"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 8 de dezembro de 2013

De heróis e de História

Manifesto publicitário da Exposição Internacional de Torino, 1911. Adolfo de Carolis.

Que seria dos americanos sem os heróis da conquista do Oeste? Não a conquista de verdade, aquela que foi feita à custa da devastação de planícies, búfalos e índios, da vitória dos fortes sobre os bons, e dos espertos sobre os cultos, mas aquela que está colada no imaginário das pessoas, a da conquista do indivíduo sobre a massa, do destemido sobre o fraco, do vencedor sobre o fracassado?

Que seria da França sem Joana D’Arc? Não a mocinha esquizofrênica, que ouvia vozes, foi manipulada pelos poderosos e morreu queimada na fogueira depois de ser torturada pela Igreja, mas a “Virgem de Orleans”, cuja pureza é reverenciada até hoje pelos nacionalistas franceses e provocou seguidores tão improváveis como o próprio De Gaulle, que se sentia uma espécie de reencarnação dela.

Nações, religiões e até famílias buscam legitimar, por um passado suposto, seu presente desejado utilizando-se de um recurso que chamamos “uso da História”: se aquilo que de fato aconteceu não é o que se deseja, inventa-se um outro passado... De uma forma até comovente, pelo patético da situação, famílias de imigrantes enriquecidos e celebridades do momento correm atrás de árvores genealógicas transgênicas, que têm por função encontrar uma certa nobreza – acompanhada pelos inevitáveis brasões – entre descendentes de comedores de polenta do Vêneto, camponeses alemães, ou carroceiros poloneses.

As religiões agem mais ou menos do mesmo modo. Não por acaso, tanto Moisés entre os hebreus como Gilgamesh entre os babilônios teriam sido salvos das águas por alguém que lhes propiciou um grande futuro e se tornaram heróis e líderes de seu povo. Não por acaso, no mito da fundação de Roma, a mesma história é recontada com relação a Rômulo e Remo, até na versão irônica de Tito Lívio. A ideia de que a divindade em que acreditamos correu sério risco de vida na infância, ou renasceu após a morte, é um aceno de algo sobrenatural, um milagre que tem por função impressionar as pessoas e levá-las a aceitar as supostas verdades e os dogmas descritos pela religião. Se ela é tão poderosa a ponto de fazer com que mortos renasçam, talvez seja prudente acreditar nela...

Mitos de origem não são, pois, privilégio das nações – já que ocorrem nas religiões e nas famílias -, mas é aí que vemos o passado idealizado ser mais cultuado. Grandes nações não se conformam com um presente brilhante, precisam elaborar uma origem diferenciada, especial. Histórias fantásticas são criadas para sustentar passados desejados, nomes de pais e mães da pátria são repetidos geração após geração, a ponto de fazer parte do imaginário coletivo. Heróis são glorificados (até santificados, como no caso de Joana D’Arc), sua presença é tão viva e próxima que questionar a perfeição deles provoca comoção e revolta entre a maioria de seus adoradores incondicionais. Há mesmo que se tomar certo cuidado ao se discutir a humanidade -, e, portanto, as falhas – desses heróis.

E no Brasil? Os mais velhos haverão de se lembrar de uma série de atividades assim chamadas “cívicas” que permeavam a vida dos estudantes há mais de quarenta anos: estudavam-se os hinos, não só nosso belo, mas longo hino principal, como os da bandeira, da Independência e muitos outros. Nosso pendão (ou lábaro, como se dizia) era hasteado em diversas ocasiões, e as pessoas sabiam de cor o hino apropriado a cada solenidade. [...]

O regime militar, instaurado em 1964, levou esse “civismo” ao extremo, diminuindo as aulas de História e criando uma aberração típica de ditaduras chamada “educação moral e cívica”. Como dizia o nome, o conceito era inculcar aquilo que os militares e seus aliados consideravam moral e cívico, com destaque para a comemoração dos feitos de Caxias e do aniversário do que chamavam de “Revolução” de 31 de março. A imposição criou tal antagonismo que só os puxa-sacos descarados do regime vigente se submetiam ao ridículo de desenvolver o programa “sugerido”, sendo que muitos mestres aproveitavam-se do espaço para, dentro do possível, trabalhar com temas históricos. A tentativa de militarização do civismo resultou, a médio prazo, na negação do próprio civismo, tido e havido como coisa de militares reacionários e chauvinistas. O resultado da ópera é que, confundindo o bebê com a água do banho, as escolas e a população, como vingança, desenvolveram pouco apego à bandeira, não sabem cantar sequer o Hino Nacional e as pessoas acabam não cultivando as representações de identidade nacional. São, de fato, poucos os momentos em que nossa identidade é sentida e exaltada, a não ser por ocasião das finais da Copa do Mundo de futebol ou na última semana de uma telenovela popular (quando todos choram juntos diante da TV). A procura de heróis é tão desesperada que até tentaram transformar um medíocre corredor de fórmula 1 em substituto de Ayrton Senna, tentam transformar ginastas e maratonistas em figuras pop e até modelos de tipo escandinavo em protótipo de beleza brasileira.

Afinal, com todos os defeitos que possam ter tido, figuras como Tiradentes e José Bonifácio dedicaram grande parte do seu tempo e energia em favor de interesses coletivos. Suas figuras podem voltar a funcionar como elementos definidores do nosso passado comum – e a consciência do passado comum é que identifica os cidadãos de uma nação. Claro que junto a esses devemos trabalhar com figuras igualmente representativas de diferentes setores de nossa população, talvez alguém como Zumbi, Anita Garibaldi, elementos representativos das culturas indígenas e dos imigrantes que ajudaram a construir este país, assim como gente de cultura tipo Carlos Gomes e Villa-Lobos, Machado de Assis e Graciliano Ramos, e por aí afora.

Agora, em pleno estado de direito, já é hora de repensar nossos símbolos. Exaltar nossos heróis, oferecê-los como traço positivo de união nacional e motivo de orgulho não precisa ser algo que faça referência a governantes ou mesmo ao Estado. Pode, simplesmente, estreitar os elos entre o povo e sua nação.


PINSKY, Jaime. Por que gostamos de História. São Paulo: Contexto, 2013. p. 43-46.

NOTA: O texto "De heróis e de História" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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