"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

A era do absolutismo: O desafio da Inglaterra ao absolutismo no século XVII

Carlos II dançando em um baile na Corte, Hieronymus Janssens

Tal como na França, o absolutismo na Inglaterra evoluiu do Estado Moderno a partir da dinastia Tudor (Henrique VII, Henrique VIII, Maria Tudor, Elisabete I) e se impôs na dinastia Stuart (Jaime I, Carlos I, Carlos II, Jaime II).

Com a morte da rainha Elisabete I a coroa inglesa passou ao rei da Escócia, Jaime I, e pela primeira vez os reinos da Inglaterra e da Escócia se uniram para formar a Grã-Bretanha. Durante o reinado de Jaime I, mas sobretudo no reinado de seu sucessor Carlos I, a Inglaterra voltou a ser agitada pelas questões religiosas às quais se juntaram questões sociais e econômicas. Essas agitações acabaram conduzindo a uma guerra civil entre duas facções: de um lado o rei (decidido a governar com amplos poderes, ignorando o Parlamento), a Igreja Anglicana (fiel ao soberano), a aristocracia (desejosa de manter seus privilégios); do outro lado, os chamados puritanos, protestantes calvinistas, defensores de um Parlamento ativo e dos direitos da burguesia.

As forças dos puritanos, chefiadas por Oliver Cromwell, infligiram pesadas derrotas aos exércitos de Carlos I que, tomado prisioneiro, foi acusado de ter sido omisso em seus deveres, submetido a processo e decapitado (1649). A execução de um monarca, fato até então inédito na Europa moderna, mostrava claramente a intolerância do povo em face do regime absolutista.

Após a morte do rei, a Inglaterra tornou-se uma república, dirigida com poderes plenos por Cromwell, que se intitulou Lorde Protetor. Cromwell, graças ao apoio que deu à marinha e ao comércio ingleses, através do Ato de Navegação, assegurou o domínio dos mares e o controle de vasta rede mercantil que permitirão à Inglaterra ser a grande potência do século XVIII.

Após a morte de Oliver Cromwell (1658) seguiu-se durante mais de um ano uma fase de agitações militares que não puderam ser contidas pelo novo Protetor Richard Cromwell, filho de Oliver. Em 1660, por decisão do Parlamento, a monarquia foi restaurada na Inglaterra, ocupando o trono Carlos II (1660) que casando com a princesa portuguesa D. Catarina de Bragança, recebeu um dote, para seu país, Tânger e Bombaim. Sua tentativa de restabelecer o catolicismo e o absolutismo foram prosseguidas, à sua morte, por Jaime II seu irmão e sucessor (1685-1688) que, depois de levar muitos ingleses a exilar-se, acabou provocando a chamada Revolução Gloriosa (1688-1689).

Depondo o rei, o Parlamento ofereceu a coroa da Inglaterra a Guilherme de Orange, príncipe holandês, genro de Jaime II, e que subiu ao trono com o nome de Guilherme III. O Parlamento, porém, exigiu garantias não só religiosas como civis, as quais foram concedidas por Guilherme III através da Declaração de Direitos. Por essa declaração foram confirmados os direitos pessoais dos cidadãos e ficou estabelecido que o poder das leis é superior ao poder dos reis, dando assim ampla autonomia ao Parlamento. À Declaração de Direitos seguiu-se um edito de tolerância garantindo liberdade de culto à nação inglesa, restringindo, porém, os direitos políticos de católicos e judeus que não podiam ocupar cargos públicos.

Guilherme III, desenvolvendo as liberdades democráticas através de um governo orientado por um parlamento, permitiu à Inglaterra surgir, no cenário mundial da época, como a nação politicamente mais avançada.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1974. p. 199-200.

sábado, 29 de agosto de 2015

A era do absolutismo: A ascensão da França nos séculos XVI e XVII

Rei Luís XIV, Nicolas-René Jollain

No século XVI a França foi cenário de violentas lutas religiosas entre católicos e protestantes calvinistas - chamados huguenotes -, as quais culminaram com o massacre da Noite de São Bartolomeu (1572) quando milhares de huguenotes foram eliminados, por ordem de Catarina de Médicis, regente do trono francês. A paz religiosa só pôde estabelecer-se no reinado de Henrique IV que, através do Edito de Nantes (1598), concedeu liberdade de culto aos protestantes [...].

O Edito de Nantes favoreceu o crescente prestígio político da França, a renovação de seu comércio e de sua indústria, responsável por um grande desenvolvimento econômico nos séculos seguintes.

O poder da França acentuou-se após a última das guerras de religião, a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648).

Esta guerra desenrolou-se na Alemanha, dividida em vários reinos e principados, uns protestantes outros católicos. Começando como uma luta religiosa terminou, entretanto, como conflito armado pela hegemonia na Europa; envolveu diversas nações, mas foi particularmente uma luta na qual a França se empenhou para cercear o poderio da casa real dos Habsburgo, herdeira do império de Carlos V. O conflito irrompeu na Boêmia quando o rei Fernando II de Habsburgo, católico, tentou impor sua religião em um território onde havia agrupamentos de protestantes. Os príncipes alemães católicos entraram em choque com os príncipes alemães protestantes; estes foram derrotados e a dominação dos Habsburgo afirmou-se na Boêmia. No entanto, o conflito alastrou-se gradativamente sobre boa parte da Europa provocando a guerra entre nações protestantes - Dinamarca, Suécia, Províncias Unidas - e nações católicas em poder dos Habsburgo - Áustria e Espanha. A França, embora católica, entrou na guerra ao lado das nações protestantes para refrear o prestígio dos Habsburgo. Assim, o longo conflito, durante o qual se alternaram vitórias e derrotas de ambos os lados, terminou com a intervenção decisiva da França que forçou a Áustria e a Espanha a renderem-se. Foram assinadas a Paz de Mestfália (1648), entre França e Áustria, e mais tarde (1659) a Paz dos Pirineus, entre França e Espanha.

A Paz de Westfália assinalou o fim das guerras de religião. assegurando tolerância de fé; politicamente, acabou com o predomínio e a força dos Habsburgo. [...]

[...]

Internamente, desde o reinado de Henrique IV, a França vinha passando por importantes transformações políticas, que levaram o rei a concentrar em suas mãos todos os poderes do Estado. Contribuíram para essa centralização do poder medidas tomadas por dois ministros, o Cardeal Richilieu (na regência de Maria de Médicis e no reinado de Luís XIII) e o Cardeal Mazzarino (na regência de Ana d'Áustria e no início do reinado de Luís XIV): ambos afastaram sistematicamente nobres dos corpos administrativos, confiando-os a funcionários de origem burguesa. Tais medidas contra a aristocracia, e que não deixaram de provocar agitações sociais e guerras civis, foram ainda mais reforçadas por Luís XIV, ao assumir o trono (1661).

O monarca afastou os nobres dos cargos administrativos que ainda ocupavam, em compensação atraiu-os para a sua corte e manteve-os isentos de impostos, que eles, todavia, continuaram cobrando dos lavradores de suas terras. Os postos administrativos foram ocupados por elementos da classe burguesa, ministros e funcionários diretamente nomeados e controlados pelo rei, o qual ainda favoreceu a rica burguesia dando grande impulso à indústria (manufatureira, construção civil, naval e de armamentos) e ao comércio (importação e exportação de matérias-primas e gêneros de primeira necessidade).

Concentrando todos os poderes do Estado em suas mãos, Luís XIV passou a encarnar o próprio reino da França e tornou-se assim símbolo vivo do absolutismo, sintetizado na frase a ele atribuída: L'état c'est moi (O Estado sou eu). Luís XIV deu à França o máximo de esplendor e projeção, tanto assim que sua época passou à história como o século de Luís XIV. Mereceu o nome de rei-sol, pois sua corte foi uma das mais brilhantes e luxuosas de que temos notícia, dela recebendo homenagens como se fora um deus.

O período de projeção que a França conheceu no século XVII foi resultado de importantes iniciativas do monarca, auxiliado por homens de visão, diplomatas, chefes militares e ministros, dentre os quais destacou-se o ministro da economia e das finanças, Colbert.

Colbert desenvolveu a política do mercantilismo, doutrina econômica fundamentada na pequena importação e na grande exportação. Mas, para exportar, era necessário produzir em larga escala objetos manufaturados de alta qualidade, transportá-los por mar e encontrar no estrangeiro matérias-primas e bons mercados. Colbert, pois, regulamentou a produção de mercadorias. exigiu o emprego de mão-de-obra qualificada e especializada, modernizou os estaleiros para a construção de navios, estimulou a exploração sistemática e a expansão das colônias francesas nas Américas (Canadá, Luisiana, Antilhas). A fim de a França poder competir com as poderosas companhias das Índias, holandesa e inglesa, fundou-se a Companhia Francesa das Índias Orientais. Reorganizando sua marinha, a França passou a concorrer comercialmente com a Holanda.

[...]

A França alcançara enorme prestígio internacional, mas internamente começara a delinear-se uma situação social bastante crítica. Na cidade, a nobreza ligada à corte de Luís XIV vivia ociosa e luxuosamente, enquanto a burguesia detinha influência considerável na administração e no comércio. No campo, os nobres empobreceram cada vez mais, pois os lavradores pagavam-lhes os impostos devidos não mais em dinheiro e sim em gêneros. Assim muitos nobres viram-se obrigados a vender parte de suas terras a burgueses da cidade. A situação dos camponeses agravava-se dia a dia, devido à falta de progresso sensível nas técnicas agrícolas, aos rendimentos diminutos, às elevadas taxas, aos caprichos da natureza, fortes geadas, prolongadas secas, trazendo fome, doenças e miséria.

Além disso, tendo Luíz XIV revogado o Edito de Nantes, recomeçaram as perseguições contra os protestantes que, obrigados a abandonar a França, emigraram em grande número para o exterior, levando consigo seus haveres e sua capacidade de trabalho, o que prejudicava seriamente o país. Prejuízos maiores sobrevieram quando outras nações europeias se coligaram para refrear as ambições desmedidas de Luíz XIV. Nos últimos anos de seu reinado a França enfrentou uma coligação europeia na Guerra de Sucessão da Espanha, à qual o Tratado de Utrecht (1713) pôs fim, pondo fim também à supremacia francesa.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1974. p. 195-8.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

A era do absolutismo: A supremacia da Espanha no século XVI

A formação dos Estados Modernos e as monarquias nacionais que neles se instalaram, simbolizando a unidade geográfica, política e cultural de uma região, favoreceram a afirmação do poder ilimitado dos reis, o absolutismo.

O poder soberano reside exclusivamente na minha pessoa [...] os direitos e os interesses da nação acham-se necessariamente vinculados aos meus e encontram-se em minhas mãos unicamente. (Luís XV)

Como sistema de governo o absolutismo tem raízes profundas no passado, podendo ser reconhecido na maneira de governar dos faraós egípcios ou dos imperadores romanos. Para a afirmação do absolutismo nos séculos XVII e XVIII tiveram importância lutas religiosas que se transformaram frequentemente em conflitos pela hegemonia política e econômica.

Essas lutas desencadearam-se em monarquias europeias que viam sua unidade religiosa seriamente ameaçada pela divisão da Igreja cristã. Ao lado disso, as monarquias empenharam-se em desenvolver, nos séculos XVI e XVII, uma política econômica (o mercantilismo) destinada a levar o poderio do Estado ao apogeu. Responsável em parte pelos conflitos em torno da hegemonia europeia e colonial, essa política econômica requeria um governo forte.


Navios ingleses e a Armada espanhola, Artista desconhecido

* A supremacia da Espanha no século XVI. No século XVI, no reinado de Filipe II, a Espanha foi a maior potência da Europa. Possuía um vasto império, o qual incluía os Países Baixos, o Ducado de Milão, os reinos de Nápoles, Sardenha e Sicília, vastos territórios nas Américas, as Filipinas, bem como, a partir de 1580, Portugal e suas colônias.

Do ponto de vista político o rei Filipe II mantinha rígido controle do governo, raramente convocando as Cortes (Parlamento) e quando o fazia era só mesmo para referendar suas decisões.

Do ponto de vista econômico, a Espanha de Filipe II monopolizava todo o comércio de seu império, dispunha de enormes quantidades de metal precioso obtido em suas terras nas Américas; descuidava-se, porém, do desenvolvimento agrícola e industrial do próprio país. Assim, quando sobreveio a crise do ouro, devido ao excesso de metal precioso, fazendo baixar o valor da moeda e subir os preços de gêneros alimentícios e produtos manufaturados, as nações europeias encontraram-se em dificuldades, sobretudo a Espanha, cuja produção interna não podia suprir às necessidades do povo, empobrecendo também em virtude de pesados impostos exigidos pela coroa.

Do ponto de vista religioso, Filipe II era um católico exacerbado e perseguiu violentamente, não só os protestantes, como os muçulmanos e os judeus convertidos ao catolicismo.

Os elevados impostos e as perseguições religiosas acabaram provocando a revolta dos Países Baixos. Após vários anos de lutas as províncias protestantes no norte, auxiliadas pela Inglaterra, conseguiram tornar-se independentes da Espanha (1579), com o nome de Províncias Unidas, a atual Holanda, que se transformou em uma nação próspera, logo iniciando uma expansão colonial na Ásia e na América.

Por ter ajudado a Holanda a tornar-se independente e por ser uma nação protestante, Felipe II via a Inglaterra como sua grande inimiga. A fim de esmagar o protestantismo e fortalecer seu poderio, concebeu um plano de ataque à Inglaterra, enviando contra esse país uma frota poderosa, a Invencível Armada. A esquadra espanhola, porém, foi vencida no Canal da Mancha pela esquadra inglesa constituída de navios menores e mais rápidos. Essa batalha naval marcou o fim da supremacia espanhola na Europa e o início da supremacia inglesa nos mares.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de [Org.]. História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1974. p. 194-5.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Visita ao Vaticano

A Criação de Adão (detalhe), Capela Sistina, Michelangelo

Perguntas que faço a Michelangelo, para ver se me responde:

- Por que a estátua de Moisés tem chifres?

- No afresco da Criação do Homem, na Capela Sistina, todos cravamos os olhos no dedo que dá vida a Adão, mas quem é essa moça nua que Deus aperta amorosamente, como num descuido, com o outro braço?

- No afresco da Criação da Fé, o que fazem esses galhos quebrados no Paraíso? Quem os cortou? A derrubada de bosques estava autorizada?

- No afresco do Juízo Final, quem é o papa que se precipita ao inferno, expulso a porrada por um anjo, e na sua queda leva as chaves pontificais e uma bolsa cheia?

- O Vaticano tapou quarenta e um pintos que o senhor havia pintado nesse afresco. O senhor ficou sabendo que seu amigo e colega Daniele da Volterra foi quem cobriu as entre-pernas com pudorosos panos, por ordem do papa, e que por isso foi chamado Ill Braghettone?

GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 100.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Pompeia, 24 de agosto de 79

Pompeia, 24 A.D., Alfred Elmore

Era o dia do deus romano do fogo

E era o ano de 79


Plínio, o Velho, navegava comandando uma frota romana.

Ao entrar na baía de Nápoles, viu que uma fumaça negra vinha crescendo do vulcão Vesúvio, uma árvore alta que abria sua ramagem na direção do céu, e de repente caiu a noite em pleno dia, o mundo tremeu em violentas sacudidelas e um bombardeio de pedras de fogo sepultou a festeira cidade de Pompeia.

O último dia de Pompeia, Karl Brullov

Pouco antes, o fogo havia arrasado a cidade de Lugdunum, e Sêneca havia escrito:

Houve apenas uma noite entre a maior cidade e cidade alguma.

Lugdunum ressuscitou, e agora se chama Lyon. E Pompeia não desapareceu: intacta debaixo das cinzas foi guardada pelo vulcão que a matou.

GALEANO, Eduardo. Os filhos dos dias. Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 270.

sábado, 22 de agosto de 2015

Os não romanos entre os romanos

Vercingetórix joga suas armas aos pés de Julio César, Lionel Royer

Quem não conhece Asterix, Obelix e sua turma de gauleses que combatem os romanos nas famosas histórias em quadrinhos francesas traduzidas em inúmeros países? Quem não conhece Jesus e os apóstolos, também da época dos antigos romanos? Eram romanos ou não eram? [...]

Os romanos conquistaram primeiro a Itália e, depois, toda a bacia do Mediterrâneo e, pouco a pouco, povos e mais povos foram sendo incorporados ao mundo romano. Ainda que esses outros povos fossem sendo considerados parte de Roma e que, até mesmo, a cidadania fosse concedida a indivíduos ou grupos inteiros, sempre muitos foram os não romanos. Dentre estes, os mais numerosos eram os escravos, muitas vezes provenientes dos lugares mais distantes de Roma. Ao se tornarem escravos deviam aprender a língua, os usos e costumes dos romanos, mas não deixavam de continuar com muitas de suas crenças e valores originais. Talvez o mais famoso exemplo seja o de Espártaco, homem nascido na Trácia, na Europa Oriental. Serviu ao exército romano, desertou e tornou-se líder de uma quadrilha. Tendo sido preso, foi vendido como escravo para um treinador de gladiadores. E, em 73 a.C., em Cápua, convenceu outros gladiadores a fugirem. A revolta espalhou-se e noventa mil escravos juntaram-se a eles, sob comando de Espártaco, derrotando os dois cônsules, em 72 a.C. Mas no ano seguinte, foram, finalmente, vencidos. Houve muitas outras revoltas e fugas, mas nenhuma tão grande quanto esta. [...]

Quando os romanos conquistaram os gregos, no século II a.C., encontraram uma civilização que acharam grandiosa. Passaram a estudar a língua e a Literatura gregas, a conhecer a Filosofia, a importar obras de arte e professores gregos. Os romanos de posses passaram a conhecer o grego até melhor do que o latim [...]. Os gregos, mesmo conquistados pelos romanos, não se preocupavam em aprender o latim de seus dominadores e, ao contrário, os romanos passaram a usar o grego em tudo o que se publicava no mundo de fala grega. A oriente, da Macedônia, passando pelo Peloponeso, Ásia Menor, Síria, Palestina e Egito, os romanos conviviam com o grego como língua oficial romana. Os gregos passaram, com o tempo, a se considerar romanos, mas nunca deixaram de ser também gregos, com língua e costumes próprios.

A maioria dos povos conquistados, contudo, não era assim tão respeitada pelos romanos. Os povos podiam continuar a usar suas línguas e praticar seus costumes, mas apenas o latim era aceito como veículo de comunicação oficial. Durante muitos séculos, várias línguas como o etrusco e o osco, na Itália; o celta, na Gália; o púnico, na África; o egípcio, no Egito; ou o aramaico, na Palestina, foram utilizadas pelo povo dessas regiões. Jesus e seus discípulos, por exemplo, falavam aramaico e a religião que praticavam nada tinha a ver com a dos romanos. Os evangelhos que tratam da vida de Jesus foram escritos em grego, mas Jesus não pregava nem em grego, nem em latim. A única frase que conhecemos de Jesus em sua língua original é aquela que disse na cruz antes de morrer: eloi, eloi, lamma sabacthani? "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" (Marcos, 15, 34). Um outro exemplo: Paulo, um rabino judeu de Tarso e que falava o grego, era cidadão romano, como se lê numa passagem do Novo Testamento, da Bíblia: Quando um tribuno foi prendê-lo, ele disse: "É-vos lícito açoitar um romano, sem ser condenado?" E, ouvindo isto, o centurião foi e anunciou ao tribuno, dizendo: "vê o que vais fazer, porque este homem é romano." E vindo o tribuno, disse-lhe: "dize-me, és tu romano?" E ele disse: "Sim". E respondeu o tribuno: "Eu, com grande soma de dinheiro, alcancei este direito de cidadania". Paulo disse: "Mas eu sou-o de nascimento". Esta passagem permite notar, ainda, pela fala do tribuno, que o destaque econômico permitia que se alcançasse a cidadania romana, pela política [...] de inclusão das elites locais ao mundo romano oficial.

Os gauleses conquistados tampouco falavam o latim. Com o passar do tempo, o mundo foi sendo transformado e os diferentes povos foram se misturando, os costumes se mesclando, em alguns lugares mais do que em outros. Eram muitos costumes, em constante interação.

FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2011. p. 124-6.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Iconografia: Grupos étnicos na Idade Média


[Europa Oriental: búlgaros e bizantinos]
Guerreiros búlgaros abatem bizantinos. 
Século X, Artista desconhecido

[Europa Oriental: croatas, sérvios e bizantinos]
Delegação de croatas e sérvios para o imperador 
bizantino Basílio I. 
Séculos XI-XIII, Artista desconhecido

[Europa: judeus e alemães]
Judeus queimados vivos em Deggendorf, Bavaria,1338, e em Sternberg, Mecklenburg, 1492. 
Crônica de Nuremberg, 1493. Michel Wolgemut, Wilhelm Pleydenwurff

[Oriente muçulmano: árabes]
Cerco árabe de Messina, defendida por Katakalon
 Kekaumenos, em 1040. 
Artista desconhecido

[Europa: ciganos]
Primeira chegada dos ciganos fora da cidade de Berna
 (descritos como "pagãos batizados"). 
1485, Diebold Schilling d. Ä.

[Europa Oriental: russos e húngaros]
Czar Simeão perseguido pelos húngaros, se abriga no 
reduto de Drustra. 
Séculos XI-XIII, Artista desconhecido

[Europa Ocidental: judeus e franceses]
Expulsão dos judeus da França em 1182. 
Miniatura das Grandes Crônicas da França. Manuscrito de 1321.

[Europa Oriental: russos]
Theodoros de Mistheia usa um Scyth como um escudo 
contra os russos. 
Séculos XI-XIII, Artista desconhecido


[África: árabes e africanos]
Mercado árabe de escravos africanos no Iêmem. 
1236-1237, wâsitî.(al-)

[Europa Ocidental: judeus e ingleses]
Judeus perseguidos na Inglaterra. 
Manuscrito das Crônicas de Offa.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Independência e mortes

A coroação do Imperador D. Pedro I do Brasil em 1822, Jean-Baptiste Debret

Visitando o Museu do Ipiranga, em São Paulo, encontraremos o mais famoso quadro sobre a Independência do Brasil.

No topo de uma colina, Dom Pedro, em traje de gala, montando um fogoso corcel, empunha a espada à frente de cavaleiros certamente emocionados com o momento. Diante dele, sobre cavalos inquietos, os "dragões" de sua guarda, surpresos com o grito ousado do príncipe. À esquerda, num canto, a figura solitária de um camponês, numa atitude meio de espanto e incompreensão. Passivo.

O Grito do Príncipe, do pintor Pedro Américo, é o retrato romântico-oficial da Independência. É o retrato que pintam dela os historiadores tradicionais.

Nossa independência tem um sentido particular dentro do quadro das independências latino-americanas. [...] ela foi o desfecho de uma luta da classe dominante colonial contra as tentativas de recolonização da metrópole. Até o fim do processo considerava-se a hipótese de uma autonomia relativa, mantendo-se a união com Portugal. Nos demais países da América Latina os movimentos da independência contaram com a participação de líderes como Bolívar e San Martín, que comandaram um longo processo de lutas populares, ao qual se seguiu a proclamação das repúblicas, um ideal já presente nessas lutas. [...]

Entretanto, é um erro persistir-se na ideia de que, com exceção das lutas políticas travadas no seio da classe dominante, a Independência do Brasil restringiu-se a um grito formal de Dom Pedro às margens do Ipiranga. Foram vários os gritos ouvidos.

Embora proclamada, a Independência não foi logo aceita por todos. Até 1823, governadores de algumas províncias negaram-se a acatá-la, apoiados pelas tropas portuguesas.

Como o exército brasileiro não constituía ainda uma corporação estruturada e bem treinada, coube a José Bonifácio a tarefa de organizá-lo. Comprou alguns navios e contratou militares estrangeiros, franceses e ingleses, que atuaram como mercenários. Mas a principal ajuda foi dada pelas milícias compostas por civis que, embora recebessem treinamento militar periódico, continuavam exercendo suas atividades normais, sendo convocadas em casos de necessidade.

Apesar das lutas terem acontecido em todo o território brasileiro, foram significativas as batalhas travadas nas províncias da Bahia e do Grão-Pará, justamente por abrigarem grande número de comerciantes cujos interesses se vinculavam a Portugal.

Na Bahia, alguns representantes desses interesses na Câmara da capital, desde 1821, haviam manifestado sua opinião:

"[...] esse Senado declara... Que empregará as suas forças para não consentir nem direta nem indiretamente na mais pequena separação entre os portugueses da Europa, das ilhas e do Brasil... E que a Constituição que as cortes em Lisboa estão organizando será irrevogavelmente aquela que deverá reger essa província." 


Entrada do Exército Libertador (detalhe), Prisciliano Silva

A situação tornou-se conflitante no início de 1822. A população local se rebelou contra a junta governativa liderada pelo brigadeiro Madeira de Melo, cercando a cidade de Salvador. Apesar do envio de tropas do Rio de Janeiro, comandadas pelo brigadeiro Labatut, os revoltosos não conseguem vencer Madeira de Melo e suas tropas, que haviam sido reforçadas por Portugal. Derrotados, os brasileiros conseguem no entanto manter o cerco à cidade, com a batalha de Pirajá. Nessa época ocorreu o episódio em que a madre Joana Angélica, superiora do convento Nossa Senhora da Conceição, tentou impedir com o sacrifício de sua própria vida a invasão do mosteiro, onde se escondiam os brasileiros refugiados das primeiras derrotas sofridas.

Só no ano seguinte as forças portuguesas foram derrotadas e para isso contaram os brasileiros com a ajuda da esquadra do almirante Cochrane, contratada pelo Governo imperial.

Na província do Grão-Pará, mesmo antes da independência, já se tinha notícias de lutas entre a população e os representantes da junta governativa, fiel a Portugal. O cônego Batista de Campos, o "Pau Bento", tornara-se líder na região e comandava as populações mais humildes na luta pela independência e por "outras melhorias".

O ano de 1823 marcou o auge dos conflitos. O navio Maranhão chegou à costa paraense, comandado por Grenfell, trazendo a notícia da chegada da esquadra do almirante Cochrane para ajudar os brasileiros. Enquanto a junta decidia o que fazer, o povo eufórico invadiu o palácio do governador, proclamou a Independência e entregou o poder provincial aos líderes populares. Este último ato, no entanto, excedia os limites impostos pela aristocracia agrária à participação popular no processo de independência. Cumprindo ordens do Governo imperial para reprimir violentamente o povo e seus líderes, "Grenfell prendeu Batista de Campos, fuzilou muitos nativos e meteu 300 prisioneiros no brigue Palhaço, no porão, escotilhas fechadas, atirando cal sobre eles. Dois dias depois, aberto o porão, foram tirados os cadáveres dos bravos paraenses, sacrificados por um mercenário, em sua luta pela liberdade e pela independência". (Werneck Sodré)

Também nas províncias do Rio de Janeiro, Maranhão, Piauí, Rio Grande do Sul, São Paulo e Cisplatina travaram-se conflitos. Em todos eles, porém, o povo atuou sempre como "bucha de canhão", isto é, não lhe cabia conduzir ou discutir o processo de independência, mas somente lutar. Enfim, foi uma participação que se caracterizou pelo nativismo exaltado, dirigido contra a figura do português. Não tinha o caráter nacionalista que muitos autores lhe atribuem. A ideia de nação, tanto para o povo como para as elites. era, e foi durante muito tempo ainda, uma ideia artificial. Não havia uma integração nacional: a economia mantinha-se voltada para o exterior e as relações das províncias com a Europa eram muito mais estreitas do que as relações das províncias entre si.

ALENCAR, Chico [et alli]. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1996. p. 115-7.

sábado, 15 de agosto de 2015

A Idade da Razão: a Ilustração ou Era das Luzes

O Renascimento trouxera a afirmação do homem, do seu espírito de iniciativa, de suas possibilidades intelectuais. No século XVII começou a ganhar força a ideia de que o homem poderia chegar à verdade e a dominar a natureza através da razão e da experiência. Razão e experiência passaram a ser aplicadas sistematicamente pelos estudiosos nos vários campos do saber humano.

Os primeiros estudiosos que investigaram e analisaram fenômenos naturais à luz da razão e buscaram definir um método científico ressaltando o valor da experiência, foram os filósofos Francis Bacon e René Descartes.

Coube aos cientistas aplicar esse método experimental dando origem à ciência moderna. O iniciador da pesquisa sistemática, baseada na formulação de uma hipótese cuja validade as experiências comprovam, foi Galileu. Segundo o mesmo método científico, Newton pôde estruturar a teoria correspondente às experiências realizadas em um período de 150 anos pelos físicos e astrônomos Copernico, Kepler e Galileu.

Neste século e no século seguinte sucederam-se importantes inovações e descobertas científicas que provaram ser o universo um eficiente mecanismo operando segundo leis exatas da natureza.

De acordo com este princípio, vários pensadores do século XVIII acreditaram ser também possível encontrar leis naturais aplicáveis ao homem e à sociedade. O movimento intelectual daí resultante chamou-se Ilustração ou Iluminismo, movimento de ideias inovadoras, propondo-se resolver, pela razão, problemas sociais, políticos, econômicos, culturais, sonhando-se com um mundo perfeito onde haveria paz, justiça e colaboração entre todos os homens.

Uma das figuras mais importantes do século XVIII foi o filósofo inglês John Locke que formulou a teoria dos direitos naturais do homem: vida, liberdade, propriedade, direitos que o governo escolhido pelo povo tinha o dever de assegurar-lhe. Se não o fizesse, o povo tinha o dever de escolher outro governo. As ideias de Locke, largamente difundidas e estudadas, desempenharam papel preponderante na revolução pela independência das treze colônias inglesas na América.

Os homens sendo, como tem sido dito, todos por Natureza livres, iguais e independentes, ninguém pode ser alijado deste Estado e submetido ao Poder Político de outrem, sem seu próprio consentimento. A maneira única em virtude da qual uma pessoa renuncia à Liberdade Natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela. Qualquer número de homens pode fazê-lo, porque não prejudica a liberdade dos demais; ficam como estavam na liberdade do estado de natureza. Quando qualquer número de homens consentiu desse modo em constituir uma comunidade ou governo, ficam, de fato, a ela incorporados e formam um corpo político no qual a maioria tem o direito de agir e resolver por todos. (John Locke, Segundo tratado sobre o governo, cap. VIII)

Leitura no salão de madame Geoffrin, Anicet-Charles-Gabriel Lemonnier 

Mais um passo na conquista das liberdades individuais foi dado por Voltaire (François-Marie Arouet), filósofo e escritor francês que lutou contra toda limitação à liberdade de pensamento, reconhecendo a todos o direito de manifestar suas ideias: "Não concordo com nenhuma de tuas palavras, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-las."

Denis Diderot, Louis-Michel van Loo

A ideia de que a cultura devia ser acessível a todos e não privilégio de poucos, conduziu alguns "filósofos" franceses (Diderot, D'Alembert), com a colaboração de outros escritores, a compilar uma obra em 35 volumes, a Enciclopédia, síntese do conhecimento humano. A Enciclopédia, circulando em toda a Europa, teve grande importância na difusão das novas ideias.

Enciclopédia ou Dicionário sistemático das Ciências, Artes e Ofícios, editado por Diderot e D'Alembert, ca. 1751-72. 

Tolerância: O homem, tão grande por sua inteligência, é ao mesmo tempo tão limitado por seus erros e suas paixões que dificilmente nele saberíamos inspirar a ter, para com os demais, essa tolerância, esse esteio de que ele próprio tanto necessita, e sem o qual somente teríamos sobre a terra lutas e dissensões. (Encyclopédie, verbete "Tolerância")

Os ideais dos ilustrados refletiram-se ainda no setor da política. Reconhecendo a crescente importância da burguesia na sociedade, reconheceram-lhe também o direito a uma participação efetiva na vida pública e administrativa de um país. Empenhados em cercear a exagerada influência dos nobres junto à monarquia, destacaram-se as obras de dois escritores franceses, Montesquieu e Rousseau.

Montesquieu, em seu livro O espírito das leis, bateu-se pela abolição de antigos privilégios da aristocracia e sublinhou a necessidade de o rei reconhecer, através de um documento oficial - a Constituição - o direito de os cidadãos participarem do governo por intermédio de representantes.

Rousseau, em seu livro O contrato social, negando que o poder do rei proviesse de Deus, afirmou que esse poder devia ser outorgado ao monarca pelo povo, a fim de representá-lo na direção do governo.

Evidentemente os ideais da Ilustração estenderam-se também à economia, setor no qual o dinamismo da classe burguesa esbarrava contra as tendências conservadoras, estáticas, da classe nobre. Teve grande repercussão a teoria do economista inglês Adam Smith, preconizando a necessidade de a economia poder desenvolver-se livremente sem quaisquer restrições ou controle da parte do Estado. Nasceu assim o liberalismo econômico vindo a favorecer a livre iniciativa de banqueiros, comerciantes e industriais.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de [Org.]. História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1974. p. 200-1.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

A guerra total

O senador estadunidense Alben W. Barkley, membro do comitê que investigava os crimes nazistas, ao lado de corpos de prisioneiros do campo de concentração de Buchenwald, na Alemanha. 24 de abril de 1945. Fotógrafo desconhecido.

Mais ainda que a Grande Guerra, a Segunda Guerra Mundial foi travada até o fim, sem ideias sérias de acordo em nenhum dos lados [...]. Era, de ambos os lados, uma guerra de religião, ou, em termos modernos, de ideologias. Foi também, e demonstravelmente, uma luta de vida ou morte para a maioria dos países envolvidos. O preço da derrota frente ao regime nacional-socialista alemão, como foi demonstrado na Polônia e nas partes ocupadas da URSS, e pelo extermínio dos judeus [...] era a escravização e a morte. Daí a guerra ser travada sem limites. A Segunda Guerra Mundial ampliou a guerra maciça em guerra total.

Suas perdas são literalmente incalculáveis, e mesmo estimativas aproximadas se mostram impossíveis, pois a guerra matou tão prontamente civis quanto pessoas de uniforme, e grande parte da pior matança se deu em regiões, ou momentos, em que não havia ninguém a postos para contar, ou se importar. [...] De qualquer modo, que significa exatidão estatística com ordens de grandeza tão astronômicas? Seria menor o horror do holocausto se os historiadores concluíssem que exterminou não 6 milhões mas 5 ou mesmo 4 milhões? [...] Que significa para o leitor médio desta página que, de 5,7 milhões de prisioneiros de guerra russos na Alemanha, 3,3 milhões morreram? A única coisa certa sobre as baixas da guerra é que levaram mais homens que mulheres. [...] Os prédios podiam ser mais facilmente reconstruídos após essa guerra do que as vidas dos sobreviventes. [...]

Tanto a totalidade dos esforços de guerra quanto a determinação de ambos os lados de travá-la sem limites e a qualquer custo deixaram a sua marca. Sem isso, é difícil explicar a crescente brutalidade e desumanidade do século XX. [...] O aumento da brutalização deveu-se não tanto à liberação do potencial latente de crueldade e violência do ser humano, que a guerra naturalmente legitima [...]. Outro motivo era a nova impessoalidade da guerra [...] A tecnologia tornava suas vítimas invisíveis, diferente de guerras anteriores com as pessoas evisceradas por baionetas ou vistas pelas miras das armas de fogo. Diante dos canhões permanentemente fixos da Frente Ocidental estavam não homens, mas estatísticas. [...] Lá embaixo dos bombardeios aéreos estavam não as pessoas que iam ser queimadas e evisceradas, mas somente alvos. Rapazes educados, que certamente não teriam desejado enfiar uma baioneta na barriga de uma jovem aldeã grávida, podiam com muito mais facilidade jogar altos explosivos sobre Londres ou Berlim ou bombas atômicas em Nagasaki. [...] As maiores crueldades de nosso século foram as crueldades impessoais decididas a distância, de sistema e rotina, sobretudo quando podiam ser justificadas como lamentáveis necessidades operacionais.

Assim o mundo acostumou-se à expulsão e matança compulsórias sem escala astronômica. [...] Em resumo, a catástrofe humana desencadeada pela Segunda Guerra Mundial é quase certamente a maior da história humana. O aspecto não menos importante dessa catástrofe é que a humanidade aprendeu a viver num mundo em que a matança, a tortura e o exílio em massa se tornaram experiências do dia-a-dia que não mais notamos.

HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos. O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 50, 56-8.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Tituba

Tituba e as crianças, Alfred Fredericks

Na América do Sul tinha sido caçada, lá na infância, e tinha sido vendida uma vez e outra e outra, e de dono em dono tinha ido parar na vila de Salem, na América do Norte.

Lá, naquele santuário puritano, a escrava Tituba servia na casa do reverendo Samuel Parris.

As filhas do reverendo a adoravam. Elas sonhavam acordadas quando Tituba contava contos de fantasmas ou lia os seus futuros numa clara de ovo. E no inverno de 1692, quando as meninas foram possuídas por Satã e se reviraram e uivavam, só Tituba conseguiu acalmá-las, e as acariciou e sussurrou contos para elas até que adormecessem em seu regaço.

Isso a condenou: era ela quem havia metido o inferno no virtuoso reino dos eleitos de Deus.

E a maga conta-contos foi atada ao cadafalso, em praça pública, e confessou.

Foi acusada de cozinhar bolos com receitas diabólicas e a açoitaram até que disse que sim.

Foi acusada de dançar nua nos festins das bruxas e a açoitaram até que disse que sim.

Foi acusada de dormir com Satanás e a açoitaram até que disse que sim.

E quando lhe disseram que suas cúmplices eram duas velhas que jamais iam à igreja, a acusada se transformou em acusadora e apontou com o dedo aquele par de endemoniadas e não foi mais açoitada.

E depois outras acusadas acusaram.

E a forca não parou de trabalhar.

GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 137.

domingo, 9 de agosto de 2015

O paganismo no Baixo Império Romano

Io (à esquerda, com chifres) e Ìsis (sentada, segurando uma serpente). Afresco romano no templo de Ísis, Pompéia. Artistas desconhecidos

* Cultos orientais e sincretismo. No que concerne ao paganismo, a influência do Oriente manifestou-se de maneira intensíssima desde o Alto Império [...]. Coube-lhes afirmarem-se no século III e com força ainda maior.

Foi esta a época, efetivamente, em que os cultos de divindades orientais conheceram maior êxito. Para nos limitar aos principais, os de Ísis, de Cibele e, principalmente, de Mitra atingiram o apogeu de sua difusão, facilitada doravante, não mais apenas pela tolerância, mas pela adesão pessoal dos imperadores. Em 197, Sétimo Severo celebrou em Lião, por um grande taurobólio, sua vitória sobre Clódio Albino. Em Roma, seu filho Caracala construiu um Serapeum e mandou adaptar um santuário de Mitra nos subterrâneos de suas grandes termas. O epíteto de Mitra, invictus (invicto), passou à lista de títulos imperiais, e uma inscrição oficial do tempo de Diocleciano mostra-nos que este deus se transformou então no patrono do Império.

Foi esta também a época em que com maior força se afirmou, contanto com o apoio do poder, a tendência ao sincretismo. Heliogábalo deu-lhe uma forma exagerada e ridícula pela pomposa celebração das núpcias do Baal de Emesa, de que era o sumo-sacerdote e cujo nome trazia, com Celestis, isto é, Tanit, vinda de Cartago por sua iniciativa. Da mesma forma, foi para o santuário por ele edificado ao seu deus que mandou transportar o fogo de Vesta, os escudos sagrados de Marte, a pedra negra da Grande Mãe, isto é, Cibele, originária de Pessinunte e introduzida em Roma pelo Senado no fim da segunda guerra púnica, etc. Mas, pondo-se de parte as extravagâncias, havia maior sensibilidade em relação ao que aproximava as divindades do que ao que as separava. Talvez se experimentasse também o desejo instintivo de levantar, frente ao Deus dos cristãos, um deus único, concentrando em si todas as energias cósmicas. Na ideia que dele se fazia, este ou aquele deus particular predominava: o Sol, fosse como Apolo, fosse diretamente sob o nome grego de Hélio ou  nome latino de Sol, Júpiter, Serápis, Mitra. Em todo caso, os atributos da luz, da dominação sobre todo o universo (cosmocrator), da invencibilidade, passavam indistintamente de um a outro, ao mesmo tempo que se ligavam ao próprio Imperador, transformado, assim, na encarnação terrestre dessa divindade toda-poderosa.

* O neoplatonismo de Plotino. Desde muito tempo [...] o movimento filosófico ajustava-se também a este movimento religioso e produziu, no século III, o que constitui a última grande criação do gênio grego no domínio em que se mostrava tão fecundo: o neoplatonismo que, esboçado em Alexandria por Amônio Sacas no começo do século III, foi completamente elaborado e ensinado em Roma, entre 244 e 270 aproximadamente, por um grego do Egito, Plotino. Encontramos aí as mesmas tendências da época, tanto o fervor exaltado e o apelo à sensibilidade, como a associação com fundo platônico de elementos provindos de doutrinas bastante diversas, em especial o pitagorismo, o aristotelismo e o estoicismo.

Plotino convidava o pensamento a conceber, por um ousadíssimo esforço de abstração, uma Unidade absoluta da qual procede, como por uma série de reflexos cada vez mais degredados, tudo o que existe, razão, alma, corpo. A realidade aparente interessava-lhe apenas pela ordem nela introduzida pelo Ser primeiro, em que se fundem e harmonizam todas as coisas. Um impulso interior impelia-o, pois, para a unidade divina. Mas seu monismo era também um panteísmo e acomodava-se mesmo com o politeísmo, pois todos os deuses são emanações do Ser; ademais, entre o mundo divino, ao qual pertencem os astros, e o mundo terrestre, existe uma multidão de demônios que o homem não pode negligenciar.

Na realidade, o sistema levava a recomendar um esforço de renúncia ascética da alma frente às realidades sensíveis. Se este malograsse, a alma imortal encarnar-se-ia em animais e até em categorias mais inferiores, isto é, em plantas. Se tivesse êxito, viveria à luz dos astros, chegando, finalmente, a absorver-se na fusão em Deus. Mas o êxito dependia do êxtase místico que, proporcionando a iluminação sobrenatural, a visão e a certeza da felicidade suprema, constituía a única possibilidade de estabelecer contato com esta. Assim sendo, o neoplatonismo desviava o espírito do raciocínio; este era empregado apenas para provar sua própria ineficácia.

* A teurgia. Plotino recusava-se a admitir uma religião que não fosse completamente interior. Mas, com a demonologia e a abdicação do racional, o neoplatonismo podia conduzir, e conduzia, longe. [...] Época alguma, pelo menos no mundo greco-romano, acreditou com tanta intensidade na ação imediata e quotidiana de forças superiores sobre o homem, por conseguinte, na adivinhação, na astrologia, magia e feitiçaria.

[...]

[...] Adotou-se o hábito de falar em teurgia, dada a insuficiência revelada pelo vocábulo teologia, pois, em lugar de se cingir a conhecer os deuses, a ambição agora era de agir juntamente com eles, por eles e como eles. Então, começaram a prosperar os mistagogos donos de lojas onde artificiosas e fantasmagóricas montagens cênicas, com música e ruídos insólitos, perfumes, vapores, sombras movediças, estátuas animadas, jogos de luz, impressionavam a imaginação dos neófitos. [...] Em Éfeso, Máximo, em meados do século IV, encarregava-se da iniciação nos mistérios de Hécate; o futuro Imperador Juliano, quando apostatou, mostrou-se sensível a estes mistérios, assim como às interpretações que lhe foram dadas acerca dos ritos e símbolos respectivos. [...]

Juliano praticou também o culto de Mitra; sofreu a aspersão de sangue num taurabólio; inicio-se nos mistérios de Ísis. O paganismo, pelo qual abandonou o Cristianismo, portanto, quase nada tinha [...] em comum com o dos grandes séculos clássicos, cujo patrocínio ele reivindicava. O seu era construído de efusões sentimentais perante o grande mistério da natureza, de inquietações sobre a salvação da alma, de impulsos em direção às beatitudes da imortalidade celeste. [...] Ora, o paganismo de Juliano era o de seu tempo; os campeões das virtudes racionais, os epicuristas, por exemplo, tornavam-se cada vez mais raros e eram considerados ateus.

* Helenismo e paganismo. Entretanto, mesmo cedendo a estas aspirações e recorrendo ao ocultismo, Juliano e os pagãos cultos ambicionavam defender o helenismo. Já na língua dos Evangelhos, heleno opunha-se a judeu: tratava-se , então, menos de politeísmo e monoteísmo do que de ignorância ou observação da Lei de Moisés. [...]

[...] O que os pagãos pretendiam afirmar era sua fidelidade à totalidade de um legado no qual os cristãos eram obrigados a escolher, separando a forma, que podiam admirar, do fundo, que teriam de abandonar. Isso porque a mitologia politeísta empregava as obras-primas literárias artísticas, honra do helenismo que, nascido na Grécia, fora adotado em Roma. [...]

E foi assim, de fato, que o pensamento pagão sobreviveu à morte de Juliano e, depois ao malogro da última tentativa política em torno do usurpador Eugênio. Por meio de interdição e perseguição - houve execuções capitais na época de Valente, uma das quais, pelo menos, na fogueira -, o governo imperial encarregou-se de desembaraçá-lo de suas turvas excrescências. Enquanto no Ocidente os últimos pagãos cultos promoviam ainda a filologia, no Oriente invocavam em seu favor o glorioso passado científico e filosófico da Grécia, principalmente Platão e, acessoriamente, Aristóteles. O neoplatonismo prosseguiu, abertamente, seu ensinamento nas duas escolas ainda acreditadas, em Alexandria e em Atenas. A primeira, continuadora do Museu dos Ptolomeus, parece que se afastou muito rapidamente dos desvios de Jâmblico e manteve o gosto pelas ciências, ao menos a Matemática. No início do século V, a bela e virtuosa Hipácia, filha do matemático Teon e autora de tratados matemáticos, servia de ilustração a esta afirmativa. Sinésio, que, embora se tornasse bispo, não deixou de se considerar filósofo, fora de seu discípulo. Mas sua fama irritava o chefe do cristianismo egípcio, o imperioso bispo Cirilo. Em 415, após os tumultos em que os pagãos não tiveram qualquer papel, alguns energúmenos atacaram-na em plena rua com tijolos, retalharam e queimaram seu cadáver. A escola de Alexandria não sobreviveu a este atentado. Quanto à de Atenas, viveu praticamente durante muito tempo ainda, limitando-se a comentar sem originalidade o pensamento dos grandes mestres; em 529, Justiniano ordenou seu fechamento, indo os derradeiros mestres buscar refúgio junto aos sassânidas.

AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. Roma e seu Império. As civilizações da Unidade Romana. A Ásia Oriental do início da Era Cristã ao fim do século II. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. p. 64-9. (História geral das civilizações, v. 5)

sábado, 8 de agosto de 2015

Pérsia sassânida امپراتوری ساسانیان

امپراتوری ساسانیان



A Pérsia dos partos entrou em colapso em 226 d.C., por causa de lutas internas. O ressurgimento da Pérsia aconteceu sob os sassânidas, cujo primeiro rei, Ardachêr I, governou de 226 a 241 d.C. Os reis sassânidas, de sua capital em Ctesiphon, às margens do Tigre, estabelecem um Estado mais centralizado do que o dos partos, conseguindo defender-se com facilidade dos romanos no oeste de seu país. Em 238 d.C., haviam conquistado as cidades fronteiriças de Nisbis e Hatra. No reinado de Shapur I (gov. 241-272 d.C.), os sassânidas deram um golpe duplo nos romanos, derrotando primeiramente o imperador Gordiam III, em 244 d.C., e em seguida Valeriano, em 260 d.C. Shapur parecia decidido a arrasar as províncias romanas do Oriente, porém o governante árabe de Palmira, na Síria, não o deixou passar.

Pavimento de chão representando uma mulher tocando harpa. Mosaico de mármore, ca. 260 d.C. Palácio de Sapor, Irã. Artistas desconhecidos


Nos três séculos que se seguiram, o pêndulo balançou entre vitórias dos romanos e dos sassânidas em uma região maciçamente defendida de cidades fronteiriças fortificadas. No início do séc, VII, Khusrau II Parviz (gov. 591-628 d.C.) finalmente rompeu esse equilíbrio, conquistando a Síria romana, a Palestina e o Egito, em 619 d.C. Porém, o Império Bizantino (romano-oriental) reagiu e recuperou todas as conquistas de Khusrau em 627 d.C. Os exaustos sassânidas foram então derrotados por exércitos árabes muçulmanos que os atacaram pelo sul e pelo oeste. Derrotado em Qadisia em 637 d.C. e em Nehavend em 642 d.C., o último rei sassânida, Yazdegird III (gov. 632-651 d.C.), retirou-se para o Oriente e morreu como fugitivo em Merv, na Ásia central.

CLARK, Philip. Guia ilustrado Zahar: história mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 115.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O Império Bizantino e sua cultura (Parte 2): Arte e Legado

Retrato do Imperador bizantino Alexio I Comneno. Artista desconhecido.

- A arte bizantina. Os gostos do povo bizantino, inclinado ao luxo e ao esplendor, expressavam-se abundantemente na sua arte. Esta não era, contudo, um mero emblema de deleite sensorial, mas mostrava-se profundamente condicionada pelos ideias peculiares à própria civilização. Por exemplo, a forte corrente de ascetismo proibia a glorificação do homem; em consequência disso, a escultura não teve grandes possibilidades de desenvolvimento. A arte que mais se destacou foi a arquitetura, que tinha de ser mística e extraterrena. Além disso, sendo a civilização bizantina um composto de elementos romanos e orientais, era inevitável que a sua arte continuasse o amor à grandiosidade e o talento da engenharia romana com a variedade de colorido e a riqueza de detalhes característicos do Oriente.

- A Igreja de Santa Sofia. A suprema obra artística da civilização bizantina foi a igreja de Santa Sofia (Santa Sabedoria), construída com enorme dispêndio de dinheiro pelo imperador Justiniano. Embora projetada por arquitetos de sangue helênico, muito diferia de qualquer templo grego. Seu fim não era exprimir o orgulho do homem em si mesmo ou a satisfação com esta vida, mas simbolizar o caráter introspectivo e espiritual da religião cristã. Eis por que os arquitetos deram pouca atenção à aparência externa do edifício. Nas paredes exteriores não usaram senão tijolos recobertos com argamassa; não empregaram revestimentos de mármore, colunas graciosas nem cornijas esculpidas. O interior, no entanto, era decorado com mosaicos ricamente coloridos, com folhas de ouro, colunas de mármore de várias cores e pedaços de vidro colorido, colocados de quina para refletir os raios solares de modo que cintilassem como pedras preciosas. Por essa razão, também, o edifício foi construído de tal modo que parecia não vir nenhuma luz de fora, mas nascer toda ela no interior.

[...]

- Outras artes bizantinas. As outras artes bizantinas incluíam a escultura, em marfim, os objetos de vidro com relevos, os brocados, as iluminuras em manuscritos, a ourivesaria e a joalheria, e muita pintura. Esta, porém, não se desenvolveu tanto como as outras artes. Os artistas bizantinos em geral preferiam os mosaicos. Eram desenhos conseguidos pela combinação de pequenos pedaços de vidro ou de pedra coloridos, formando padrões geométricos, figuras simbólicas de plantas e animais, ou mesmo uma cena rebuscada de significado teológico. As representações dos santos e de Cristo eram comumente deformadas para criar a impressão de intensa piedade.

- A influência de Bizâncio na Europa Oriental. [...] Foi ela, sem dúvida, o fator mais poderoso na determinação do rumo da evolução da Europa Oriental. A civilização imperial da Rússia baseou-se em grande parte nas instituições e nas realizações de Bizâncio. A igreja russa foi um reflexo da chamada igreja ortodoxa grega ou igreja oriental, que se desligou de Roma em 1054. O czar, como chefe da igreja e do estado, ocupava uma posição análoga à do imperador em Constantinopla. Também eram de origem bizantina a arquitetura, o calendário e grande parte do alfabeto russo. [...]

- A influência bizantina no Ocidente. Mas a influência bizantina não se limitou à Europa Oriental. Seria difícil superestimar a dívida do Ocidente para com os eruditos de Constantinopla e dos territórios vizinhos, que copiaram e conservaram manuscritos, prepararam antologias de literatura grega e escreveram enciclopédias que enfeixavam os conhecimentos do mundo antigo. Além disso, os eruditos bizantinos exerceram influência notável na Renascença Italiana. A despeito de terem os imperadores orientais perdido finalmente o controle da Itália, muitos de seus antigos súditos continuaram a viver lá e alguns outros fugiram para as cidades italianas depois da repressão do movimento iconoclasta. As relações culturais entre o Oriente e o Ocidente foram também favorecidas pelo largo comércio entre Veneza e Constantinopla, na Idade Média. Consequentemente, as bases para um reflorescimento do interesse pelos clássicos gregos já tinham sido lançadas muito antes de Manuel Chrysoloras e outros eminentes eruditos gregos chegarem à Itália, no século XV. Do mesmo modo, a arte bizantina influiu na arte da Europa Ocidental. Alguns especialistas consideram os vitrais das catedrais góticas como uma adaptação dos mosaicos das igrejas orientais. Muitas das mais famosas igrejas italianas, como por exemplo a de S. Marcos, em Veneza, foram construídas partindo de uma fiel imitação do estilo bizantino. A pintura bizantina também influenciou a da Renascença, especialmente a da escola veneziana e a de El Greco. Finalmente, foi o Corpus Juris de Justiniano que possibilitou realmente a transmissão do direito romano à segunda fase da Idade Média e ao mundo moderno.

BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. Porto Alegre: Globo, 1964. p. 295-297. [Volume 1]

terça-feira, 4 de agosto de 2015

O Império Bizantino e sua cultura (Parte 1): Política, economia e sociedade

A embaixada de João, o gramático em 829, entre o imperador bizantino Teófilo (à direita) e o califa Abássida Al-Ma'mun. Séc. XII-XIII.  Artista desconhecido. 

"Tratava-se de um Estado multirracial, que aceitava como cidadão todo aquele que falasse grego e seguisse o cristianismo ortodoxo".(FRANCO JR., Hilário; FILHO, Ruy de Oliveira Andrade. Atlas História Geral. São Paulo: Scipione, 1994. p. 18)


- A fundação do Império Bizantino. No século IV Constantino fundou uma nova capital para o Império Romano, no local da antiga colônia grega de Bizâncio. Quando se desintegrou a metade ocidental do Império, Bizâncio (ou Constantinopla como a cidade passou a ser comumente chamada) sobreviveu como capital de um poderoso estado que incluía as províncias dos Césares no Oriente Próximo. Aos poucos esse estado veio a ser conhecido como o Império Bizantino, embora não fosse antes do século VI, claramente reconhecida a existência de uma civilização bizantina. [...]

- A cultura bizantina. Embora a história bizantina tenha abrangido um período equivalente ao da Idade Média, o padrão cultural era bem diferente ao que dominava na Europa Ocidental. A civilização bizantina possuía um caráter muito mais pronunciadamente oriental. Não só Constantinopla entestava com o Oriente, mas também grande parte dos territórios do Império se localizava fora da Europa. Os mais importantes dentre eles eram: a Síria, a Ásia Menor, a Palestina e o Egito. Além disso, elementos gregos e helenísticos entraram na formação da cultura bizantina em porção maior do que aconteceu na Europa Ocidental. A língua predominante do estado oriental era o grego, ao mesmo tempo que se caracterizavam como profundamente helenísticas as tradições literárias, artísticas e científicas. Por último, o cristianismo do Império Bizantino diferia do da Europa Latina por ser mais místico, abstrato e pessimista, e por estar mais completamente sujeito ao controle político.

- As nacionalidades do Império Bizantino. A população dos territórios sob o governo bizantino compreendia um grande número de nacionalidades. A maioria dos habitantes eram gregos e orientais helenizados: sírios, judeus, armênios, egípcios e persas. Além disso, as partes europeias do Império incluíam numerosos bárbaros, especialmente eslavos e mongóis. Havia, também, alguns germanos, mas em geral os imperadores de Constantinopla conseguiram desviar as invasões germânicas para o Ocidente. Por outro lado, foi-lhes muito mais difícil obstar aos avanços dos eslavos e dos mongóis. A pátria original dos eslavos [...] provavelmente ficava no nordeste dos Montes Carpatos, sobretudo no que hoje constitui a região sudoeste da Rússia. Sendo um pacífico povo agrícola, raramente recorriam à invasão armada, mas aos poucos, desde que surgia uma oportunidade, expandiam-se em territórios pouco habitados. Não somente dirigiam-se para os vastos territórios despovoados da Rússia Central mas também ocuparam muitas regiões abandonadas pelos germanos e, daí, aos poucos, se infiltraram através das fronteiras do Império Oriental. No século VII formavam o mais numeroso povo de toda a península balcânica e de toda a Europa a leste dos germanos. Os habitantes mongólicos da Europa incluíam os búlgaros e os ávaros, que chegaram à Europa vindos das estepes da região que forma hoje a Rússia Asiática. Ambos esses povos eram pastoris, dotados de grande energia e dos hábitos guerreiros peculiares a esse modo de existência. Depois de penetrarem no vale do Danúbio, muitos deles forçaram a passagem para o território bizantino. Foi a fusão de alguns desses povos mongóis com os eslavos que deu nascimento às nações modernas dos búlgaros, dos sérvios e outros.

[...]

- O governo do Império Bizantino. O governo do Império Bizantino assemelhava-se ao de Roma depois de Diocleciano, exceto quanto a ser ainda mais despótico e teocrático. O imperador era soberano absoluto, com poder ilimitado sobre todos os setores da vida nacional. Seus súditos não somente se prosternavam diante dele, mas ao fazer-lhe uma petição usualmente diziam-se seus escravos. Além disso, a dignidade espiritual do imperador não era de modo algum inferior à sua força temporal. Era o vigário de Deus, com uma maturidade religiosa equiparada à dos apóstolos. Embora alguns imperadores fossem administradores capazes e dedicados, a maior parte das funções efetivas do governo era exercida por uma vasta burocracia, muitos de cujos membros se distinguiam por sua alta eficiência. Um grande exército de amanuenses, inspetores e espiões mantinham um controle minucioso sobre a vida e as posses de cada habitante do país.

- O controle estatal do sistema econômico. O sistema econômico era tão estritamente regulamentado quanto o do Egito faraônico. O Império Bizantino foi descrito, mesmo, como o "paraíso do monopólio, do privilégio e do paternalismo". O estado exercia controle absoluto sobre quase todos os gêneros de atividade. O salário de cada trabalhador e o preço de cada produto eram fixados por decreto governamental. Em muitos casos não podia o indivíduo nem sequer escolher sua própria ocupação, uma vez que ainda se mantinha o sistema de corporações estabelecido no extinto Império Romano. Cada trabalhador herdava sua condição de membro desta ou daquela corporação, e as muralhas que cercavam cada organização eram hermeticamente fechadas. Também o produtor não gozava de maior liberdade. Não podia fixar por si mesmo a quantidade ou a qualidade da matéria-prima que desejava comprar, nem lhe era permitido adquiri-la diretamente. Não podia determinar o total da produção, nem em que condições venderia o produto. Todos esses assuntos eram regulamentados pela associação comercial a que pertencia, sendo esta, por sua vez, submetida à supervisão do governo. A fim de tornar menos dispendiosa a administração do sistema, os imperadores encorajavam negociantes rivais e trabalhadores a fazerem-se delatores uns dos outros. O governo possuía e movimentava certo número de grandes empresas industriais. Entre as principais contavam-se a da pesca da púrpura ou múrice, as minas, as fábricas de armamentos e os estabelecimentos têxteis. Em certa época tentou-se estender o monopólio à indústria da seda, mas as fábricas do governo foram incapazes de atender aos pedidos e foi preciso permitir que as manufaturas particulares reiniciassem a produção.

[...]

- Condições sociais no Império Bizantino. As condições sociais do Império Bizantino apresentavam contraste notável com as da Europa Ocidental na primeira fase da Idade Média. Enquanto grandes zonas da Itália e do sul da França haviam baixado quase completamente ao nível primitivo do ruralismo, a sociedade bizantina continuava a manter seu caráter essencialmente urbano e suntuário. Só na cidade de Constantinopla vivia cerca de um milhão de pessoas, sem falar nos milhares que residiam em Tarso, Nicéia, Edessa, Tessalonica e outros grandes centros urbanos. Os mercadores, banqueiros e industriais igualavam-se aos grandes proprietários de terras como membros da aristocracia, pois não havia a tendência, que existira em Roma, de desprezar o homem que auferia seus rendimentos da indústria ou do comércio. Os ricos viviam elegante e comodamente, cultivando como arte superior a satisfação de gostos opulentos. Uma grande parte da atividade industrial da nação era absorvida na produção de artigos de luxo para atender às necessidades das classes mais ricas. A seguinte lista compreende apenas alguns poucos artigos da produção suntuária das fábricas e oficinas, tanto públicas como particulares: magníficas vestimentas de lã e de seda entrelaçada de fio de ouro e prata, tapeçarias de brocado e damasco esplendidamente coloridas, primorosos artefatos de vidro e porcelana, evangelhos com iluminuras e raros e caríssimos adereços.

- As classes inferiores. A vida das classes inferiores era, em comparação, pobre e mesquinha, mas apesar disso é bem provável que o homem comum do Império Bizantino estivesse em melhores condições que o cidadão médio de muitas das outras partes do mundo cristão desse tempo. O largo desenvolvimento industrial e comercial e o alto grau de estabilidade econômica ofereciam oportunidade ao emprego de milhares de trabalhadores urbanos, exceto no período das invasões dos muçulmanos, quando Constantinopla se viu abarrotada de refugiados que não podiam ser absorvidos pelo sistema econômico. Mesmo a sorte dos servos adscritos às terras de alguns grandes proprietários seculares era possivelmente superior à dos camponeses da Europa Ocidental, pois que o poder de exploração dos senhorios ao menos era regulamentado por lei. Não obstante, a condição dos servos era bastante má, pois estavam condenados a uma vida de ignorância e estúpida rotina, limitada ao horizonte estreito em que nasciam. Sua condição era inalteradamente determinada pelo simples acidente de nascerem de pais servos. A população bizantina compunha-se também de uma percentagem considerável de escravos, mas grande parte deles eram empregados em serviços domésticos e gozavam, sem dúvida, duma existência mais ou menos confortável.

- Extremos de ascetismo e de sensualidade. O nível de moralidade do Império mostrava certos contrastes um tanto chocantes. O povo bizantino, a despeito de seus antecedentes gregos, não tinha na aparência nenhuma aptidão para as virtudes tipicamente helênicas do equilíbrio e da moderação. Em lugar do meio termo, parecia preferir sempre os extremos. Por conseguinte, encontravam-se frequentemente, lado a lado com a mais extravagante intemperança, a mais humilde anto-negação e até a laceração da carne. As qualidades contraditórias de sensualidade e de piedade, de caridade e de crueldade, eram comumente encontradas na mesma camada social ou até nos mesmos indivíduos. Por exemplo, o grande imperador reformista Leo III tentou abolir a servidão, mas também introduziu a mutilação como pena judiciária. A vida na corte imperial e entre alguns membros do mais alto clero parece ter-se caracterizado pela indolência, pelos vícios elegantes, pelas maneiras efeminadas e pela intriga. Em razão disso, a própria palavra "bizantino" veio a sugerir sensualidade elegante e refinamento de crueldade.

BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. Porto Alegre: Globo, 1964. p. 283-285, 287-288, 291-292. [Volume 1]