"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

O paraíso dos bicudos: o Rio de Janeiro dos vice-reis

Vista do Paço Imperial no Rio de Janeiro, J. B. Debret.

No Beco dos Cachorros, a multidão barulhenta procura as lojas de tecidos. Negros escravos, frades gordinhos e soldados da milícia passam por entre os mendigos na rua do Guindaste, onde se destaca a loja de ferragens do "seu" Jacinto.

Na rua da Cadeia, judeus, mouros do norte da África, ciganos e funcionários do governo querem comprar o melhor tabaco. Padres são seguidos por beatas que lhes beijam as mãos, as vestes e até as fivelas dos sapatos, na rua do Piolho. E aproveitam para pedir dinheiro para as obras da Capela!

Esse é o Rio de Janeiro, capital da Colônia desde 1763: uma cidade onde tudo se vende e tudo se compra! Uma cidade de comerciantes.

A vala aberta no meio das ruas de terra e pedra provoca um terrível mau cheiro. Não há esgotos subterrâneos. As águas paradas fazem a alegria dos mosquitos transmissores de doenças como a febre amarela, mas ninguém parece se importar com isso. Volta e meia um distinto senhor tropeça e cai, emporcalhando suas roupas de seda. As moças e senhoras não correm esse risco, pois, nas poucas vezes em que saem de casa, andam sempre no canto das calçadas... E tapando o nariz, para não sentir enjôo: há também animais mortos nos caminhos.

Não interessava muito que, diariamente, o tifo, a cólera, as diarréias e as verminoses fizessem suas vítimas: o negócio era comprar e vender! A limpeza da cidade ficava por conta das chuvas e dos urubus. Um cronista do Rio de Janeiro, Luís Edmundo, ironizou, mais de um século depois:

Natureza mãe! Natureza amiga!
O homem suja, o vento varre
A água lava e o sol enxuga!

Alguns escravos, entretanto, trabalhavam na higiene... da casa de seus senhores, logicamente. Enchiam grandes barris - chamados tigres - com as sujeiras do banheiro e o lixo da cozinha e despejavam nas valas das ruas ou nas praias. Ai de quem esbarrasse num daqueles tigres!

Água encanada só para umas poucas e ricas famílias. Para a grande maioria, o jeito era contar com o bom funcionamento dos chafarizes,  bicas e poços públicos. Quanto mais chuva melhor, desde que não caísse por dias seguidos, pois neste caso provocaria terríveis inundações...

Carregadores de água, Hércules Florence

Estamos no Rio de Janeiro, capital do Vice-Reino do Brasil, colônia do Reino de Portugal, final do século XVIII. O azeite de peixe queima no lampião, iluminando a rua do Cano. Um grupo de homens conversa animadamente. Todos usam chapéus de feltro com abas larga, alguns têm barbas enormes. Um está descalço, os outros usam sandálias sem meias:

- O diabo é ter que comprar tudo desses "bicudos"! - diz um homem alto, vestido com um capote velho.

- O "cotruco" do "seu" Manuel ainda acha que devemos agradecer a Deus, pois sem os portugueses isso aqui seria um atraso só, sem nenhum benefício da civilização... - completa o homem descalço.

- Para ele, que começou vendendo alho e cebola em sociedade com outro "caiado" e agora já trouxe toda a "galegada" de Portugal, até que está bom! - fala o homem de capote.

- Cá entre nós, às vezes eu fico achando que era melhor viver no meio dos "bugres" do que ter que aturar a roubalheira desses "abacaxis"! - afirma um homem bem moreno, tirando o chapéu e coçando uma vasta cabeleira.

- Não tem saída: é o pano no "caneludo" do "seu" Joaquim ou no "labrego" do Antônio. É o serrote no "cupé" do Jacinto ou no "maroto" Dantas. É o vinho e o bacalhau no "mondrongo" do Martinho ou no "parrudo" do "seu" Alvarenga! - concluiu, com a concordância de todos, um moço vestido com um poncho surrado pelo tempo.

Tão comuns quanto os bichos mortos e a lama nas ruas eram essas conversas de esquina. Quem não reclamava dos preços altos das mercadorias vendidas pelos comerciantes reinóis? Na boca dos brasileiros, os comerciantes lusos eram "bicudos" e "parrudos" ou também, "candangos", "pés-de-chumbo", "jalecos", "japonas", "marinheiros", "marabutos", "marretas", "novatos", "puças" e "sapatões". Tantos apelidos assim mostravam pelo menos uma coisa: ninguém aqui morria de amores pelos colonizadores, em especial pelos comerciantes.

Para estes, porém, o Rio de Janeiro era um paraíso! Lucros fáceis e proteção do governo. Os mais bem-sucedidos construíam grandes sobrados, mais vistosos que os poucos prédios públicos. Houve quem preferisse morar nas partes altas da cidade como no Morro do Castelo: ali essa gente tão importante estaria mais protegida dos ataques estrangeiros e das ressacas do mar bravio! E longe do odor desagradável que vinha das ruas da cidade baixa...

Nas casas ricas da capital, de grandes mercadores ou de fazendeiros que queriam estar mais próximos do governo, meninas suspiravam atrás das janelas fechadas por ripas de madeira. Boa parte de suas vidas aquelas mulheres de longas tranças passavam em quartos sombrios e úmidos, longe das ruas.

ALENCAR, Chico et alli. Brasil vivo 1: uma nova história da nossa gente. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 67-68.

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