"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Os libertinos. A libertinagem de espírito. O ceticismo dos libertinos (Parte 2)

A surpresa, Jean-Antoine Watteau

O movimento cético contribuía para distanciar do cristianismo baseado em razões. O cristianismo dos libertinos pretende de um lado que, remontando aos objetos criados ao Criador, é possível provar a existência de Deus, de outro, que uma crítica histórica racional estabelece os fatos históricos de onde podemos inferir a divindade de Cristo. Ora, os libertinos eram todos pirrônicos, céticos absolutos: La Mothe Le Vayer dizia, em 1630, no diálogo de Orasius Tubero:

Toda a nossa vida, pensando bem, não passa de uma fábula; nosso conhecimento, de uma asneira, nossas certezas, de contos; em suma, todo este mundo não passa de uma farsa e de uma comédia perpétua.

Movidos pela sensibilidade barroca, ampliaram e desenvolveram a lição dos grandes italianos da Renascença e de Montaigne. [...]

Desse materialismo resultavam inúmeras consequências. Primeiro, a impossibilidade de saber algo a respeito da essência das coisas. Nossos sentidos só nos permitem alcançar uma verdade relativa, o que nos basta para a prática. A natureza real das coisas escapa-nos. O que valem as especulações acerca da natureza do Ser e da natureza de Deus? O que valem mesmo as provas da existência de Deus? O que vale esta prova da existência de Deus pelo consentimento universal dos povos que possuiriam. todos, a ideia inata de Deus? Não possuímos ideia inata, tudo vem dos sentidos e a imaginação combina os dados dos sentidos de formas tão diversas que muita gente talvez não tenha ideia alguma de Deus. Para Gassendi, tal ideia de Deus, com suas noções de infinito, eternidade, perfeição, onipotência e bondade suprema, não é - porquanto todas as ideias gerais procedem dos sentidos - senão a extensão e o engrandecimento das perfeições constatadas na espécie humana. Deus é o Homem desenvolvido ao extremo.

Provinha daí a desconfiança no tocante ao testemunho histórico. Como fiar-se em testemunhas cujas ideias se formam de modo a permitir tais possibilidades de erro? [...] Em geral, os fundadores e os chefes de Império apresentam-se como órgãos de uma divindade a fim de formar sua autoridade. Os monges da Tebaida inventava, falsas histórias de combates com o Diabo para conquistar renome e subtrair dinheiro dos ingênuos. A conversão de Clóvis, a vocação de Joana d'Arc, a inspiração de Maomé por Gabriel e a de Moisés por Deus constituem subterfúgios políticos. Mas no que se transformam então os testemunhos evangélicos e o cristianismo?

MOUSNIER, Roland. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 337-339. (História geral das civilizações, 9).

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