. Além da pintura à maneira dos grandes paisagistas Song, da arte da jardinagem, dos arranjos florais e do ritual da cerimônia do chá – todos elementos fundamentais da cultura clássica japonesa – esse período destacou-se, no século XII, pelo surgimento do No, uma forma de drama lírico bastante apreciado pela aristocracia e que serviria de modelo ao teatro nacional japonês.


Nogaku zue, Kōgyo Tsukioka

Denominado drama musical, drama poético ou drama dançado, o No constituiria uma das mais importantes contribuições do Japão à arte mundial. Bastante estilizadas, suas peças possuem uma alta qualidade literária, muito superior à do Kabuki, teatro popular que seria desenvolvido mais tarde, a partir do século XVII.

Atribui-se a origem do No a primitivas formas de espetáculo, relacionadas às danças e pantomimas que faziam parte dos ritos celebrados para se obter boas colheitas e, também, ao repertório de fantasias inspiradas no xintoísmo. Antes de se converter no passatempo preferido da nobreza, o No era encenado nos templos budistas, cujos monges costumavam convidar grupos de artistas ambulantes para apresentar espetáculos de danças e canções e, assim, atrair o público por ocasião das grandes festas religiosas. Com o tempo, esses comediantes passaram a adaptar seus repertórios ao gosto dos poderosos senhores que os contratavam, encenando farsas e intrigas que, pelo ritmo, tom e intenções, assemelhavam aos autos encenados diante das catedrais ocidentais durante a Idade Média.


Nogaku zue, Kōgyo Tsukioka

No século XIV, Kanami Kujotsugu (1332-1384), ator e autor que chefiava um desses grupos ambulantes, deu novas características aos espetáculos tradicionais do No. Isolando o elemento cômico do dramático, escreveu uma série de peças curtas, dotando-as de grande força poética. Seu filho, Zeami Motokujo (1363-1443), continuou essa reforma, codificando as regras cênicas que caracterizaram o No. Em seu manual Tradição Secreta do No (descoberto somente em 1906), Zeami transmitia confidencialmente a seus sucessores uma “estética teatral” repleta de reflexões muito originais sobre as relações entre o ator e o público.

Embora o cenário utilizado nos espetáculos do No fosse de uma rigorosa simplicidade, os trajes dos atores possuíam riqueza e colorido excepcionais, com máscaras que podem ser consideradas verdadeiras obras de arte. Os atores, todos homens, eram treinados desde a infância, quando já aprendiam que até o mínimo gesto deveria estar carregado de significação.

Patrocinado pelos xoguns, o No passou a ter como temática, por muito tempo, as virtudes dos cavaleiros, recebendo proteção oficial sobretudo nas escolas de Kanze, Komparu, Hosho, Kongo e Kita, criadas para a sua preservação.


HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 124 e 129. Vol. II.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Experiências anarquistas: a Colônia Cecília

Colônia Cecília

Na segunda metade do século XIX cresceu a imigração européia para o Brasil e outros países americanos. Os problemas socioeconômicos e políticos, existentes em diversas sociedades européias, funcionaram como fatores para a saída de milhares de cidadãos buscando melhores condições de vida em terras americanas.

A maioria desses imigrantes era constituída de camponeses e operários. Mas também havia profissionais liberais, artesãos...

Muitos dos imigrantes nasceram na Itália, um dos países onde o anarquismo levava seus adeptos a sonhar com a criação de uma nova sociedade. Uma sociedade sem propriedade privada, sem patrões, sem limitações à liberdade e onde a justiça fosse igual para todos.

Foi assim sonhando que imigrantes italianos fundaram a Colônia Cecília, nos campos de Guarapuava, no sul do estado do Paraná. Era o mês de abril do ano de 1890. Em janeiro de 1891 chegou uma segunda leva de imigrantes. A comunidade reunia, então, cerca de 300 pessoas, que acreditavam tornar realidade o que existia apenas nos livros e nas cabeças dos homens. Muitas experiências sociais vinham sendo realizadas no Novo Mundo. Além do mais, no Velho Mundo não existiam mais terras sem proprietários.

Fora D. Pedro II quem doara 300 alqueires de terras para a instalação da colônia de italianos. A monarquia, no entanto, fora suprimida no Brasil, mas a doação representava uma extensão de terras que servia como atrativo para os imigrantes.

O idealizador do projeto e responsável pela obtenção da concessão fora o agrônomo Giovanni Rossi, líder anarquista. Ele também sugerira a denominação de Colônia Cecília, inspirada em personagem de um romance que escrevera.

Ao se instalarem em terras paranaenses, os imigrantes logo ergueram um mastro, onde foi colocada a bandeira preta e vermelha. Essas cores eram o símbolo dos anarquistas e também atuariam como fator de propaganda.

A seguir, construíram suas habitações. Eram de madeira e podiam ser de dois tipos: barracões grandes, servindo de moradia coletiva, ou, então, casas menores para famílias reunindo pai, mãe e filhos.

O objetivo de todos era criar uma comunidade agrícola, fundamentada na autogestão econômica. As decisões deveriam ser aprovadas nas assembléias gerais, onde homens e mulheres teriam liberdade de expressão e de voto. Caso algum problema exigisse solução individual, esta deveria ser discutida posteriormente pela coletividade. Nas assembléias também procurava-se aprofundar o conhecimento da ideologia anarquista.

O cultivo do milho era prioritário e até construíram um moinho para produzir fubá. Plantaram árvores frutíferas, um pomar e um vinhedo. Criavam galinhas, porcos e marrecos. Compraram vacas leiteiras. E tudo faziam sem ter patrão, feitor, gerente, superintendente, chefe, guia ou qualquer regulamento estabelecendo regras fixas. Era a vontade coletiva de tornar realidade o que era considerado utopia.

Enquanto a terra plantada não produzia, uma parte dos colonos iniciou a feitura de barricas. Feitas com madeira dos pinheiros abundantes da região, eram vendidas na cidade de Palmeira, onde serviam para guardar erva-mate.

Outra parte dos colonos aceitou trabalhar na construção de uma rodovia ligando Serrinha a Santa Bárbara.

O pagamento recebido por essas atividades garantia recursos para comprar o que fosse necessário para todos: alimentos, roupas, remédios, calçados, instrumentos de trabalho...

O trabalho coletivo ergueu silos para guardar a colheita. Também represou as águas do rio das Pedras, construindo um tanque para criação de peixes.

A produção era para o consumo coletivo, e os excedentes eram vendidos para a cidade de Palmeira. A importância apurada devia ser guardada em caixa comum, de acesso a qualquer um.

Na Colônia Cecília havia uma escola, e na casa comunal, além das assembléias para orientação das tarefas e discussões políticas, realizavam-se festas e debates sobre questões gerais. Apesar das dificuldades, a colônia se desenvolveu.

Sua desintegração ocorreu por várias razões. Uma delas foi a epidemia de crupe que vitimou vários colonos. Outro fator da desagregação foi a fuga à vida comunitária, seja porque muitas pessoas não se adaptaram ao trabalho rural, seja porque preferiram se afirmar profissionalmente nas cidades.

Igualmente importante foi o fato de um dos colonos ter se apropriado do dinheiro apurado com a venda dos excedentes da produção de 1893.

Em meio ao desânimo geral, a Colônia Cecília sofreu os efeitos da conjuntura de lutas e violências que marcaram o governo Floriano Peixoto, principalmente com a Revolução Federalista (1892-1895). A existência do Batalhão Ítalo-Brasileiro, formado em Curitiba para lutar contra o governo federal, acabou resultando na invasão da Colônia Cecília pelas tropas legalistas. Quando os soldados se retiraram, o moinho estava quebrado, os instrumentos de trabalho haviam sido destruídos, muitas casas e o tanque arrasados, o milho colhido e as sementes jogados no rio das Pedras... Além do mais, os governistas invasores carregaram os alimentos armazenados e os animais de criação.

Foi o fim. Os sobreviventes se dispersaram. Estávamos nos primeiros meses de 1894. Terminara o sonho da Colônia Cecília, baseado no trabalho livre, na vida livre, no amor livre. Terminava uma experiência diferente da estrutura agrária dominante na economia brasileira.


AQUINO, Rubim Santos Leão de [et al]. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais: da crise do escravismo ao apogeu do neoliberalismo. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 134-136.

NOTA: O texto "Experiências anarquistas: a colônia Cecília" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

terça-feira, 25 de março de 2014

Argumentos de la fe

O círculo mágico, John William Waterhouse

Durante seis siglos, en varios países, la Santa Inquisición castigó a los rebeldes, a los herejes, a las brujas, a los homosexuales, a los paganos…

Muchos fueron a parar a la hoguera; y con leña verde ardieron los condenados al fuego lento. Y muchos más fueron sometidos a tortura. Éstos eran algunos de los instrumentos utilizados para arrancar confesiones, corregir convicciones y sembrar pánicos:
el collar de púas,
la jaula colgante,
la mordaza de hierro que evitaba gritos incómodos,
la sierra que lentamente te partía por la mitad,
los torniquetes estrujadedos,
los torniquetes aplastacabezas,
el péndulo rompehuescos,
la silla de pinchos,
la larga aguja que penetraba en los lunares del Diablo,
las garras de hierro que desgarraban la carne,
las pinzas y tenazas calentadas al rojo vivo,
los sarcófagos con clavos adentro,
las camas de hierro que se estiraban hasta descoyuntar las piernas y los brazos,
los azotes de puntas de ganchos o de cuchillas,
los toneles llenos de mierda,
el brete, el cepo, las poleas, las argollas, los garfios,
la pera que se abría y desgarraba la boca de los herejes, el culo de los homosexuales y la vagina de las amantes de Satanás,
la pinza que trituraba las tetas de las brujas y de las adúlteras,
el fuego en los pies
y otras armas de la virtud.


GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p. 92-3.


NOTA: O texto "Argumentos de la fe" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

domingo, 23 de março de 2014

Os quakers e os católicos nas colônias inglesas da América do Norte

Em 1682, Lord Baltimore obteve da Coroa inglesa a concessão de um território na América do Norte, situado ao sul das possessões holandesas e ao norte da Virgínia, ao qual deu o nome de Maryland. Tendo recebido amplos poderes para governar e legislar, Baltimore instaurou nessa colônia - a única católica - um regime de liberdade religiosa, expressa no Ato de Tolerância de 1649. Essa medida levou muitos puritanos  que não haviam se adaptado à rigidez das leis em outras colônias a se transferirem para Maryland. A economia da colônia baseava-se no cultivo do tabaco, e os agricultores locais - a exemplo do que ocorrera na Virgína - logo recorreram ao trabalho escravo. Para isso muito contribuiu o sistema de distribuição da terra que, ao contrário do que ocorria nas colônias do norte, se caracterizava pelo predomínio da grande propriedade.

Nessa mesma região, surgiu por volta de 1680 a primeira comunidade de colonos quakers, fundada por William Penn (1644-1718), que deu origem à colônia da Pensilvânia. Ao seu principal núcleo povoador foi dado o nome de Filadélfia, cujo significado - amizade e fraternidade - constituía dois pontos básicos do pensamento religioso dos quakers. Membros de uma antiga seita protestante, a chamada "Sociedade dos Amigos", eles não possuíam dogmas, nem uma estrutura eclesiástica, acreditando na livre interpretação da Bíblia e em um relacionamento direto entre Deus e o homem. Sua doutrina religiosa baseava-se na total recusa à violência e à submissão às leis da Igreja e do Estado. Assim, os fiéis orientavam-se nas questões religiosas de acordo com sua consciência e, no plano civil, recusavam-se a pagar impostos.

William Penn negocia um tratado de paz com os índios, Benjamin West

Como consideravam o território americano uma espécie de Terra Prometida, os quakers nele fundaram comunidades abertas a todos os que sofriam perseguições por motivos religiosos, criando uma sociedade relativamente democrática e estabelecendo relações amistosas com os indígenas. Com a chegada de outros grupos de colonos, porém, começaram a ocorrer conflitos que abalaram a primitiva organização social e política dos quakers. Mesmo assim a experiência realizada por esse grupo deixou marcas profundas no processo de colonização da América do Norte, pois suas características essenciais foram herdadas por minorias inspiradas nos mesmos ideais religiosos.

História das Civilizações. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 72 e 74. Volume 4.


NOTA: O texto "Os quakers e os católicos nas colônias inglesas da América do Norte" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Murais da sinagoga de Dura-Europos

Pintura mural da sinagoga de Dura-Europos

Pouco depois de 250 a.C., os israelitas enfrentaram os filisteus - formidáveis guerreiros que dominaram as cidades de Canaã - numa batalha nas proximidades de Afec. Os israelitas levaram a arca da aliança para o campo da luta, na esperança de que a presença de Deus os conduzisse à vitória. Mas os filisteus dizimaram os hebreus e se apoderaram da arca. Esses episódios estão descritos no I Livro dos Reis, capítulo 4. A pintura acima, encontrada numa sinagoga do século III na Síria romana, retrata a captura da arca. (PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 35.)

Galeria de imagens:

Homem santo

Moisés é retirado do rio pela filha do faraó

A Adoração do bezerro de ouro

Samuel ungi Davi

O sacrifício de Isaac

Um profeta hebreu lê um pergaminho

A batalha de Eben Ezer

A batalha de Eben Ezer

Moisés divide o Mar Vermelho


David, Rei de Israel

quarta-feira, 19 de março de 2014

Tibério Graco: justiça social em Roma

Os animais da Itália possuem cada um sua toca, seu abrigo, seu refúgio. No entanto, os homens que combatem e morrem pela Itália estão à mercê do ar e da luz e nada mais: sem lar, sem casa, erram com suas mulheres e crianças. Os generais mentem aos soldados quando, na hora do combate, os exortam a defender contra o inimigo suas tumbas e seus lugares de culto, pois nenhum destes romanos possui nem altar de família, nem sepultura de ancestral. É para o luxo e enriquecimento de outrem que combatem e morrem tais pretensos senhores do mundo, que não possuem sequer um torrão de terra.

PLUTARCO, Tibério Graco, IX, 4. In: PINSKY, Jaime. 100 textos de história antiga. São Paulo: Contexto, 2009. p. 20. (Textos e documentos, 1).

O mercado de Escravos,  Gustave Boulanger

segunda-feira, 17 de março de 2014

A Arqueologia e as outras áreas do conhecimento

A arqueologia é uma disciplina que não pode ser desvencilhada de muitas outras com as quais está relacionada. O estudo da cultura material, de todo o imenso arsenal de artefatos que fazem parte do cotidiano do ser humano depende, em muitos casos, da interação da arqueologia com outras áreas.


Escavação em Pompeia, Lello Capaldo

A sua relação com a história é particularmente importante, quando mais não fosse porque, para alguns arqueólogos, a sua disciplina nada mais seria do que uma complementação da história [...]. Além disso, na tradição europeia, da qual somos também tributários, a arqueologia surgiu no seio da história. Assim, qualquer que seja o ponto de vista, a relação com a história constitui aspecto central da disciplina [...].

A cultura material estudada pelo arqueólogo insere-se, sempre, em um contexto histórico muito preciso e, portanto, o conhecimento da história constitui aspecto inelutável da pesquisa arqueológica. Assim, só se pode compreender a cerâmica grega se conhecermos a história da sociedade grega, as diferenças entre as cidades antigas, as transformações por que passaram. A história, contudo, não é tampouco uma descrição do passado tal qual aconteceu, é uma interpretação e, por isso, tanto mais será importante conhecer as controvérsias historiográficas sobre o período histórico tratado.

Não se trata, assim, de usar a história como fonte segura de informações, mas de conhecer as discussões dos historiadores e relacionar tais questões à cultura material estudada. As ciências não são apenas auxiliares umas das outras, elas mantém relações entre si. Os dados materiais, analisados pela arqueologia, podem tanto confirmar, como complementar e mesmo contradizer as informações das fontes históricas. Esses dois últimos aspectos são os mais importantes, pois permitem ao arqueólogo ir além daquilo que está nas fontes escritas.

[...]

No século XIX, quando surgiu a antropologia, o contato das potências imperialistas, como Inglaterra, França e Estados Unidos, com povos periféricos, a exemplo dos africanos, asiáticos e latino-americanos, fez com que essa disciplina se desenvolvesse, como uma maneira de conhecer de que modo viviam os chamados "primitivos". Nos Estados Unidos, a oposição entre "nós" (os americanos) e "eles" (os primitivos) dividiu as disciplinas história e antropologia, que se constitui de quatro áreas: etnologia, lingüística, antropologia física e arqueologia.

Todas essas disciplinas ligavam-se ao estudo dos indígenas, vivos ou mortos. Para o conhecimento dos índios mortos, por meio dos vestígios materiais, desenvolveu-se a arqueologia. Com o decorrer do tempo, contudo, a antropologia passou a tratar do conhecimento dos ritos, costumes e características de quaisquer sociedades, em qualquer época, inclusive as nossas contemporâneas. Se a história se preocupa com a transformação e a mudança, a antropologia procura explicar a transmissão de valores culturais, de normas de conduta.

[...]

Mas não é apenas no estudo dos artefatos que a antropologia é importante. A antropologia pode fornecer modelos de funcionamento da sociedade que permitem ao arqueólogo melhor entender o que ele estuda. [...]

[...] a antropologia física pode ser decisiva para o trabalho arqueológico. Para tanto, é necessária a preservação de vestígios esqueletais, algo que nem sempre é fácil, já que solos ácidos consomem os ossos em poucos anos. Quando preservados, sua análise permite que possamos estudar uma infinidade de aspectos da vida daqueles seres humanos. Assim, podemos saber quais as idades aproximadas em que as pessoas morriam e suas condições físicas no final da vida. Com isso, depreendemos que, em muitas sociedades antigas, a maioria das pessoas morria relativamente jovem.

Podemos, ainda, identificar algumas das doenças que afligiam populações antigas, assim como, pelo desgaste dos dentes, sabemos o que comiam ou mesmo se usavam os dentes para trabalhos de cestaria, como era o caso de tribos indígenas brasileiras. Em Herculano, cidade soterrada pela erupção do Vesúvio em 79 d.C., encontraram-se corpos que mostram até mesmo as deficiências alimentares e os maus tratos sofridos pelos escravos romanos.

Mais recentemente, arqueólogos em colaboração com antropólogos físicos, escavaram e identificaram corpos de pessoas assassinadas pelas ditaduras latino-americanas, os chamados "desparecidos". Na medida em que não há registros das pessoas assassinadas pelas ditaduras, a identificação dos mortos assim como da maneira como morreram pode ser muito importante para os familiares das vítimas e para a sociedade como um todo.

[...]

Da antropologia física, passemos à biologia, seja em termos de teorias, seja das técnicas. O evolucionismo, surgido com as teorias de Charles Darwin para explicar as transformações da vida, tem sido aplicado ao estudo arqueológico, em especial o estudo das mudanças nas espécies de primatas e às plantas e animais ligados ao homem. [...]

O estudo do DNA dos animais e das plantas tem sido também muito difundido, trazendo relevantes informações para os arqueólogos. [...] O estudo genético dos indígenas americanos tem indicado, por sua parte, que todos têm origem asiática e que a sua migração nas Américas deu-se do Alaska para o sul.

Já a geografia, tanto física como humana, relaciona-se de maneira estreita com a arqueologia, pois os homens sempre viveram em interação com o meio ambiente. O conhecimento das condições fisiográficas e climáticas, em determinado momento do passado, é importante para se entender, por exemplo, o surgimento da civilização egípcia. [...]

[...]

As diversas histórias da arte e da arquitetura também são áreas importantes para o estudo arqueológico das sociedades históricas, nas quais os estilos artísticos e arquitetônicos marcam as diversas civilizações desde, ao menos, cinco mil anos. Todos vivemos tanto no espaço externo, geográfico, como no espaço construído dos edifícios. A arqueologia da arquitetura tem mostrado como as plantas dos edifícios podem nos dizer muito sobre a maneira como as pessoas viviam, fundamentado no princípio da facilidade ou dificuldade de acesso ao interior e aos aposentos.

[...]

O controle e a vigilância da sociedade capitalista foi incorporado na arquitetura, a partir de fins do século XVIII, tema que foi abordado por estudiosos de outra área do conhecimento: a filosofia. [...] Segundo Foulcaut, a sociedade, a partir do século XIX, tornou-se cada vez mais controladora e vigilante do comportamento das pessoas, o que afetou inclusive a cultura material e não apenas os edifícios [...].

[...]

O marxismo, por sua vez, é tão variado que se poderia citar uma pletora de influências na arqueologia, com destaque para o papel chave da filosofia marxista tal como entendida por Vere Gordon Childe, já no início do século XX, e para os marxismos da Escola de Frankfurt e sua teoria crítica [...].

[...]

Segundo alguns estudiosos marxistas, a arqueologia voltada para o divertimento, à la Indiana Jones, seria mero entretenimento. Seria como se a arqueologia servisse apenas para as pessoas sonharem com as antigas civilizações, "viajarem" como o fazem ao folhear as belas imagens da revista National Geographic. [...]

A arqueologia liga-se a outra ciência humana: a lingüística. Em termos históricos, tanto a arqueologia europeia como americana surgiram no bojo do estudo das línguas. A filologia histórica europeia estabeleceu a existência de troncos lingüísticos e, por analogia, procurou-se identificar, na cultura material, tais transformações e origens. [...]

[...]

A arqueologia não pode ser pensada, ainda, sem a referência à museologia, aos estudos de gestão do patrimônio, ao seu aspecto público. [...]

[...]

A arqueologia cada vez mais deve voltar-se para as disciplinas que refletem sobre o destino da cultura material que ela estuda e o caminho que se tem proposto é a colaboração da população em geral de maneira que esta possa ajudar a definir os usos desse material e mesmo sua interpretação. Também mostra-se relevante a tendência de interação dos arqueólogos com grupos de interesse, como os movimentos de mulheres ou de minorias étnicas (como os indígenas, os afro-descendentes etc.), sempre objetivando uma arqueologia que não seja excludente, mas que propicie a participação das pessoas no acesso ao conhecimento.

FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2010. p. 85-98.

NOTA: O texto "A Arqueologia e as outras áreas do conhecimento" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento arqueológico.

sábado, 15 de março de 2014

As primeiras populações na Amazônia

Houve na Amazônia uma fase bastante seca, entre 18.000 e 12.000 anos atrás. Por isso, chegou-se a pensar que a mata tinha quase desaparecido, substituída por uma grande extensão de cerrados, no interior da qual teriam resistido "ilhas" florestais. De fato, acredita-se hoje que o recuo das matas tenha sido moderado, embora um "corredor" de vegetação mais aberta talvez tenha existido no meio da hileia, facilitando uma passagem terrestre no sentido norte-sul para os primeiros colonos.

Em todo caso, parece que a mata atual estava estabelecida no início do Holoceno, período durante o qual algumas flutuações climáticas menores, causadas por episódios do tipo El Niño, causaram em vários momentos um déficit em água. Isso determinou ou facilitou a propagação de incêndios catastróficos. Alguns arqueólogos acreditam que eles poderiam justificar êxodos de populações e sua posterior substituição por outros grupos, explicando a sucessão das tradições ceramistas na Amazônia. No entanto, trata-se de uma hipótese ainda não comprovada.

As mais antigas datações vêm de escavações realizadas no abrigo da Pedra Pintada de Monte Alegre, no Pará. Entre 10.000 e 11.200 anos atrás, encontram-se vestígios de uma densa ocupação de caçadores, pescadores e coletores que deixaram instrumentos de pedra lascada: milhares de lascas e várias pontas de dardo bifaciais, bem como lesmas unifaciais, lembrando a Tradição Itaparica do Brasil central. Pigmentos minerais preparados indicam que parte das pinturas rupestres do abrigo pode ter sido elaborada nessa época. Os restos alimentares incluem muitas espécies vegetais, inclusive a castanha-do-pará e numerosos coquinhos.


Pintura rupestre, Pedra Pintada, Pará

Na bacia do rio Guaporé, o abrigo do Sol também forneceu evidências de ocupação até cerca de 12.000 anos atrás, mas os dados sobre elas ainda não foram publicados.

Sabemos pouco sobre os milênios seguintes, por falta de prospecções e escavações sistemáticas. Mas, contrariando uma opinião tradicional de que não haveria indústrias de pedra lascada na Amazônia, as escavações recentes realizadas em Roraima e na região de Manaus mostram que, onde existiam afloramentos de rocha adequados, os homens pré-históricos produziram lascas cortantes, pontas de projétil com aletas e pedúnculo, e lâminas de machado lascadas. Dessa forma, a presença de caçadores está bem-comprovada entre 8.000 e 3.000 anos atrás em várias partes da bacia Amazônica.

Em sítios de coleta de moluscos - modestos sambaquis do baixo Amazonas e do litoral norte-maranhense - aparece uma cerâmica muito antiga, talvez a mais antiga das Américas, datada de pelo menos 5.500 anos, possivelmente 7.000 anos. As condições climáticas não permitiram a preservação dos vegetais nos sítios a céu aberto, e não se sabe quando teve início o cultivo de plantas. Deve ter sido há mais de 4.000 anos, pois nessa data a mandioca apareceu no Peru, muito provavelmente trazida da bacia Amazônica, de onde seria originária. De qualquer forma, foi preciso esperar o início da Era Cristã para que os sítios arqueológicos (reconhecidos sobretudo pela presença em superfície de vestígios cerâmicos) se multiplicassem. A maioria deles foi agrupada em duas grandes tradições, ambas reconhecíveis a partir do século IV ou V da nossa era.

A primeira, cujas mais antigas manifestações encontram-se na ilha de Marajó, é caracterizada por uma cerâmica decorada com padrões pintados complexos. Sendo por isso chamada Tradição Policroma, apresenta uma versão oriental (Subtradição Marajoara); e outra, ocidental (Subtradição Guarita). Esta parece ter-se desenvolvido no sentido leste-oeste, ao longo do rio Amazonas, a partir de sua foz, até alcançar os primeiros contrafortes dos Andes.

A segunda tradição parece oriunda das Guianas e da Venezuela, também no século IV. Ela penetra posteriormente a Amazônia brasileira, seguindo um eixo norte-sul. Chamada Tradição Incisa-Ponteada, em razão de uma decoração típica, inclui as famosas cerâmicas chamadas de Santarém ou dos Tapajós.

PROUS, André. O Brasil antes dos brasileiros: a pré-história do nosso país. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 110-2.

NOTA: O texto "As primeiras populações na Amazônia" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento arqueológico.

quinta-feira, 13 de março de 2014

A natureza encontrada pelos europeus: os animais

A caça, alimento básico dos índios, foi também a fonte principal de proteína dos brancos, porque sua abundância supria a falta dos diversos tipos de gado cuja criação apenas começava a ser implantada. As capivaras, os porcos-do-mato, os veados, os tatus, as pacas, as cotias e as aves silvestres eram pratos muito apreciados. Da anta, o mais curioso e o maior dos mamíferos brasileiros - animal pacífico e tímido que se escondia na água quando perseguido - aproveitava-se, além da carne, a pele que, depois de seca e curtida, era utilizada para fazer couraças ou escudos contra flechas.

Para divertimento e regalo com sua beleza ou alegria existiam os papagaios, as araras e os macacos, que atraíam com suas imitações de gestos ou sons.

Arara azul e amarela, Caspar Schmalkalden

Ao contar sobre os animais estranhos aos europeus, os cronistas apelavam para referenciais conhecidos, fazendo muitas vezes descrições bastante curiosas:

Há uns bichos nessa terra que também se comem e são tidos como a melhor caça que há no mato. Chamam-lhes tatus. Os tatus são do tamanho de coelhos e têm um casco como o da lagosta, mas repartido em muitas juntas como lâminas; parecem um cavalo armado, têm um rabo do mesmo casco comprido e o focinho como o de um leitão e não botam mais do que a cabeça para fora do casco, têm as pernas curtas e criam-se em covas, sua carne tem o sabor quase como o de galinha.

* Peixes. O quadro da fartura se completava com os peixes de mar e de água doce que constituíam a base da alimentação de pobres e ricos. Os proprietários de engenho empregavam diversos índios na pesca. As tainhas, muito abundantes na Bahia, eram secas e salgadas para alimentação dos escravos do engenho e dos marinheiros.

Nas praias colhiam-se siris, mariscos e mexilhões, e nos mangues eram encontrados os caranguejos uçaí em tal quantidade que completavam a ração dos escravos, como lembra Souza:

E não há morador nas fazendas da Bahia que não mande cada dia um índio mariscar destes caranguejos e de cada engenho vão quatro a cinco destes mariscadores com os quais dão de comer a toda gente de serviço: e não há índios destes que não tome cada dia trezentos e quatrocentos caranguejos que trazem vivos num cesto serrado feito de verga delgada, a que os índios chamam samburá; e recolhem em cada samburá destes um cento, pouco mais ou menos.

Caranguejo, Zacharias Wagener

* Onças, cobras e insetos. O "paraíso tropical" tinha, entretanto, seus perigos e desconfortos que aterrorizavam e infernizavam a vida dos moradores.

Em certas regiões, diversas espécies de onças negras, ruivas ou pintadas costumavam atacar índios e brancos pulando do alto das árvores, pelos caminhos, ou invadiam habitações caso não encontrassem o fogo pela frente.


Vale da Serra do Mar, Jean-Baptiste Debret

A criação de gado pelos colonos proporcionou uma nova fonte de alimento para esses grandes e poderosos felinos que podiam matar uma vaca com uma só patada.

Curioso é o mito difundido na época (e aceito por muitos até hoje) de que as onças preferiam a carne dos negros à dos brancos e índios. É bem possível que isso fosse utilizado como argumento de dissuasão para os negros com intenção de fugir para as matas.

Para os portugueses recém-chegados, eram causa de grande terror as cobras de todos os tipos e tamanhos, que matavam de diversas formas. Impressionantes eram as sucuris, as boiúnas e jibóias que tinham de dois a quinze ou até trinto metros de comprimento. Elas matavam por esmagamento do esqueleto da caça, que depois era devorada inteira. Finda a deglutição, a cobra se ocultava ou se acomodava para um longo processo de digestão que poderia levar até semanas. Essas cobras engoliam desde ratos e pacas até porcos-do-mato, veados, cães, vacas e seres humanos. As histórias sobre resíduos de todo tipo encontrados nas vísceras de cobras mortas aumentavam o pavor que elas já inspiravam. O perigo evidentemente era exagerado, uma vez que raramente atacavam o homem. As mais perigosas e assustadoras eram as cobras venenosas como a jararaca, que atacava à beira dos caminhos ou de cima das árvores; a coral, que se escondia entre pedras e ramos secos; e a cascavel, com seus guizos sinistros. As suas picadas eram causa frequente da morte dos povoadores, especialmente dos que andavam descalços no campo, como era o caso dos escravos.

* Saúvas. Gabriel Soares de Souza chama as saúvas de "a praga do Brasil", pois essas formigas, altamente organizadas e destrutivas, conseguiam dizimar em uma noite roças inteiras de milho, mandioca, cana ou árvores de frutas como laranjeiras, romeizas ou mesmo parreiras.

O seu número infindável, a capacidade de cortar folhas e transportá-las para seus extensos formigueiros, o gosto por plantas sem mato em volta, o seu alto nível de organização com espias e toda sorte de ardis para chegar ao alimento desanimavam os agricultores. Dois ou três ataques seguidos de saúva podiam destruir as plantas mais saudáveis. Souza lembrava que o Brasil podia atrair muitos povoadores

pois se dá nele tudo o que se pode desejar, o que esta maldição impede, de maneira que tira o gosto aos homens de plantarem senão aquilo sem o que não podem viver na terra.

O problema da saúva só podia ser enfrentado com a destruição manual dos formigueiros, o que era quase impraticável no sistema de lavoura extensiva da época. Esse problema se prolongou até meados do século XX, quando ficou famoso o slogan "ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil". Somente com a elaboração do inseticida DDT conseguiram-se vitórias significativas sobre esse inimigo legendário dos agricultores.

* Outras formigas e cupins.  Mais estranhas eram as formigas corredeiras ou de passagem que, em certas épocas de chuva intensa, punham-se a caminho aos milhões, ocupando uma extensa faixa de terreno, sem se deter diante de nenhum obstáculo. Não atacavam nem as plantas nem os animais maiores, apenas baratas, aranhas, ratos e até cobras que devoravam ou arrastavam consigo. À sua passagem todos fugiam apavorados, fossem cães, gatos, gado ou seres humanos.

Existiam ainda outros tipos de formigas grandes ou pequenas que invadiam as casas em busca de alimentos preparados ou de açúcar; ou ainda mordiam as pessoas, causando queimaduras muito dolorosas.

Grande prejuízo era causado pelos cupins que invadiam casas e atacavam móveis e madeiramentos atingidos através de túneis de barro fino que recobriam seus caminhos e ninhos. Depois de instalavam no próprio madeiramento que apodrecia e se esfarelava se não defendido a tempo.

Insetos, Zacharias Wagener

* O bicho-de-pé. O inseto mais curioso, traiçoeiro e perigoso para a saúde era o bicho-de-pé (o tungaçu dos índios), muito temido pelos portugueses.

Desenvolvia-se nas casas térreas e quintais empoeirados e atacava as pessoas pouco dadas à limpeza. Os cronistas acentuam que os asseados e não-preguiçosos eram pouco prejudicados, porque o remédio era lavar e examinar os pés todas as tardes para retirar os minúsculos insetos pretos que entravam na pele, especialmente entre os dedos e embaixo das unhas. Ao penetrar na carne, provocavam uma ligeira dor ou uma comichão, tão suave que a vítima não se dava conta dela. Os bichos-de-pé deviam ser retirados antes que pusessem os ovos em ninhos semelhantes a pequenas bolsas, que também deviam ser retirados inteiros para impedir a reprodução. Se isso não fosse feito, essas bolsas cresciam sem parar, criando calombos dolorosos que infeccionavam e podiam até provocar a amputação do pé.

O banho diário aprendido com os índios (que proporcionava conforto contra o calor e impedia muitas doenças de pele), e o costume de lavar os pés e retirar os bichos defenderam os colonos dos efeitos mais graves do bicho-de-pé.

MESGRAVIS, Laima; PINSKY, Carla Bassanezi. O Brasil que os europeus encontraram. São Paulo: Contexto, 2000. p. 20-5.

NOTA: O texto "A natureza encontrada pelos europeus: os animais" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento antropológico.

terça-feira, 11 de março de 2014

A natureza encontrada pelos europeus: as plantas

* Mandioca. Dentre as plantas alimentícias a que mais impressionou os europeus pela utilidade e por suas características curiosas foi a mandioca. Planta arbustiva, suas diversas variedades produziam raízes de tamanho e grossura variáveis, chegando até cinco ou seis palmos de comprimento e uns dois de circunferência.

Raízes e planta da mandioca, Zacharias Wagener

Alimento vegetal básico dos índios, foi adotado pelos colonos e usado também para alimentar animais domésticos. O seu preparo, entretanto, exigia cuidados especiais, pois a mandioca só podia ser consumida depois de descascada, ralada e espremida, operações que retiravam o perigoso veneno de seu sumo. Esse veneno era utilizado pelos índios para matar seus desafetos; os animais domésticos morriam se tivessem contato com esse líquido.

A farinha era consumida sozinha ou com carne, caldos ou legumes, podendo ser transformada em pão, bolo e biscoito. Outra variedade de farinha, mais fina e delicada - a carimã - era obtida das raízes fermentadas. Seu mingau era bom para doentes e crianças.

Léry descreve pitorescamente o modo como a farinha seca era consumida pelos índios sem o uso de colheres ou garfos.

Os tupinambás, tanto os homens como as mulheres, acostumados desde a infância a comê-la seca em lugar do pão, tomam-na com os quatro dedos na vasilha de barro ou em qualquer outro recipiente e a atiram, mesmo de longe, com tal destreza na boca que não perdem um só farelo. E se nós franceses os quiséssemos imitar, n]ao estando com eles acostumados, sujaríamos o rosto, ventas, bochechas e barbas.

Esse hábito prático e curioso foi incorporado pelos nossos caipiras e ainda é conhecido em muitos lugares do Brasil como "comer de arremesso".

Da mistura da mandioca ralada e espremida com alguns punhados de carimã e torrada em panelas fazia-se a "farinha de guerra" que os índios usavam em suas viagens e expedições guerreiras. Ela se tornou a principal provisão das bandeiras e foi usada pelos portugueses no campo, na cidade e nas longas viagens marítimas.

Outros alimentos nativos como o aipim, o milho, os feijões, as batatas e os carás completavam a dieta básica dos brasileiros.

* Amendoins e pimentas. O primeiro impacto do amendoim era a estranheza da planta cujos frutos encontrados nas pontas das raízes dentro de cascas duras com três ou quatro grãos dentro.

Os grãos muito saborosos eram comidos depois de cozidos, assados com a casca ou torrados sem elas. As mulheres portuguesas em pouco tempo passaram a aproveitar o amendoim em doces ou confeitos que substituíam nozes e castanhas europeias.

Com os índios, os colonos aprenderam a usar diversas qualidades de pimenta que misturavam com o sal nos legumes, nos pescados, nas carnes e nos caldos, dando início à tradição da culinária baiana.

* Cajus, bananas e abacaxis. No capítulo da incontável variedade de frutas saborosas e estranhas - como a jabuticaba e a jaca -, destacam-se o caju, o ananás (ou abacaxi) e a banana.

Cajus, Zacharias Wagener

O caju já era muito apreciado pelos índios, que até estabeleciam a própria idade relacionando-a com as épocas de sua floração ou colheita e logo tornou-se indispensável aos colonos. Muito fresca e digestiva essa fruta era recomendada no combate às febres, dando ainda bom hálito a quem o consumisse pela manhã.

Gabriel Soares de Souza, em suas minuciosas e até científicas descrições dos produtos brasileiros, comenta:

Fazem-se estes cajus de conserva, que é muito suave, e para se comerem logo cozidos no açúcar, cobertos de canela não têm preço. Do sumo dessa fruta faz o gentio vinho com que se embebeda, que é de bom cheiro e saboroso.

Aproveita-se também a deliciosa castanha, apesar das precauções necessárias para retirar a casca dura que queimava e empolava a pele.

As pacobas dos índios, que ficaram mais conhecidas pelo nome africano de bananas, encantavam o olhar europeu pela beleza plástica do cacho de frutos amarelos que pendia de uma árvore de folhas largas e verdes. Até hoje a banana, o coco, o abacaxi e o mamão são os símbolos universalmente mais conhecidos e divulgados do esplendor sensual dos trópicos.

Como alimento básico, a banana sempre complementou a dieta de colonos e escravos. Assada em lugar da maçã, era boa para doentes e, como guloseima, era transformada em marmelada, geléia ou seca ao sol.

Muitos localizaram no miolo da banana (escurecido parecendo uma cruz), "um sinal do favor divino". Gabriel Soares de Souza nos conta: "quem cortar atravessadas as pacobas ou bananas, ver-lhes-á no meio uma feição de crucifixo, sobre o que contemplativos têm muito a dizer".

No esforço de identificar todos os sinais da localização do Jardim do Éden, o padre Simão de Vasconcelos desenvolve extensa argumentação que envolve as qualidades do céu, do ar, do clima, dos animais e das plantas, que a seu ver comprovam o caráter maravilhoso da terra. Entre as plantas - afirma - a maior das maravilhas é "a que os portugueses chamam de erva da Paixão, os índios maracujá... a flor é o mistério único das flores. Tem o tamanho de uma grande rosa; e neste breve campo formou a natureza como um teatro dos mistérios da Redenção do mundo". Descrevendo as diversas partes da flor, demonstrava que ali se encontravam todos os símbolos da morte de Cristo e concluía: "a esta flor por isso chamam flor da Paixão, porque mostra aos homens os principais instrumentos dela, quais são coroa, coluna, açoites, cravos, chagas".


Maracuja, Georg Marcgraf

O rei das frutas era sem contestação de nenhum cronista o ananás, ou abacaxi. O sabor e perfume delicados e irresistíveis, contrastando com a aspereza da casca e da planta, não cansavam de maravilhar a todos. Assim como o caju, prestava-se à preparação de doces, vinhos e refrescos e à recuperação de doentes.


Abacaxi, Georg Marcgraf e/ou Zacharias Wagener

Somados aos mamões, laranjas, limões e a frutas menos conhecidas como o ombu, a colônia oferecia um grande número de alimentos ricos em vitaminas e sais minerais. Seu efeito curativo sobre doenças como beribéri e o escorbuto - decorrentes, como se sabe hoje, de dietas deficientes em vitaminas B e C -, que dizimavam os viajantes de longas travessias, tornavam-nas desejadas por todos que passavam pelos portos.

A ambivalência de plantas alimentícias como a mandioca, o caju, o ananás e outras em que uma aparência hostil ocultava sabor suavíssimo, em que um caldo venenoso antecedia uma farinha comestível e manchava a pele, criava uma impressão agridoce da nova terra. Era um mistério a ser decifrado, em que a aparência inocente ocultava perigo, violência, morte ou costumes bestiais - como acontecia com as plantas e os índios - ou o aspecto grosseiro e agressivo encobria as delícias do paraíso.

É de se lamentar que as primeiras tentativas literárias em poesia ou prosa sobre os sentimentos inspirados pela vida cotidiana na colônia tenham sido tardios e raros com algumas manifestações somente nos séculos XVII e XVIII.

A introspecção e a reflexão não atraíram homens empenhados em conquistar, enriquecer, reproduzir-se, enfim: sobreviver. Viver parecia mais interessante e absorvente do que pensar, escrever ou divagar.

* O tabaco e o vício do fumo. Conhecido na época como perfume ou erva-santa, o tabaco usado pelos índios foi adotado pelos colonos e levado para a Europa. Era considerado remédio eficiente para a cura de feridas e bicheiras de homens e animas. Seu uso como fumo causava polêmica.

Gabriel Soares de Souza assim descreve o estranho hábito:

A folha dessa erva, como é seca e curada, é muito estimada dos índios, mamelucos e dos portugueses, que bebem o fumo dela, ajuntando muitas folhas destas torcidas umas às outras, e metidas num canudo de folha de palma, e põe-se-lhe o fogo por uma banda, e como faz brasa metem este canudo pela outra banda na boca, e sorvem-lhe o fumo para dentro até que sai pelas ventas fora.

O vício de "beber fumo" propagou-se rapidamente entre os colonos e, chegando à Europa, foi objeto de condenação papal. No Brasil, o ato de fumar também parecia a muitos coisa diabólica a ponto de justificar certa vez a denúncia o infeliz donatário da capitania do Espírito Santo à Inquisição.

O mundo vegetal oferecia ainda muita coisa "mágica" como os cipós (que substituíam as cordas), ervas medicinais e venenosas e sobretudo árvores de todo tipo, tamanho e dureza, que foram empregadas em madeiramento de casas, maquinário de engenho, construção de barcos e navios. Grande admiração causava o tamanho e grossura de certas árvores que tinham troncos de trinta, quarenta e até cem palmos de largura, chegando a fornecer, individualmente, taboado suficiente para uma casa ou uma igreja.

Derrubada de uma floresta, Rugendas

Os prejuízos causados pelo corte desenfreado de madeiras nobres não passaram despercebidas e, já no século XVII, uma carta régia procurava regulamentar e preservar o seu uso.

No entanto, a carta foi desobedecida e grande parte das espécies descritas por escritores da época estão extintas.

MESGRAVIS, Laima; PINSKY, Carla Bassanezi. O Brasil que os europeus encontraram. São Paulo: Contexto, 2000. p. 14-20.

NOTA: O texto "A natureza encontrada pelos europeus: as plantas" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento antropológico.