"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

Assim caminha a humanidade

À memória de meu pai, Orides Eleutério Maurer (1937-1977)


A “civilização cristã ocidental” entre roubos, assaltos, guerras e imperialismos

Vivemos no Mundo Ocidental. Nossa civilização é comumente chamada de “Civilização Ocidental Cristã”. Entre nós – ocidentais – costumamos dividir a trajetória do homem em dois grandes processos históricos: antes de Cristo e depois de Cristo. Assim procedemos porque nossa civilização usa como ponto de partida a data do nascimento de Cristo.

Podemos representar a “nossa” História da seguinte maneira: iniciamos nossa trajetória na África, o berço da humanidade, o berço da civilização faraônica – com suas pirâmides, suas múmias, sua primeira religião monoteísta da história, a fabricação da cerveja e do pão! Daí nossa “evolução” percorreria as heranças culturais das civilizações da Ásia Ocidental, cujo legado será absorvido pelas civilizações clássicas greco-romana.

Uma das principais heranças do Oriente Antigo, transmitidas pelos fenícios, será o alfabeto. Os gregos, adaptando a escrita fonética fenícia, introduzem-lhe as vogais. Com pequenas modificações, os romanos, herdeiros e admiradores da cultura grega, transformam esse alfabeto que é, com outras pequenas modificações, o alfabeto usado pelas civilizações europeias e americanas.

Do mundo clássico chegaram até nós as olimpíadas, a democracia, a filosofia, o Direito, a república, as línguas latinas...

No período medieval, com o predomínio político-econômico-ideológico da Igreja católica – oficializada no final do Império Romano – torna todo aquele que professasse outra crença – os chamados “pagãos” – em inimigos da nova ordem: a ordem dos senhores feudais, dos cavaleiros e dos papas. As Cruzadas contra os “outros”, isto é, os muçulmanos, os judeus, os hereges, os pagãos, tornam-se rotina num mundo dopado pela ideologia do Deus único. Perseguições às bruxas (mulheres), sodomitas (homossexuais), hereges, leprosos, pobres... são característicos desse período obscuro da formação do Ocidente.

Segue-se a chamada época renascentista. “Renascença” de quê? De um espírito aventureiro, avassalador, impiedoso. Os homens lançam-se aos mares e oceanos até então desconhecidos. “Descobrem” novas terras e novas gentes. Fincam suas cruzes – em nome dos reis e da Igreja. Trazem seus canhões, suas espadas, suas bazurcas, seus cães, seus cavalos. Trazem – invisíveis – a podridão de seus corpos. Catequizam. Impõe a ferro, fogo e sangue sua religião única, verdadeira. Escravizam. Violentam mulheres virgens. Queimam crianças e homossexuais. Destroem um patrimônio cultural construído por centenas de milhares de anos em pouco tempo. Toda uma civilização é subjugada, humilhada, saqueada. Quanto conhecimento científico, artístico, literário é jogado no limbo da história! Quanto a humanidade perdeu com a insanidade de homens estúpidos e analfabetos!

Conquista-se o continente que viria a ser chamado de América. E segue-se a colonização. E o massacre. E a exploração. E a escravidão indígena. Tudo numa época chamada de Renascimento. Época em que Leonardo da Vinci pintava a famosa Mona Lisa, Michelangelo esculpia Davi, Shakespeare escrevia Romeu e Julieta e Thomas Morus A Utopia. Época em que Lutero afixava na catedral de Wittenberg as 95 teses. Época em que Galileu Galilei, Copérnico e tantos outros cientistas demonstravam que a terra era redonda – e se movia! Época em que a Igreja Católica perseguiu, prendeu, torturou e queimou milhares de mulheres – acusadas de bruxaria -, cientistas e tantos outros fora dos padrões admitidos pelos poderosos. Ou que contestavam o status quo, a Bíblia...

E a Europa conheceu o absolutismo monárquico dos reis, o despotismo, a cobrança ultrajante de tributos, a espoliação do povo. E o tráfico Atlântico que transplantou milhões de homens, mulheres e crianças acorrentados nos podres porões de seus navios negreiros – tumbeiros - do berço da humanidade para a América. Milhões de seres humanos passaram a ser expostos e vendidos nos mercados  coloniais; daí eram encaminhados para os engenhos de açúcar do Nordeste brasileiro, para as áreas mineradoras de ouro e prata da América hispânica, para as fazendas de algodão e tabaco nas colônias inglesas da América do Norte, para as plantações de açúcar no Caribe, para as casas-grandes, para as vilas e cidades de todo o continente americano. E para o pelourinho. E os escravos resistiram. Fugas, rebeliões, quilombos, abortos, assassinatos de feitores... E o povo pobre resistiu. Resistiu nas colônias americanas. Resistiu nas metrópoles.

E surgiram ideias de liberdade, igualdade, fraternidade. Explodiram revoluções na França e na América do Norte. Ecos da Marselhesa se fizeram sentir na América colonial. Explodiram revoltas e rebeliões na América portuguesa (Inconfidências Mineira e Baiana), na rebelião de escravos no Haiti e nas independências das colônias espanholas e na independência do Brasil. E novamente índios, negros e pobres  são excluídos do poder.

E surgem as máquinas e as fábricas. E o capital. E o proletariado. E a exploração capitalista. E os operários quebram as máquinas. E vem a repressão. E surgem novas ideias. Ideias socialistas, anarquistas. E novas revoluções. E novas repressões.

E os burgueses não se cansam de conquistar. Voltam seus olhos novamente para o berço da humanidade – a África. E para as civilizações milenares da Ásia. E para a América recém-liberta do domínio europeu. É o novo colonialismo vestido de nova roupagem. É o chamado imperialismo. Novos massacres. Novas ocupações e roubos. E tudo isso desembocará numa corrida imperialista entre as grandes potências industrializadas que resultará na eclosão da 1ª grande guerra mundial. Massacre das populações civis na Europa. Massacre dos trabalhadores. Quantas crianças e jovens poderiam ter aprendido outras lições nas escolas da época?

E os homens não aprendem com a grande guerra. E vem o fascismo, o nazismo, o franquismo, o salazarismo, o getulismo... E os campos de concentração, os bombardeios de vilas e cidades, as bombas atômicas na 2ª guerra mundial... E a "guerra fria" quente nos quatro cantos do mundo, o cinismo, a maldade, a estupidez, a arrogância, a crise de valores morais e éticos, a superprodução, o subconsumo, a violência, o trabalho infantil, a miséria, a fome, o terrorismo, os fundamentalismos de todo tipo, a crise ecológica...

E a humanidade não aprendeu nada com o passado! Admirável mundus novus!


MAURER JUNIOR, Orides. Ecos do tempo: uma viagem pela história. Joinville: Letradágua, 2015. p. 15-18.

Orides Maurer Jr. é historiador e autor do blog ϟ●• História e Sociedade •●ϟ

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