"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 1 de julho de 2017

Teoria dos ciclos de civilização

Não há melhor ilustração do ciclo de vida de uma civilização do que "O curso do império", uma série de cinco pinturas de Thomas Cole que podem ser vistas na galeria da Sociedade Histórica de Nova York. Fundador da Hudson River School e um dos pioneiros da pintura paisagística novecentista nos Estados Unidos, Cole capturou lindamente uma teoria da qual a maioria das pessoas continua cativa em nossos dias: a teoria dos ciclos de civilização.

Cada uma das cinco cenas imaginadas retrata a foz de um grande rio sob um afloramento rochoso. Na primeira, "O estado selvagem", uma selva exuberante é povoada por um punhado de caçadores-coletores tratando de garantir uma subsistência primitiva em um amanhecer tempestuoso. A segunda, "O estado pastoral ou arcadiano", é de um idílio agrário; os habitantes derrubaram as árvores, cultivaram campos e construíram um elegante templo grego. A terceira e maior de todas as pinturas é "A consumação do império". Agora a paisagem é ocupada por um magnífico entreposto de mármore, ao passo que os agricultures-filósofos contentes do quadro anterior foram substituídos por uma multidão de mercadores, procônsules e cidadãos-consumidores com opulência. É meio-dia no ciclo da vida. Então vem a "Destruição". A cidade está em chamas, seus cidadãos fogem de uma horda invasora que estupra e rouba sob um sinistro céu noturno. Por fim, a lua se ergue sobre a "Desolação". Não resta uma alma viva, só umas poucas colunas em ruínas e colunatas cobertas de arbustos e heras.

Concebido em meados dos anos 1830, o pentaptoto de Cole tem uma mensagem clara: todas as civilizações, não importa quão magníficas sejam, estão condenadas a decair e ruir. A insinuação implícita era de que era melhor que a jovem república norte-americana da época de Cole se apegasse a seus princípios iniciais bucólicos e resistisse às tentações do comércio, da conquista e da colonização.

FERGUSON, Niall. Civilização: Ocidente x Oriente. São Paulo: Planeta, 2012. p. 345-6.

Galeria de imagens da obra "O curso do império", de Thomas Cole

O estado selvagem

O estado pastoral ou arcadiano

A consumação do império

Destruição

Desolação

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Barão Wilhelm von Gloeden (1856-1931)

Terra do fogo.
Fotografia de Wilhelm von Gloeden

Um fotógrafo gay pioneiro, que usou jovens italianos para recriar imagens da Grécia Antiga. Viveu no exílio em Taormina, na Sicília, ajudando a cidade a se tornar um destino para homossexuais europeus e americanos.

AMBROSE, Tom. Heróis e exílios: ícones gays através dos tempos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2011. p. 200. 

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Sylvia Beach (1887-1962)

Sylvia Beach decorando a vitrine da livraria Shakespeare and Company

Pioneira proprietária de livraria e editora. Beach deixou a América para passar o resto de sua vida em Paris com sua amante Adrienne Monnier. Fundou a livraria Shakespeare and Company e foi a primeira a publicar Ulisses, de James Joyce.

AMBROSE, Tom. Heróis e exílios: ícones gays através dos tempos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2011. p. 202.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Lorde Byron (1788-1824)

Lorde Byron em seu leito de morte.
Joseph Denis Odevaere

O maior poeta romântico e bissexual de sua época. Byron foi impelido ao exílio pela sociedade inglesa por causa de suas confissões homossexuais. Admirava profundamente o conceito de Amor Grego. Morreu pela causa da liberdade grega, em Missalonghi.

AMBROSE, Tom. Heróis e exílios: ícones gays através dos tempos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2011. p. 200.

terça-feira, 27 de junho de 2017

Natalie Clifford Barney (1876-1972)

Natalie e Missal.
Alice Pike Barney

Romancista e poeta que se tornou a lésbica americana mais famosa entre as que viviam em Paris no final do século XIX. Natalie fundou um famoso salão literário que durou mais de 60 anos.

AMBROSE, Tom. Heróis e exílios: ícones gays através dos tempos; Belo Horizonte: Gutenberg, 2011. p. 201. 

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Damas de Llangollen

Damas de Llangollen: Eleanor Butler (1739-1829) e Sarah Ponsonby (1755-1831).
Richard James Lane

Duas fidalgas anglo-irlandesas que fugiram e, juntas, encontraram a felicidade no exílio em Llangollen, ao norte do País de Gales. Seu lesbianismo discreto e seu estilo de vida idílico atraíram muitos admiradores na sociedade inglesa.

AMBROSE, Tom. Heróis e exílios: ícones gays através dos tempos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2011. p. 200.

domingo, 25 de junho de 2017

Edward Carpenter (1844-1929)

Edward Carpenter e George Merrill em 1900.
Fotógrafo desconhecido

Socialista, poeta e precursor do ativismo gay. Carpenter defendia com empenho todas as formas de liberdade sexual. Seu trabalho foi de grande inspiração para que muitos outros fossem honestos quanto a sua homossexualidade.

AMBROSE, Tom. Heróis e exílios: ícones gays através dos tempos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2011. p. 201. 

sábado, 24 de junho de 2017

Rainha Cristina da Suécia (1626-1689)

As artes ao redor do busto da rainha Cristina da Suécia.
David Klöcker Ehrenstrahl

O comportamento masculinizado de Cristina, seu travestismo e o amor por uma cortesã provocaram pouca reação na Suécia, mas sua decisão em abandonar seu país e sua religião para viver como católica em Roma escandalizou a Europa do Norte.

AMBROSE, Tom. Heróis e exílios: ícones gays através dos tempos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2011. p. 199.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Conde Jacques d'Adelswird Fersen (1880-1923)

Capa da Revista Akademos, publicada pelo Conde Jacques d'Adelswird Fersen em 1909.

Escritor francês que se exilou de Paris depois de ter sido preso e ter caído socialmente em desgraça por causa de um escândalo envolvendo dois garotos. Instalou-se na Ilha de Capri e viveu uma vida abertamente homossexual, atraindo, assim, para a ilha pessoas com sentimentos semelhantes.

AMBROSE, Tom. Heróis e exílios: ícones gays através dos tempos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2011. p. 200-1.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Teófilo de Viau (1590-1626)

Teófilo de Viau.
Artista desconhecido

Poeta francês e libertino que escreveu sobre o amor entre homens. Foi exilado para a Inglaterra por comportamento sexual em 1619, mas voltou para a França em 1622. Tornou-se uma causa célebre na Europa, após ser novamente preso e sentenciado ao exílio perpétuo.

AMBROSE, Tom. Heróis e exílios: ícones gays através dos tempos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2011. p. 199.

terça-feira, 20 de junho de 2017

A Revolta dos Intelectuais

Tortura usada contra bruxas acusadas, 1577.
Johann Jakob Wick

Exaltaríamos o Renascimento na Itália além dos limites se não observássemos que ali, como em outros lugares, a civilização era da minoria, pela minoria e para a minoria.

O homem simples e comum lavrava a terra, puxava carroças ou carregava fardos, labutava do amanhcer ao pôr-do-sol, e à noite não tinha mais forças para pensar; deixava os outros pensarem por ele, assim como os outros o faziam trabalhar. Recebia suas opiniões, religião e respostas aos enigmas da vida do próprio ambiente em que vivia ou herdava-as juntamente com a morada dos ancestrais. Aceitava não somente as fascinantes, confortadoras, inspiradoras e terríveis maravilhas da teologia tradicional, que diariamente lhe eram inculcadas no espírito pelo contágio ou pelas artes, mas acrescentava-lhes demonologia, feitiçaria, presságios, magia, adivinhação e astrologia, compondo a metafísica popular que a Igreja condenava como sendo mais perturbadora do que a heresia. Maquiavel, embora cético em religião, sugeriu a possibilidade de que "o ar esteja povoado de espíritos" e declarou-se convicto de que os grandes acontecimentos são anunciados por sortilégios, profecias, revelações e "sinais no céu".

Entre o povo era particularmente difundida a noção de que Satã e um certo número de demônios menores pairavam no ar e podiam usar poderes sobrenaturais para ajudar os seus fiéis devotos. Uma certa classe de mulheres declarava ter acesso a esses demônios, e através deles a conhecimentos e poderes sobrenaturais. Em 1484, uma bula do Papa Inocêncio VIII proibiu que se recorresse a tais feiticeiras e solicitou à Inquisição que ficasse alerta a essas práticas. O papa não especificou qualquer punição em particular, mas a Inquisição, seguindo o mandamento do Antigo Testamento - "não permitirás que uma feiticeira viva" - fez da feitiçaria um crime capital; e em 1485, só em Como quarenta e uma mulheres foram queimadas por feitiçaria. Essas execuções se multiplicaram: cento e quarenta em Brescia, em 1486; e outras trezentas em Como em 1514, no pontificado do refinado e gentil Leão X.

Queima de três bruxas em Baden, Suíca, 1585. 
Johann Jakob Wick

Nesse ambiente, a ciência marcou passo; na verdade, ficou abaixo do nível que alcançara com Alberto Magno no século XIII. Não pôde desfrutar, como a arte, do apoio unido do laicato e da Igreja. A única ciência próspera foi a medicina, pois pela saúde os homens sacrificariam qualquer coisa menos o apetite. Os médicos foram condenados pelos elevados honorários, e invejados pela sua alta posição social e pelas espalhafatosas roupas escarlates. Destruíram a hostilidade medieval para com a dissecação de cadáveres; às vezes, eclesiásticos os ajudavam. Em 1319, estudantes de medicina em Bolonha roubaram um cadáver no cemitério e levaram-no a um professor da universidade, que o dissecou para instruí-los; foram processados, porém declarados inocentes; e daí em diante as autoridades civis fizeram vista grossa ao uso "em anatomia" de criminosos executados e não reivindicados. Logo a dissecação era praticada em todas as escolas médicas da Itália, inclusive nas escolas papais de Roma. Ainda assim, por volta de 1500, a anatomia só alcançara o conhecimento que Hipócrates e Galeno possuíam na Antiguidade grega e romana.

A cirurgia ficou famosa rapidamente quando o seu repertório de operações e instrumentos aproximou-se da variedade e da competência das antigas práticas egípcias. Por volta de 1500, muitos médicos europeus assimilaram o ideal hipocrático de aliar filosofia à medicina; com facilidade passavam de um assunto a outro, no estudo e no ensino; e alguns, por serem também cavalheiros, constituíram a nata da época.

DURANT, Will. O livro de ouro dos heróis da história. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 307-9.

domingo, 18 de junho de 2017

Censo Industrial

Os órfãos, Antoine Wiertz

Que fabricas tu?
Fabrico chapéu
feito de indaiá.
Que fabricas tu?
Queijo, requeijão.
Que fabricas tu?
Faço pão-de-queijo.
Que fabricas tu?
Bolo de feijão.
Que fabricas tu?
Geleia da branca
e também da preta.
Que fabricas tu?
Curtidor de couro.
Que fabricas tu?
Fabrico selim,
fabrico silhão
só de sola d’anta.
Que fabricas tu?
Eu faço cabresto,
barbicacho e loro.
Que fabricas tu?
Toco uma olaria.
Que fabricas tu?
Santinho de barro.
Que fabricas tu?
Fabrico melado.
Que fabricas tu?
Eu faço garapa.
Que fabricas tu?
Fabrico restilo.
Que fabricas tu?
Sou da rapadura.
Que fabricas tu?
Fabrico purgante.
Que fabricas tu?
Eu torro café.
Que fabricas tu?
Ferradura e cravo.
Que fabricas tu?
Panela de barro.
Que fabricas tu?
Eu fabrico lenha
furtada no pasto.
Que fabricas tu?
Gaiola de arame.
Que fabricas tu?
Fabrico mundéu.
Que fabricas tu?
Bola envenenada
de matar cachorro.
Que fabricas tu?
Faço pau-de-fogo.
Que fabricas tu?
Facão e punhal
de sangrar capado.
Que fabricas tu?
Caixão de defunto.
Que fabricas tu?
Fabrico defunto
na dobra do morro.
Que fabricas tu?
Não fabrico. Assisto
às fabricações.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Elementos árabes no léxico português

A profunda influência árabe deixou claros vestígios nos vocabulários de diversos idiomas europeus. Esses termos de origem árabe referem-se em sua maioria, à indústria, ao comércio, agricultura, administração, bem como às ciências ensinadas nas grandes Universidades muçulmanas (Córdova, Sevilha, Granada).

Eis alguns exemplos - do vocabulário português:

termos militares: alcácer, alferes, almirante, alfange, alarido, ameia, arsenal, azaguaia, tambor;

agricultura: açafrão, acelga, acéquia, açúcar, açucena, açude, alfafa, alfazema, algodão, alecrim, ameixa, arroz, azeitona, benjoim, café, cânfora, ceifa, gergelim, jasmim, laranja, limão, romã, tâmara;

ciências, indústria e comércio: açougue, alfaiate, alambique, álcool, alcatrão, alquimia, algarismo, álgebra, alicerce, aluguel (ou aluguer), almofada, almofariz, alvaiade, âmbar, argola, azeite, azougue, bazar, cifra, elixir, enxofre, enxoval, giz, marroquim, musselina, magazine, marfim, talco, tabique, tráfico, tarifa, saguão, zero;


Açougue medieval.
Tacuíno Sanitatis.

pesos e medidas: quilate, quintal, arrátel, arrôba;

diversos: assassino, ataúde, auge, azul, beduíno, enxovia, fulano, carmesim, oxalá, papagaio, paxá, mesquinho, sorvete, talismã, tufão, zênite.

BECKER, Idel. Pequena História da Civilização Ocidental. São Paulo: Nacional, 1971. p. 243.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Como se perdem documentos?

Perderam-se numerosos documentos no decurso dos séculos, devido a várias causas: o material empregado era frequentemente pouco duradouro; foram destruídos pelas chamas ou pelos ratos e outros bichos; arruinados por ódio, fanatismo, negligência, ou ignorância; aniquilados por poderem comprometer as classes governantes ou a reputação nacional; faziam o resto catástrofes metereológicas, guerras e revoluções.

O descuido e a ignorância são fatores importantes na destruição de documentos privados e, infelizmente, também de documentos públicos e oficiais nos países onde ainda não existe uma forte tradição histórica. Toda pessoa de certa idade sabe que de vez em quando se torna necessária uma limpeza geral do nosso arquivo pessoal, da qual pode ser vítima também uma carta ou uma anotação eventualmente importante para um futuro historiador. Os documentos públicos, nos países civilizados, estão geralmente bem guardados, mas também eles não estão ao abrigo da ação do tempo, de incêndios, de guerras e revoluções. Foram lastimáveis as perdas de fontes históricas nas épocas de grandes perturbações políticas e sociais: a invasão dos bárbaros no Império Romano; a Queda de Constantinopla; as lutas religiosas nos tempos da Reforma; as guerras civis e externas da Revolução francesa e da época napoleônica; as duas guerras mundiais. Na primeira guerra mundial foi destruída, por exemplo, grande parte da biblioteca de Lovaina; na segunda foi uma das vítimas a célebre biblioteca do Monte Cassino.


O último dia de Pompeia, Karl Briullov

A atos de vandalismo intencional, como costumam ocorrer em tempos de guerras e revoluções, acrescem os chamados "atos herostráticos", atos de destruição proposital feitos por pessoas com o fim de se tornarem célebres. Heróstrato incendiou em 356 a.C., na noite do nascimento de Alexandre Magno, o templo de Diana em Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo: não vendo meios de celebrizar-se com um ato heroico, tentou imortalizar-se com um crime horrendo. Nos tempos modernos verificaram-se casos semelhantes, por exemplo em Florença com o vaso de François, e em Londres com o vaso de Portland, mas, ao contrário de Heróstrato que atingiu o seu alvo, os criminosos contemporâneos, em geral, não conseguem perpetuar o seu nome com esses atos anormais. Houve também outros casos de destruição deliberada, originados por desespero ou por ressentimento contra a sociedade, por exemplo no Louvre em Paris.

BESSELAAR, José van den. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: EPU, 1973. p. 140-1.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

A importância da História

Clio, Giovanne Baglione

* As raízes do presente. A história faz-nos conhecer a nossa própria origem, revelando-nos assim uma parte considerável da nossa existência no tempo. O homem quer compreender-se a si mesmo: é o esforço constante do espírito humano. Quer saber, quem é, de onde vem, e para onde vai. Ninguém pode escapar por completo a perguntas dessa natureza. Mas o homem culto tem a obrigação de aprofundar-lhes o conteúdo e de estudá-las metodicamente. Ora, a filosofia, guiada ou não pela teologia, dá a esse respeito a última resposta ao alcance do homem. A história, porém, encara o homem na sua situação concreta no tempo, num plano inferior, ainda que muito real, mostrando-nos as numerosas raízes que nos prendem ao passado, deixando-nos entrever o caráter próprio da nossa situação atual. Com efeito, o mundo em que vivemos, é o resultado de vários fatores históricos. Pois não morreu o passado junto com os momentos fugidios que o constituíam, mas continua a viver em nós, quer o aceitemos e veneremos, quer o combatamos e rejeitemos. É uma força que não se deixa eliminar da nossa existência. Compreendeu-o muito bem a escola de todos os tempos: para formar cidadãos, para iniciar as crescentes gerações na tradição pátria, para integrá-las no conjunto social, político e religioso, tem-se valido, não só da literatura nacional, como também da história. [...] Evidentemente, são bem diferentes as preocupações das crianças e dos adultos, dos leigos e dos especialistas, ao se dirigirem à história: mas todos procuram nela melhor compreensão do presente, cada um de acordo com o seu grau de desenvolvimento. Talvez não haja outra ciência tão apropriada a popularizar, no sentido bom da palavra, os seus resultados.

* O passado por causa do passado. Não estudamos a história com o fim exclusivo de melhor compreendermos o presente: dedicamo-nos ao passado também por causa do próprio passado. Interessa-nos aí, principalmente a nós, os adultos, não só o factum, mas igualmente o fieri. Os conhecimentos históricos possuem valor intrínseco, podendo-nos livrar, até certo ponto, de uma mentalidade egocêntrica. O homem "a-histórico", encarcerado que está na atualidade, tende a tornar absolutas as normas que encontra no seu ambiente. É homem pouco "experimentado". Os melhores entre nós tentam, porém, escapar às limitações que lhes são impostas pelo espaço e pelo tempo. Já o sabia Homero: elogiava a Ulisses, porque este visitara muitas gentes, chegando a conhecer-lhes a mentalidade. A "esperteza" do herói homérico baseia-se na sua "experiência". Uma viagem por terras desconhecidas pode livrar-nos de certas preverções e alargar-nos o horizonte intelectual, contanto que sejamos abertos e sinceros. O estudo da história é, por assim dizer, uma viagem não pelo espaço, não "horizontal", mas pelo tempo, "vertical", - uma viagem interessante, instrutiva e esclarecedora. [...] Com efeito, pelo fato de nos descortinar a vida humana em tempos remotos, a história nos pode curar de certas tendências egocêntricas, proporcionando-nos um certo relativismo salutar, um bom antídoto contra os dogmas e os preconceitos da atualidade.

* E o futuro? A história esclarece, pois, as raízes do presente no passado. Mas, conhecendo-se bem o presente, que contém os germes do futuro, não será possível predizer-se o futuro, pelo menos nas linhas gerais? Assim a história, vindo a abranger as três partes do tempo, ganharia importância superior a todas as outras ciências. Mas exortam-nos à modéstia as palavras do Padre Vieira, apesar de ser ele autor de um livro que traz o título paradoxal: "História do Futuro", em que diz: "O homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância: do presente sabe pouco, do passado menos, e do futuro nada". É uma verdade óbvia, entretanto, muitas vezes esquecida por aqueles historiadores e filósofos que sobrecarregam Clio com um ônus que lhe ultrapassa as forças. O político Bismarck, homem pragmático, motejava com as lucubrações dos historiadores-advinhos, dizendo: "Querendo saber com certeza o que não acontecerá, faço-me informar pelo sr. Mommsen do que deve acontecer." O historiador não pode predizer o que há de acontecer daqui a cinco minutos: não é profeta. Quando muito, está mais capacitado do que outros, - celeris paribus, - para fazer um prognóstico, não categórico, mas hipotético. Conhece bem, suponhamos, as tendências vivas do tempo atual em busca de efetividade; conhece muito bem numerosas analogias históricas que lhe mostram soluções possíveis de problemas semelhantes; em suma, entende bem o rumo geral do tempo. Mas aí pára irrevogavelmente a sua ciência do futuro. Pois das tendências atuais conhece forçosamente só uma parte mínima, sempre exposto a enganar-se na avaliação da sua força "existencial". Outrossim, o acaso e as livres decisões humanas, imprevistas e incalculáveis, podem sempre frustrar as tendências mais promissoras e fazer vencedoras as que neste momento se subtraem aos nossos olhos. A história é contrária a cálculos exatos sobre o futuro, porque não admite repetições mecânicas de casos idênticos, mas apenas conhece situações análogas, sempre suscetíveis de desfechos diferentes.

* A historiografia pragmática. Os laços, que prendem o historiador à moral, já datam da Antiguidade: lembremo-nos das palavras ciceronianas: magistra vitae. A historiografia "pragmática", inaugurada por Tucídides e prosseguida até nos tempos modernos, pretendia extrair dos fatos históricos exemplos concretos, inspiradores ou horrendos, para uso de príncipes, estadistas, governadores e militares.

Os modernos já não acreditam, como os antigos, no caráter imperioso dos exemplos tirados da história, porque ela, como diz muito bem Paul Valéry, nos ensina de tudo; estão mesmo compenetrados de que a história, por relatar acontecimentos únicos do passado, é incapaz de nos proporcionar regras de conduta, diretamente aplicáveis às circunstâncias concretas do momento atual.

Mas a história faz muito melhor. Não nos torna prudentes para certa ocasião determinada, ensinando-nos a repetir um ato prudente do passado: torna-nos sábios para sempre. A história é a experiência coletiva da humanidade: alarga-nos o terreno forçosamente limitado das experiências pessoais da vida e do homem. É uma escola de humanismo; nada mais interessante para o homem do que o homem. E a história, no fundo, não fala senão das formas variadas de que se tem revestido o Homem Eterno através dos tempos. Faz-nos assistir às peripécias dramáticas do homem que luta e sofre, vence e sucumbe, mas que, apesar das suas derrotas e decepções, sempre se obstina em nutrir esperanças e construir seu futuro. Na história desenrola-se o drama do eterno Lutador e eterno Sofredor, ao qual não podemos assistir sem experimentar em nós sentimentos e emoções semelhantes aqueles que Aristóteles designou com a palavra "catarse", isto é, "purificação". O júbilo e a miséria de outrora, as esperanças e os temores dos antepassados, as vitórias e as derrotas de gerações há muito falecidas, transformaram-se para nós, observadores das vicissitudes humanas, em conhecimentos e reflexão. Reflexão sobre o que? Sobre a riqueza e a pobreza da condição humana. [...]

Se já não podemos aceitar a história como a pedante, tal como a imaginavam nossos antepassados, ela continua para nós "a mestra da vida", num sentido talvez mais sublime ainda; alarga as nossas experiências e ocasiona nossa reflexão sobre a condição humana. Mas, infelizmente, a magistra vitae, também na sua forma moderna, nem sempre tem alunos dóceis.

BESSELAAR, José van den. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: EPU, 1973. p. 106-9.

sábado, 10 de junho de 2017

Civilização X

Cabeça.
Amedeo Modigliani

Os ataques de 11 de setembro de 2001 e seus desdobramentos impuseram renovadas pressões sobre a ideia confortável de que a vida dos cidadãos ocidentais podia melhorar indefinidamente. O perigo de novos ataques, as restrições às liberdades civis, as alegações em prol da tortura, a imensa superioridade militar de um país sobre todos os outros, o flerte com o uso prático de armas nucleares e as fissuras entre os países ocidentais e no interior deles em torno de questões como a "guerra preemptiva" têm gerado preocupações com a aparente fragilidade das instituições que se supõe serem os esteios dos valores ocidentais. Quem conhece a história dos valores democráticos há de lembrar o quão facilmente eles se desintegraram, nas décadas de 1920 e 1930, na imensa maioria dos países. Estamos começando a nos perguntar se a paz e a prosperidade das seis décadas que nos separam de 1945 são o produto da aplicação resoluta dos valores liberais ou apenas uma indulgência propiciada pela prosperidade contínua. Estaria o esmaecimento da lembrança da Segunda Guerra Mundial propiciando o ressurgimento da guerra como instrumento de política?

Onde, então, nessa nova visão do mundo, haveremos de colocar a arte, joia da coroa da nossa civilização? O que pensar quando já não cremos na confortante certeza de Kenneth Clark de que a "grande" arte é a manifestação suprema da civilização? Teria a predominância e ubiquidade das formas de arte popular, como a música pop, o cinema e a televisão, tornado redundante a chamada "grande arte"? Se a pintura, a escultura e a literatura parecem sempre inclinadas a criticar, ridicularizar e dar as costas aos valores predominantes da sociedade, em que sentido poderiam ser, se é que já foram um dia, a celebração da civilização?

[...]

A história, investigação e interpretação do passado baseada em evidências, é também um conceito peculiar ao Ocidente [...] a história depende dos pontos de vista do historiador e do próprio público leitor, cujos interesses influenciam os rumos da pesquisa e do consumo. Todavia, a despeito da recente expansão dos campos de interesse e das abordagens, a história é ainda escrita pelos vencedores. [...] A história do Ocidente escrita por um viciado em drogas condenado a quarenta anos de prisão na Califórnia depois de roubar, pela terceira vez, uma barra de chocolate ou por um lavrador que nunca saiu da sua aldeia na Galícia seria bastante diferente daquelas com as quais estamos acostumados. Tal documento nunca será produzido, tampouco é nosso desejo que exista, mas devemos estar cientes da sua ausência.

O mesmo se aplica à oportunidade da história. Wordsworth disse que a poesia "tem origem na emoção tranquilamente rememorada". A história, também, é escrita depois do fragor da batalha. Nós tampouco temos histórias da civilização ocidental escritas em Oradour-sur-Glane, em Auschiwitz-1944 nem no campo de trabalhos forçados de Kolyma. Como seria uma história cujo ponto de referência - o presente - fosse o portal do inferno? Nunca saberemos. Embora tenhamos relatos pessoais dos sobreviventes, a história não é escrita nesses momentos nem nesses lugares.

A história é também, como disse Harold Wilson a propóstio da política, "a arte do possível". Tudo o que é escrito ou dito pelos historiadores depende, em última instância, de provas materiais e, principalmente, de registros escritos. Sociedades e culturas que não tinham língua escrita estão virtualmente fora do nosso alcance. [...]

[...]

A história é seletiva em relação ao ponto de vista, formação e posição social do historiador, ao momento em que é escrita, à disponibilidade de documentos, à conexão com os grandes temas do passado e à possibilidade de novas revelações e descobertas. Se não há muito que possamos fazer para mudar o curso da nossa jornada através do passado, devemos ao menos estar conscientes das forças invisíveis que guiam os nossos passos.

OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 27-30.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Civilização IX

A Última Ceia.
Leonardo da Vinci

É difícil apreciar retrospectivamente a fé incondicional que, no imediato pós-guerra, a maioria das pessoas depositava nos pilares da sociedade e palpável sentimento de choque pessoal e coletivo à medida que, uma após outra, as instituições eram desmascaradas como hipócritas, egoístas e corruptas. [...] 

[...]

Enquanto a geração do pós-guerra se nauseava com a visão da velha ordem tentando calar o mundo, a anterior com certeza se consternava com as traquinagens de seus filhos - o desdém pelas lutas dos mais velhos, a alegre profanação de seus ícones e a suposição fácil de que a riqueza caía do céu. Um dos objetos cênicos mais importantes da peça What the Butler Saw, de Joe Orton, que lotou os teatros londrinos em 1969, era um jarro contendo o pênis conservado de Winston Churchill. Tal iconoclasmo se estendia a tudo que fosse antigo e venerável em se tratando de arte, cultura, educação, edifícios públicos, políticos, generais etc. Era como se os pecados do passado fossem tão grandes que só a faxina em regra e a fumigação da sociedade pudessem redimi-los. Era preciso jogar tudo fora para fazer outra vez.

Essa revolução social coincidiu com o súbito aumento da riqueza, particularmente na Europa Ocidental (os Estados Unidos haviam experimentado esse efeito na década de 1950). O desdém pela autoridade e o desejo de gratificação instantânea foram acicatados pela imensa quantidade de coisas novas e baratas subitamente disponíveis a todos - discos, automóveis, roupas, rádios transistores, máquinas fotográficas, telefones, revistas coloridas, jornais e, acima de tudo, a televisão.

A tecnologia dos anos 1960 não apenas proporcionou um conjunto de experiências melhor, mais colorido e mais interessante, como foi também um meio de evasão de uma sociedade comunal, harmônica e colaborativa. A família já não precisava se reunir à noite, ao redor da lareira, para "criar a sua própria diversão" [...] Com o aquecimento central e as vitrolas e rádios portáteis, cada cômodo da casa podia agora ser usado como um centro de entretenimento privado. De gélidos dormitórios em que só se entrava quando já era noite, os quartos dos adolescentes foram transformados em cálidos refúgios repletos de dispositivos de música, fotografia e emoções provenientes do mundo inteiro. A comunhão familiar foi trocada pela busca da gratificação individual e das novidades da experiência coletiva a distância. Mais tecnologia gerava mais produção e maior poder de compra, tornando as coisas cada vez mais baratas e acessíveis.

Em meados da década, o ardente desejo de ganhar e gastar dinheiro começou a arrefecer na mente de uma parte da juventude recém-liberada. A contracultura gerada em oposição à Guerra do Vietnã começou a virar as costas ao consumismo e ao individualismo e a buscar um novo tipo de comunhão e espiritualidade. [...] a contracultura não tinha muita chance contra os batalhões do mundo comercial e as alegrias mais imediatas de comprar e possuir. O apelo do movimento hippie por uma nova espiritualidade em face do consumismo desenfreado caiu em ouvidos moucos. Nós escolhemos comprar e é o que temos feito desde então. [...]

Essa combinação de consumismo, prosperidade material e desconfiança na autoridade estabelecida nos trouxe uma relação problemática com o nosso passado. É como se tivéssemos ganhado de presente as chaves da caixa-forte junto com o conhecimento de onde proveio o butim. Queremos desfrutar a nossa riqueza, mas também saber como foi construído o nosso mundo - e nos perturbamos com as respostas. Relatos da exploração assassina do restante da humanidade, do esmagamento de outras culturas, do genocídio de nativos por cobiça de suas terras - tudo isso foi absorvido por uma geração cuja desconfiança da ordem estabelecida a preparou para o pior. E o processo continua, inalterável. O genocídio dos quebecois nativos, o financiamento da revolução industrial por meio do tráfico de escravos, a tortura dos prisioneiros argelinos pelo exército francês, os maus-tratos de iraquianos na prisão de Abu Gharib - a cada semana uma nova revelação se soma ao que já sabemos, confirmando as nossas piores suspeitas. [...] Nosso passado guarda histórias individuais de bondade e salvação que, no entanto, só servem para reforçar o vazio moral do mundo em que essas histórias se passam. Na verdade, todo ato heroico engendra a suspeita de motivações ocultas [...] 

Mas o que mais influenciou, talvez, a mudança da nossa ideia de civilização foi a crescente desilusão com a mais poderosa de todas as crenças ocidentais - a ideia de progresso. Nos últimos sessenta anos, os países do Ocidente estiveram em paz uns com os outros e seus cidadãos se tornaram cada vez mais prósperos. Os desenvolvimentos científicos e tecnológicos proporcionaram facilidades de comunicação, comodidades diversas e a expectativa de uma vida mias longa e livre de doenças debilitantes. A legislação incentivou e refletiu uma crescente tolerância para com a diversidade de raças, gêneros e modos de vida. Mas, ao mesmo tempo que essas conveniências tornaram a nossa vida tecnicamente mais confortável, começamos também a entender melhor a natureza ilusória dos nossos ganhos. A degradação do ambiente natural, a destruição da família e das redes comunitárias, o surgimento de novas doenças, como a Aids, a obesidade e as doenças mentais cada vez mais disseminadas entre os jovens, o aumento persistente da drogadicção, a crescente disparidade entre ricos e pobres no Ocidente e entre o Ocidente e o resto do mundo, as incertezas da economia globalizada, tudo isso são claros alertas de que o termo progresso deve ser bastante relativizado. Certos aspectos da prosperidade econômica afetam de maneira ainda mais insidiosa a nossa vida cotidiana. Nas últimas décadas, a economia e a gestão de negócios têm sido aplicadas a todas as áreas da vida. Os governos, as escolas, as universidades, a política habitacional e os hospitais não são os únicos a se sujeitar a uma espécie de tecnogestão [...]; nós mesmos somos continuamente exortados a pensar em nossas vidas como um investimento a longo prazo. Devemos empenhar dinheiro e esforços em nossa educação para ganhar cada vez mais no futuro (e contribuir para a economia nacional) e trabalhar sem nunca perder de vista a necessidade de poupar para a velhice. Foram necessárias décadas de prosperidade econômica para que percebêssemos os custos da sua eficiência. Hoje, o que vislumbramos para os nossos filhos é uma vida inteira de trabalho incessante sem as compensações da vida comunitária e da relação com o mundo natural que pudemos, em nosso tempo, desfrutar. (Continua no próximo post)

OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 23-7.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Civilização VIII

A criação de Adão.
(Detalhe do teto da Capela Sistina)
Michelangelo

Se a ideia da "grande tradição" foi posta de lado, o que dizer da retomada, por Freud, da crença agostiniana de que a civilização domestica a fera interior da psique humana? O uso, por Freud, do comportamento do homem primitivo em apoio às suas teorias se revelou uma faca de dois gumes - profícuo no curto prazo, mas vulnerável à investigação sistemática, a qual demonstrou que a maior parte da antropologia eclética de Freud estava mal orientada. A promoção freudiana do inconsciente sofreu não porque o conceito estivesse errado, mas porque ele usou sua ideia do conteúdo do inconsciente para explicar todos os aspectos da vida humana. E embora a psicanálise tenha se mostrado popular entre pessoas moderadamente neuróticas e até aparentemente normais, embora bem de vida, a sua incapacidade de curar problemas mentais sérios prejudicou inevitavelmente a credibilidade das teorias freudianas da mente.

Se, no entanto, colocamos em dúvida as ideias de Freud a respeito da civilização, como explicar a brutalidade das guerras do século XX que ele parecia ter explicado com tanto sucesso? Embora a teoria da "fera interior" tenha auferido considerável prestígio com a carnificina da Primeira Guerra Mundial, uma nova abordagem da psicologia da guerra foi desenvolvida por historiadores recentes. John Keegan afirmou que, entre a derrota de Napoelão em 1815 e a eclosão da Primeira Guerra em 1914, a Europa foi tomando progressivamente o aspecto de um vasto acampamento militar. Não havia nenhuma razão geopolítica para isso, dado que em 1815 a Europa tinha em perspectiva um longo período de relativa paz. Cerca de um século depois, no entanto, "(...) às vésperas da Primeira Guerra quase todos os europeus aptos ao serviço traziam entre seus documentos uma carteira de identidade militar mostrando-lhe quando e onde se apresentar em caso de mobilização geral (...) no começo de julho de 1914 havia cerca de 4 milhões de europeus fardados; no fim de agosto eram 20 milhões e dezenas de milhares já haviam sido mortos".

A cultura militar que vicejava paralelamente à sociedade civil se tornara imensamente poderosa e a guerra surgia como uma resposta automática às dificuldades políticas. Quando, finalmente, as grandes potências foram às vias de fato em 1914, a disponibilidade de milhões de homens equipados com armas pessoais e de artilharia feitas com aço de alta qualidade significava inevitavelmente a destruição em massa de vidas humanas. Keegan mostrou também que o ethos do combate glorioso, da morte digna na batalha e da ânsia de destruir o inimigo faz parte de uma ideia peculiarmente ocidental da guerra - um conflito tão sangrento não teria surgido em outras culturas. Do ponto de vista dos historiadores, as guerras mundiais não foram um retorno da humanidade europeia a um estado primitivo de barbarismo, mas provieram de uma cultura deliberadamente cultivada e promovida durante todo o século anterior.

Esses novos modos de ver a história refletem o nosso entendimento modificado do mundo. Todavia, não apenas eludem a questão "O que é civilização?", como a tornam cada vez mais difícil de responder. A nossa visão de mundo nos apresenta algumas sérias dificuldades. Passamos a acreditar, por exemplo, que as sociedades ditas primitivas têm o direito de continuar existindo tal como são. Que dizer, então, de uma civilização que as destruiu rotineiramente com base em justificativas morais, religiosas e históricas? Se a nossa civilização contém a nossa história e é também a expressão dos nossos valores permanentes, o que nos resta quando esses se nos afiguram tão obviamente em conflito?

Podemos começar a responder a tais perguntas examinando em que nós, a geração atual, somos diferentes de nossos antepassados e por que temos uma visão de mundo tão diferente. [...] Quais são, então, as características particulares do presente a influenciar a visão que temos da nossa civilização?

Nas décadas de 1930 e 1940 era perfeitamente claro o que representavam a sociedade ocidental e a civilização ocidentais. Para um socialista como para um conservador, a civilização era tudo o que Hitler, Mussolini e o Japão imperial estavam tentando destruir, e sua tarefa era, indiscutivelmente, preservar-se. A crença no deus cristão deu lugar à crença no progresso até ser substituída pela urgente necessidade de derrotar o fascismo. Os que lutaram "do lado errado" também o viram claramente quando a guerra terminou. A tarefa imediata dos anos do pós-guerra não era reconstruir a sociedade preexistente - era criar um novo começo. Não obstante, a guerra cobrou daqueles que a viveram um imenso preço em energia emocional e cultural. Depois de um breve flerte com o radicalismo, o Ocidente se aquietou na década de 1950 como uma sociedade política e culturalmente conservadora, ávida por agarrar-se àquilo que já possuía, estática e temente a mudanças.

Os anos 1960 foram, em parte, uma reação contra a atrofia da sociedade subsequente à Segunda Guerra Mundial. A geração que viveu a guerra se sentia aliviada por haver sobrevivido e tido a chance de construir um mundo próspero e pacífico, mas seus filhos e filhas que chegavam à idade adulta queriam algo mais. O anterior sentimento de que fora necessário lutar para preservar a civilização se transformou na nova crença de que fora precisamente a sociedade existente, com suas hierarquias, sua rigidez, seu respeito pela autoridade, sua mentalidade de "o doutor é quem sabe", a responsável pela queda da Europa no turbilhão do conflito. Em Nuremberg, diante de um mundo que se perguntava como foi que cidadãos de um país civilizado como a Alemanha puderam cometer tais horrores, o tedioso bordão era: "Eu só estava cumprindo ordens." Essa frase cruciante se tornou o inverso do lema da nova geração - de agora em diante, ninguém mais devia dar nem receber ordens. A Europa se livrava do militarismo que assombrara o continente durante mais de 150 anos. (Continua no próximo post)

OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 21-3.

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Civilização VII

Casa.
Jožef Petkovšek

Se abordagens novas e mais transparentes de temas tradicionais se tornaram populares, o mesmo se deu com o estudo do obscuro e do absolutamente peculiar. A história do bacalhau, do comércio de especiarias, da obsessão holandesa pela tulipa, da busca do método de medição da longitude, do consumo de peixe na antiga Atenas e milhares de outras vêm encontrando públicos entusiásticos. Hoje consumimos avidamente histórias de culturas exteriores à grande tradição: Índia, China, América nativa, Polinésia e Austrália aborígene.

Desenvolvemos também um gosto pela arqueologia do passado histórico e pré-histórico que nos coloca em contato com a rica cultura dos nossos ancestrais até então desconsiderada. O estudo de objetos, como o DNA mitocondrial, os padrões climáticos e vegetativos da Antiguidade, os isótopos preservados na dentição humana e as anomalias geofísicas, revelaram novos e fascinantes aspectos da nossa história.

Quando pedimos aos historiadores que nos mostrem as provas materiais do seu trabalho e nossa ânsia de conhecimento do passado nos leva a tantos atalhos da história, o fio dourado começa a ganhar o aspecto de um rio de tempo com uma miríade de afluentes, córregos, remansos e súbitas corredeiras ou, quem sabe, se assemelhe mais a uma imensa rede de pesca, enrolada até formar uma esfera conectada em todas as direções. A noção de que a civilização europeia, ou antes, de que a própria existência da civilização dependeu da permanência de uma tradição particular estritamente definida começa, em face da multiplicidade do passado, a nos parecer um tanto absurda.

Uma resposta tem sido escrever e falar em civilizações no plural. Autores como Fernand Braudel (A History of Civilizations) e Felipe Fernández-Armesto (Civilizations) escreveram histórias de diferentes civilizações, evitando a tradicional obsessão pelos padrões subjacentes; livros como Worlds Together, Worlds Apart, de Robert Tignor et al., de 2002, se dirigem a um número crescente de cursos universitários norte-americanos de História Mundial que evitam deliberadamente os preconceitos do eurocentrismo. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial (1996), de Samuel Hutingdon, descreve um mundo com várias civilizações distintas e potencialmente poderosas. Em Europe: A History, também publicado em 1966, Normam Davies nos mostra como, passada apenas uma década do colapso da Cortina de Ferro, as histórias da Europa Oriental e Ocidental podem e devem ser unificadas.

O desenvolvimento da velha crença na superioridade moral e intelectual dos europeus ganhou um reforço intelectual com o surgimento do que podemos chamar de história ambiental. O cientista e historiador norte-americano Jared Diamond defendeu convincentemente que a geografia, a topografia, o clima, as correntes oceânicas e os litorais afetaram o desenvolvimento das distintas sociedades - não num sentido vago, mas em aspectos passíveis de investigação e mensuração. Sua pesquisa levou à conclusão de que os europeus se beneficiaram de uma localização que lhes propiciou desenvolver tecnologias com as quais puderam conquistar o mundo. (Continua no próximo post)

OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 20-1.

terça-feira, 6 de junho de 2017

Civilização VI

O gaulês moribundo (detalhe).
Escultura romana do século I a.C. 
Escultor desconhecido

As duas ideias dominantes de civilização - a "grande tradição" do século XIX e a domesticação freudiana, com reverberações da teologia cristã, da fera interior - permaneceram conosco no início do novo século. A imagem de um fio dourado civilizacional emitindo um brilho de luz em meio às sombras da barbárie provou ser, para os historiadores, um símbolo poderoso e duradouro. Em 1999, Christian Meier escreveu que o Estreito de Salamina, onde os atenienses derrotaram a frota persa, foi "o buraco da agulha pelo qual teve de passar a história mundial"; Kenneth Clark se referiu ao período em que o cristianismo "sobreviveu agarrado a lugares como Skellig Michael, um pico rochoso a 30 km da costa irlandesa", como a civilização atravessando "o esmalte dos nossos dentes". Em momentos como esse, o fio dourado se esticou de maneira alarmante, mas não se rompeu. Nossa ligação com a grande tradição foi assim tanto preservada quanto exemplificada.

Também os historiadores invocaram as teorias de Freud para explicar comportamentos brutais como manifestações da fera interior que rompe, de tempos em tempos, a frágil barreira da civilização. Numa recente discussão sobre a Revolução Russa de 1917 e a guerra civil subsequente, Orlando Figes escreveu: "Era como se toda a violência dos anos precedentes tivesse removido o fino verniz de civilização que cobria as relações humanas, deixando expostos os instintos zoológicos primitivos do homem. As pessoas começaram a gostar do cheiro de sangue."

Mas não foram só os historiadores que fizeram uso da noção de fera interior. Artistas, cineastas e, particularmente, escritores de novelas policiais são enamorados da visão freudiana de uma humanidade brutal sob controle das forças civilizatórias. Como comentou P.D. James, os escritores de novelas policiais "demonstram o quão frágeis são as pontes que construímos sobre o abismo do caos social e psicológico".

Nas últimas décadas, esses conceitos e as crenças que os sustentam parecem cada vez mais incertos. Nossas maneiras de estudar o passado mudaram radicalmente, e os modos tradicionais de aprender a história, tão brilhantemente satirizados, já em 1930, por Sellar e Yeatman em seu 1066 and All That, deram lugar a uma abordagem muito mais variada e rica do passado. Nós hoje consumimos história com crescente entusiasmo em livros, filmes, televisão e rádio, mas não queremos que nos digam sumariamente que Napoleão foi bom para a França, porém ruim para a Europa, que Stalin era um monstro e que Elizabeth I foi uma "grande" rainha. Queremos receber informação, narrativas, documentos e testemunhos do passado para então formar as nossas próprias ideias. Sabemos que os acontecimentos nunca são vistos com olhos inocentes e que o preconceito do historiador é a influência dominante na forma como a história é contada. Os historiadores responderam abandonando sua pretensão à imparcialidade e à objetividade; em vez de nos dar somente os resultados, eles agora nos mostram como trabalham e compartilham seus métodos, dificuldades, incertezas e entusiasmos. Num tal ambiente, a renovação da tradição dos "grandes homens" por Kenneth Clark perdeu credibilidade. O que em 1969 tinha o aspecto de uma ousada inovação parece hoje o último suspiro de uma elite aristocrática. (Continua no próximo post)

OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 18-20.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Civilização V

A casa do Fauno.
Frank Fox

O significado da civilização para a cultura hoje dominante no mundo ocidental resta ambíguo em meio a todas essas mudanças. Os autores da Constituição dos Estados Unidos foram homens do Iluminismo totalmente impregnados da tradição clássica, ao passo que os colonizadores europeus usaram a ideia de "missão civilizatória" para justificar a tomada do continente americano e a destruição de sua população nativa. Contudo, os Estados Unidos da América foram fundados em oposição aos valores europeus estabelecidos, tornando-se, particularmente depois das migrações em massa de fins do século XIX, uma sociedade de tipo distinto. A civilização elitista e nostálgica de que falavam os europeus era, sob vários aspectos, uma afronta aos ideais norte-americanos, de natureza populista e progressista. Além disso, a cultura de massas e as formas de arte popular tão ridicularizadas pelos intelectuais europeus nos séculois XIX e XX foram, afinal de contas, criações fundamentalmente norte-americanas. Foi só depois da Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos assumiram a liderança política do mundo ocidental, que surgiu a possibilidade de resolução dessas contradições. A civilização se tornou um conceito mais democrático e menos elitista (giro reforçado pelo apreço dos líderes nazistas pela "alta cultura"), portador de um significado ao mesmo tempo vago e inclusivo - a sociedade inteira, não mais as formas de arte da elite, era agora a base da civilização ocidental. Essa abrangência um tanto ampla nos traz de volta ao lugar onde começamos. Retoma-se um conceito que, embora pareça ter perdido parte de sua clareza, conserva, nitidamente, uma extraordinária força política emocional. (Continua no próximo post)

OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história da civilização ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 18.

domingo, 4 de junho de 2017

Civilização IV

Partenon.
Vasily Polenov

As teorias de Freud derrubaram a concepção decimonônica da civilização como uma força benigna e demoliram a noção de progresso humano. Embora controversas e tidas como novidade, suas ideias eram, na verdade, um retorno ao pessimismo radical de Santo Agostinho, o pai da teologia cristã no século V. A doutrina católica afirma que nascemos com os pecados herdados de Adão e Eva. Eles são lavados no batismo, mas a qualquer momento estamos prestes a pecar. As palavras de Santo Agostinho "Levantem-se as barreiras criadas pelas leis e a obscena capacidade que tem o homem de fazer o mal e se entregar à indulgência se manifestará com toda força" poderiam ter sido escritas por Freud, cujas ideias agostinianas sobre a civilização mudaram o foco da sociedade para o indivíduo. Desde então, a mente do indivíduo humano tem sido o foco principal das nossas indagações acerca das questões capitais da guerra, da crueldade, do progresso, do ódio, da criatividade e da destruição.

Historiadores mais convencionais tentaram explicar as convulsões europeias mapeando a ascensão e queda das civilizações mundiais. A Decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, publicado em 1918, e a primeira parte de Um Estudo da História, de Arnold Toynbee, 1934, inspiravam-se ambos na crença decimonônica de que a história era guiada por leis universais e a tarefa do historiador era mostrar que essas leis se aplicavam a todas as civilizações.

O começo do século XX foi marcado pela chegada de uma nova força bárbara a enfrentar a civilização ocidental - a cultura de massas. Nas décadas de 1920 e 1930, os intelectuais europeus falavam e escreviam, desesperados, sobre o fim da civilização imposto pelas massas urbanas e seus execráveis gostos e hábitos culturais. A civilização só poderia ser preservada por uma pequena elite que produzisse e apreciasse obras de arte além do alcance da maioria. A civilização se tornou, aos olhos de alguns, território exclusivo de uma minoria.

Era de esperar que a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto e o Terror stalinista tivessem liquidado, de uma vez por todas, qualquer ideia de progresso humano e dos efeitos benéficos da civilização. Na verdade, justo o contrário aconteceu. Os horrores do nazismo, embora nos tenham levado a questionar a nossa humanidade, deram um novo ímpeto à crença de que os humanos podiam e deviam encontrar o caminho para um mundo melhor. Encorajados pela derrota do nazismo e ávidos por acreditar num mundo de coisas boas, durante uma ou duas décadas os ocidentais retornaram às velhas receitas. Cuidando de evitar afirmações banais de progresso, os historiadores da cultura podiam uma vez mais compartilhar o seu deleite com a "grandeza" dos artistas e filósofos e a beleza das pinturas, afrescos e palácios sem terem necessidade de se perguntar a que preço haviam sido comprados. Ao dar à sua série televisiva de 1969 sobre a arte europeia o título Civilização, Keneth Clark assumiu como seus verdadeiros produtos os grandes artistas e seus magníficos artefatos, desviando deliberadamente a atenção da guerra e do genocídio. (Continua no próximo post)

OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 17-8.

sábado, 3 de junho de 2017

Civilização III

Uma mulher grega.
Lawrence Alma-Tadema

O conceito de civilização ocidental como uma cadeia histórica contínua (ainda que ocasionalmente interrompida) foi reforçado pelo renovado interesse pelos mundos clássico e renascentista. Os cavalheiros eruditos da Grã-Bretanha, França, Holanda e Alemanha dos séculos XVIII e XIX percorreram o continente e viajaram ao sul para desenterrar pessoalmente as maravilhas do passado. Vastas quantidades de cerâmica, estatuária, pedra talhada, pinturas e mosaicos foram recolhidas, e inúmeros museus, construídos nas cidades do Norte da Europa para acomodar as descobertas trazidas do Egito, Grécia, Roma e Florença. Europeus eminentes passaram a encomendar imagens pintadas ou esculpidas de si mesmos usando togas e lauréis romanos, suas casas imitavam os templos gregos, seus clubes e regimentos passaram a adotar lemas latinos. Luminares da filosofia política resgataram palavras gregas, como democracia, e J.S. Mill chegou a declarar que "a Batalha de Maratona foi mais importante do que a de Hastings para a história da Inglaterra". A construção da cadeia histórica desembocou no batismo das inovações da arte italiana do século XV como Renascimento ou Renascença, da cultura europeia, descrição confirmada pela obra magistral de Jacob Burchardt, de 1869, A Cultura do Renascimento na Itália. Com a espetacular expansão da colonização europeia na década de 1890, parecia provável que o mundo inteiro, em pouco tempo, sentiria os benefícios da civilização ocidental.

Essa confortadora concepção de civilização sofreu um forte abalo na Grande Guerra de 1914-18, quando a morte de 10 milhões de soldados e a mutilação e cegueira de incontáveis outros a desmascararam como uma grande ilusão. Conflito entre grupos de nações civilizadas ou entre nações civilizadas (França, Grã-Bretanha, Estados Unidos) e outras que, subitamente, deixaram de sê-lo (Alemanha, Áustria), a guerra de 1914-18 foi, sem sombra de dúvida, tanto quanto os trens a vapor e o David de Michelangelo, um produto da civilização ocidental.

Como pode a civilização chegar a tal ponto? Como foi possível essa quantidade de mortes desnecessárias? A resposta mais convincente a essas interrogações não proveio de historiadores e filósofos, mas de uma fonte totalmente inesperada. Sigmund Freud, cuja visão da psicologia humana começava a se difundir por toda a Europa, tinha uma mensagem alarmante e pessimista para a humanidade. Ele disse a propósito da Primeira Guerra Mundial: "Não se trata de que chegamos tão baixo, mas de que nunca chegamos tão alto quanto imaginávamos."

Os seres humanos, disse Freud, são vítimas dos instintos ignóbeis e brutais herdados de animais e humanos primitivos. A civilização domestica a selvageria animal que mora dentro de todos nós, mas não nos pode livrar dos nossos instintos, que de tempos em tempos rompem a fina camada de verniz e nos levam a cometer atos de extraordinária violência. A explicação de Freud para a carnificina da Grande Guerra forjou a relação entre a psicologia individual e a natureza da civilização e fez da psicanálise o método dominante de seus estudos. A fronteira da civilização já não era um círculo ao redor da Europa Ocidental e Estados Unidos, tampouco um espaço histórico ao redor dos antigos Egito e Grécia e Roma, mas algo que residia dentro de nós. Tornamo-nos, de uma hora para outra, ao mesmo tempo, civilizados e bárbaros. (Continua no próximo post)

OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 15-7.

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Civilização II

Gladiadores depois do combate.
José Moreno Carbonero

No século XVIII, época em que se cunhou a palavra civilização, os intelectuais europeus experimentaram um momento de otimismo a respeito da bondade essencial do mundo, da graça de Deus e da capacidade do pensamento racional de classificar todo o conhecimento e resolver os problemas da humanidade. A noção de comportamento civilizado se firmou à medida que a politesse de inspiração francesa convertia proprietários de terras, mercadores e comerciantes (anteriormente dados ao mau hábito de morar e comer com seus trabalhadores) em uma elite portadora de maneiras corretas, quando não refinadas. A cultura cavalheiresca do século XVIII teve o aspecto de uma bem-vinda reedição do espírito de Atenas e Roma, e o otimismo do Iluminismo francês, acabrunhado com a guilhotina e o morticínio das guerras napoleônicas, floresceu novamente nos clubes de cavalheiros britânicos do século XIX. Durante a Era do Progresso e a expansão do Império Britânico, Macaulay, Carlyle e Buckle mostraram que as maravilhas da Grécia e Roma antigas, de Veneza e de Florença tinham uma natureza comum compartilhada com os prodígios da Grã-Bretanha industrial. O historiador vitoriano Henry Thomas Buckle arguiu, em 1857, que a civilização podia ser entendida como uma grande cadeia histórica cujo primeiro elo, a civilização do antigo Egito, "guarda um notável contraste com a barbárie dos demais povos da África". Do Egito, os elos da cadeia levaram à Grécia, depois a Roma, à Renascença, à Reforma, ao Iluminismo e, finalmente, às glórias da sociedade britânica de então. Os membros desse cortejo sagrado eram considerados civilizados; os estranhos, desavindos como bárbaros. O mundo civilizado da época de Buckle não apenas se definia por si próprio, como se dava a missão de "subjugar, converter e civilizar" o resto da humanidade, assim justificando a colonização europeia do mundo como uma salutar combinação de evangelismo e superioridade moral. A fronteira entre o civilizado e o não civilizado era fácil de traçar, embora fosse necessária certa destreza manual para lidar com os marajás mongóis e os imperadores chineses e japoneses: a civilização era branca e cristã; tudo o mais era barbárie. (Continua no próximo post)

OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 14-5.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Civilização I

Toalete de uma dama romana.
Juan Giménez Martín

O termo civilização surgiu na França do século XVIII, mas a ideia ocidental de sociedade civilizada vem da Grécia e Roma antigas. Durante o período clássico, os gregos começaram a se ver como não apenas diferentes, mas superiores a todos os outros povos. Quando, no século V a.C., Heródoto se referia aos "bárbaros", esse era apenas um termo genérico para designar os não gregos. Na época de Aristóteles, cerca de um século depois, os bárbaros e as nações bárbaras já eram definidos por atitudes - o modo de tratar os escravos, a economia baseada no escambo - vistas com reserva pelos gregos civilizados. Os costumes e as práticas culturais tornavam os bárbaros inferiores aos gregos, vistos por si mesmos e, mais tarde, pelos europeus como sinônimos de civilização.

Civilização deriva de civis, palavra latina que significa cidadão. Embora os romanos usassem, em lugar de civilização, a palavra cultura para descrever a sua vida espiritual, intelectual, social e artística, ser cidadão era participar dessa cultura. Tal como os gregos que, sob uma série de aspectos, tomaram como modelo, os romanos se consideravam singularmente cultos. Os conceitos de cultura e civilização se tornaram, pois, retrospectivamente sinônimos. Cercados por bárbaros, os romanos também se viram impelidos a levar aos outros a civilização. Como escreveu Virgílio: "Romanos, é vosso dever governar imperialmente as nações (...) impor o império da paz, poupar os humildes e esmagar os orgulhosos."

A definição de civilização foi recuperada no Ocidente pelos eruditos cristãos dos séculos VII e VIII, como Gregório de Tours e Bede, cujas narrativas dos séculos precedentes mostram o cristianismo seriamente ameaçado antes de triunfar, finalmente, sobre os pagãos. A organização da Igreja, sua cultura e sua aliança com Carlos Magno e quejandos propiciaram que a cristandade latina se tornasse um equivalente assumido da civilização ocidental.

O redespertar do interesse pelo mundo clássico antes e durante a Renascença reacendeu a ideia de uma civilização caracteristicamente europeia com existência anterior e paralela ao cristianismo. Os europeus ocidentais outorgaram a si próprios uma tradição nobre ao adotar a ancestralidade cultural de Sófocles, Platão, Virgílio e Sêneca, além de São Pedro e São Paulo. A descoberta de um Novo Mundo do outro lado do Atlântico e de uma miríade de povos aparentemente primitivos em todas as partes do mundo incentivou os europeus do século XVI a se identificarem ainda mais fortemente com os antigos gregos e romanos - povos civilizados cercados de bárbaros. (Continua no próximo post)

OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 13-4.

quarta-feira, 31 de maio de 2017

A garra charrua

Índios do Rio da Prata (charruas). 
Jornal de viagem de Hendrick Ottsen, 1603

No ano de 1832, os poucos índios que tinham sobrevivido à derrota de Artigas foram convidados a firmar a paz, e o presidente do Uruguai, Fructuoso Rivera, prometeu que eles iam receber terras.

Quando os charruas estavam bem alimentados e bebidos e adormecidos, os soldados entraram em ação. Os índios foram libertados de suas penas e angústias a golpes de punhal, para não gastar balas, e para não se perder tempo com enterros foram atirados no arroio Salsipuedes.

Foi uma armadilha. A história oficial chamou de batalha. E cada vez que nós, uruguaios, ganhamos algum troféu de futebol, celebramos o triunfo da garra charrua.

GALEANO, Eduardo. O caçador de histórias. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 55.