"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 31 de maio de 2014

Legado da civilização sarracena

"Ilustração médica representando uma operação para castração". Charaf-ed-Din. C. 1466

Quase incalculável foi a influência da civilização sarracena na Europa Medieval e na Renascença, e alguma coisa dela certamente persistiu até hoje. A filosofia dos sarracenos foi quase tão importante como o cristianismo no fornecimento de uma base para o pensamento escolástico do século XIII, uma vez que foram os muçulmanos que tornaram acessíveis ao Ocidente as obras completas de Aristóteles e indicaram de modo mais completo o uso que se podia fazer de tais obras em apoio da doutrina religiosa. As conquistas científicas dos muçulmanos representavam contribuições ainda mais duradouras. A lista dessas contribuições inclui: a numeração arábica, a álgebra, descobertas médicas como o fenômeno do contágio e a natureza da varíola e do sarampo, numerosas drogas e compostos, e os processos químicos da sublimação e da filtragem. Embora a atividade dos sarracenos no campo literário não tenha sido tão extensa quanto na ciência, foi muito importante a sua influência literária. As baladas dos trovadores e alguns outros exemplares da poesia amorosa da França medieval inspiraram-se diretamente nas obras sarracenas. Algumas histórias das Mil e Uma Noites transparecem no Decameron de Boccaccio e nos Canterbury Tales de Chaucer, ao passo que o Livro dos Reis de Firdausi ofereceu a Matthew Arnold, escritor inglês do século XIX, o material para a sua história Sohrab and Rustum. Do mesmo modo, a arte sarracena teve uma influência de profundo significado, particularmente sobre a arquitetura gótica. Um número surpreendentemente grande de elementos arquitetônicos das catedrais góticas parece ter derivado das mesquitas e dos palácios muçulmanos. Uma relação incompleta incluiria: os arcos lobulados, as janelas rendilhadas, o arco ogival, o uso de caracteres e arabescos como recursos decorativos e possivelmente as abóbadas com nervuras. A arquitetura dos castelos medievais do segundo período era cópia ainda mais fiel das plantas de edifícios muçulmanos, em especial das fortalezas da Síria.


"Bayad toca o ud para as damas". Manuscrito árabe do século XII do conto Qissat Bayad wa Reyad

Finalmente, os sarracenos exerceram profunda influência no desenvolvimento econômico da segunda fase da Europa medieval e também do começo da Europa moderna. O reflorescimento do comércio que teve lugar na Europa ocidental durante os séculos XI, XII e XIII dificilmente teria sido possível sem o desenvolvimento da indústria e da agricultura dos muçulmanos, que estimulou a procura de novos produtos no Ocidente. Dos muçulmanos os europeus ocidentais adquiriram o conhecimento da bússola, o astrolábio, a arte de fabricar papel e talvez a produção da seda, embora o conhecimento dessa última possa ter sido obtido um pouco antes, do Império Bizantino. Além disso, é provável que o desenvolvimento, pelos muçulmanos, das sociedades comerciais por ações, cheques, cartas de crédito e outros instrumentos das transações comerciais, tenha larga relação com o início da revolução comercial da Europa, mais ou menos em 1400. Talvez seja mais claramente revelada a extensão da influência sarracena pelo grande número de palavras de origem árabe e persa usadas atualmente. Entre elas podemos citar: tráfico, tarifa, risco, cheque, magazine, álcool, cifra, zero, álgebra, musselina e bazar.¹

¹ Esta lista compreende somente palavras de formação árabe que penetraram na língua inglesa. O português e o espanhol, devido à longa ocupação da península ibérica pelos muçulmanos, contêm um número maior de palavras dessa proveniência e seus derivados. Entre elas contam-se muitas iniciadas pela sílaba al, que é o artigo definido em árabe. 

BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental: do homem das cavernas até a bomba atômica. Porto Alegre: Globo, 1964. p. 310-311. V. 1.


NOTA: O texto "Legado da civilização sarracena" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Os lídios

Rei Candaules, Jean-Léon Gérôme


Creso recebendo tributo de um camponês lídio. Claude Vignon

Quando caiu o império hitita, no século VIII antes da nossa era, seu sucessor nas principais áreas de domínio foi o reino da Lídia. Os lídios estabeleceram o seu poder sobre o que é hoje território da República Turca, na Anatólia. Não tardaram a obter o controle das cidades gregas da costa da Ásia Menor e de todo o planalto ao poente do rio Hális. Mas esse poder foi de curta duração. Em 550 a.C., Creso, o fabuloso rei dos lídios, julgou ver uma boa oportunidade de acrescentar aos seus domínios o território dos medos, a leste daquele rio. O rei medo acabava de ser deposto por Ciro, o chefe dos persas. Antecipando um fácil triunfo para os seus exércitos, Creso lançou-se à conquista das terras de além-Hális. Após uma batalha indecisa com Ciro, tornou à sua capital (Sárdis), em busca de reforços. Ali, Ciro apanhou-o desprevenido num ataque de surpresa, capturou e incendiou a cidade. Os lídios nunca se refizeram do golpe e em pouco tempo todo o seu território, inclusive as cidades gregas da costa, passaram para o domínio de Ciro o Grande.


Candaules, rei da Lídia, mostra sua mulher que esconde Giges na cama, um de seus ministros. William Etty

Creso mostra seu tesouro para Sólon. Gaspar van den Hoecke

Falavam os lídios uma língua indo-europeia e eram provavelmente uma mistura de povos nativos da Ásia Menor e elementos étnicos procedentes da Europa Oriental. Aproveitando as vantagens de uma posição favorável e da abundância de recursos naturais, desfrutavam um dos mais altos padrões de vida da antiguidade. Eram famosos pelo esplendor dos seus carros brindados e pela profusão de ouro e objetos de luxo que os cidadãos possuíam. A riqueza dos seus reis era lendária, como o atesta a frase feita rico como Creso”. As principais fontes dessa prosperidade eram o ouro extraído das torrentes, a lã dos milhares de ovelhas que pastavam nas colinas e os lucros auferidos do extenso tráfico entre o vale do Tigre-Eufrates e o Mar Egeu. Mas, com toda a sua opulência e oportunidades de lazer, a civilização não deve aos lídios mais que uma única contribuição original. Referimo-nos à cunhagem de moeda com eletro ou “ouro branco”, uma liga natural de ouro e prata, encontrada nas areias de um dos seus rios. Até então, todos os sistemas monetários tinham consistido em argolas ou barras de metal, de peso determinado. As novas moedas, de vários tamanhos, traziam gravado o valor que lhes era conferido, de maneira mais ou menos arbitrária, pelo soberano que as emitia.


Creso na fogueira. Ânfora ática, ca. 500-490 a.C., Myson

BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental: do homem das cavernas até a bomba atômica. Porto Alegre: Globo, 1964. V. 1,  p. 142-143.

NOTA: O texto "Os lídios" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

A romanização do Ocidente

A obra da civilização de Roma no Ocidente foi tão profunda que marcou toda a história da Europa.

Estendeu-se através da Gália, do Mediterrâneo até o Reno, e às costas do Atlântico e do mar do Norte. No sul, a mistura dos gregos, celtas e romanizados produziu a civilização provençal. Marselha, com o seu porto e a sua escola grega, foi o grande centro econômico e intelectual da Gália. Na confluência do Ródano e do Sona, Lião, promovida à condição de capital das Gálias, tornou-se grande cidade de negócios, freqüentada pelos orientais. Na Germânia, os quartéis-generais dos exércitos, Mogúncia e Colônia, figuraram entre as principais cidades do Ocidente. No Atlântico, Bordéus assumiu uma importância real pelo seu comércio com a ilha da Bretanha. Mais ao norte, o porto céltico de Bolonha tornou-se base militar. Em toda a parte, cidades secundárias apareceram: locais de pernoite de tropas, como Lutécia (e futura Paris), centros locais, cidades agrícolas ou mercantis.

Nas cidades, misturavam-se elementos celtas, helenizados e romanos. Formava-se uma burguesia. O latim era a língua do exército, da administração, do comércio e do ensino. Escolas preparavam os celtas para as carreiras da alta administração. [...] Sírios e orientais introduziram nas cidades o comércio do dinheiro. Nos campos se instalaram luxuosas vivendas. O uso do vidro de vidraças, tomado da Síria, generalizou-se. Implantou-se na Gália a fabricação do vidro.

A paz substituiu as rivalidades locais. O druidismo, perseguido por Roma, desapareceu. Implantou-se o regime do governo da cidade. Mas, de um modo geral, prevaleceu o sistema aristocrático gaulês. As cidades foram governadas por cúrias, cujos membros se cooptavam. Reuniam-se regularmente as assembléias provinciais e, cada ano, todas as províncias das Gálias enviavam os seus delegados a Lião, à assembléia das Gálias.

Progressivamente, a sociedade evoluiu. A propriedade privada se estendia cada vez mais aos bens das aldeias; a antiga nobreza política tornou-se uma classe de proprietários. Os chefes locais transformaram-se em magistrados eleitos.

Semelhantemente, na Espanha, a paz imperial trouxe grande prosperidade. Colônias romanas e comerciantes orientais ali se instalaram. O tráfico de portos, alimentados pela exportação das minas e pelo comércio com o Oriente, fundou ou desenvolveu cidades, que foram outros tantos centros econômicos e intelectuais, onde gregos, lígures, iberos e romanos se misturaram. Desde o 1º século, a Espanha foi um dos centros principais da cultura latina. Como na Gália, o latim aí se tornou a língua da intelligentsia, dos negócios e da administração. Mas, para permitir à Espanha conservar a tradição da cultura que ela adquirira antes da conquista romana, Vespasiano autorizou o emprego oficial das línguas locais, assim como concedeu em bloco, à Espanha, a cidadania romana.

Da Gália, a dominação romana passara, em 43 d.C., para a grande ilha da Bretanha, cujas minas de estanho eram um complemento econômico indispensável da Gália e da Espanha. Roma construiu na Inglaterra uma dupla rede de estradas, que se irradiava de Londres, famoso centro de tráfico desde o 1º século. Nas costas se instalaram portos e postos militares. Implantaram-se colônias romanas, dando origem a cidades. O desenvolvimento da agricultura fez surgirem as vivendas dos grandes proprietários, ao mesmo tempo que disseminava a pequena propriedade. As importações vindas da Gália introduziram no país costumes mais requintados. A romanização foi essencialmente obra de comerciantes, legionários e marinheiros da frota romana da Mancha. Os celtas da Hibérnia (Irlanda) e da Caledônia (Escócia), aos quais se estendeu a conquista, permaneceram impenetráveis à influência romana.

Da mesma forma, a romanização das províncias danubianas foi muito menos profunda que a do Ocidente. O movimento ali foi mantido principalmente pelas guarnições romanas do Danúbio. Uma delas deu origem a Viena. Na Mésia inferior, Roma encontrou, ao longo do mar Negro, a antiga colonização grega, que suplantou. Sobre os seus antigos vestígios estendeu momentaneamente o poder romano até a Criméia, onde as cidades gregas conservaram a autonomia sob a soberania de Roma.

A Dalmácia e o Epiro voltaram-se, muito naturalmente, para Roma e sofreram, sobretudo no litoral, a influência da Itália, muito próximo.


Apolo Kitharoidos (segurando uma lira). Mármore romano, século II d.C., de estatuária helenística do século II a.C.. Templo de Apolo em Cyrene (Líbia moderna).

A romanização instalou-se igualmente na costa da África, de onde a vida econômica se orientava para Roma. Se a Cirenaica permaneceu sujeita à influência grega e egípcia, o domínio romano se exerceu, em compensação, profundamente, sobre a Tripolitânia e a Tunísia, onde surgiram centros econômicos importantes. Na Numíbia, os acampamentos militares deram origem às cidades [...].

O solo foi sistematicamente explorado por engenheiros romanos, que introduziram na Argélia atual processos de irrigação havidos do Egito. A África tornou-se grande produtora de trigo, abastecendo o império. Mais adiante, na direção do oceano, na Mauritânia (a Argélia ocidental e o Marrocos), Roma só impôs uma ocupação política, que lhe assegurava a soberania sobre os chefes locais, vassalos até o 4º século, e depois apenas confederados.

Adaptando-se com surpreendente flexibilidade ao nível de civilização dos povos incorporados ao império, Roma assimilava-os apoiando-se na burguesia rica e criando em toda a parte uma grande riqueza agrícola e comercial, pela instauração da paz e do comércio livre [...]. Nunca, antes do 19º século, o mundo se cobriu tanto de cidades, todas administradas livremente pela própria população. Em toda a parte, a cultura, disseminada pelas escolas, floresceu. Nivelando o império por cima, Roma espalhou sobre o mundo mediterrâneo as duas grandes conquistas da civilização oriental: a emancipação individual e o sentido do universal.


PIRENNE, Jacques-Henri. Panorama da História Universal. São Paulo: Difel/Editora da Universidade de São Paulo, 1973. p. 114-116.

NOTA: O texto "A romanização do Ocidente" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Os arameus

Atrás da faixa litorânea do território fenício, a Síria, encruzilhada de rotas, é também uma encruzilhada de povos. Muitos aí se instalaram e dominaram alternadamente, deixando no local elementos étnicos que se fundiram pouco a pouco num todo mesclado, deixando também vestígios arqueológicos, que os eruditos modernos se esforçam por classificar. [...]


Estela de funeral de Si' Gabbor, sacerdote do Deus da lua. Basalto, início do século VII a.C., encontrado em Neirab (Síria). Tem uma inscrição em aramaico.

A vida política. Também eram semitas, saídos não se sabe de que região do deserto sírio-árabe. Nômades organizados em tribos, tinham vagueado até a Alta Mesopotâmia, em Harrã, onde os encontramos, de início, muito densos e estáveis [...]. Em seguida, a partir do século XIV a.C., espalharam-se pela Síria, onde formaram grupos sedentários. Não expulsaram e jamais fizeram desaparecer inteiramente as antigas populações. Jamais criaram um Estado único mas, ao contrário, uma pluralidade de reinos, por vezes em guerra uns contra os outros. O mais importante foi, segundo parece, o do grande oásis situado ao pé do Antilíbano, Damasco, o reino dos Benhadads, equivalente hebraico do aramaico Bar-hadad, isto é, “filho de Haddad”, e de Hazael, isto é, “El observa”. [...] O apogeu dos arameus verifica-se entre os séculos XI e X a.C.: barravam então, aos assírios, as rotas do Noroeste e do Ocidente. Mas, a partir do século X, os reis assírios empenharam-se em lutas contra os arameus, que tiveram de enfrentar ao mesmo tempo os hebreus. No fim do século VIII findara a sua independência para sempre, depois dessa data, os arameus se tornaram súditos de Estados estrangeiros.

Cada um de seus reinos possuía sua cidade-capital, seu rei, sua dinastia e também seus usurpadores. A um ou a outro, os assírios impuseram um tributo, uma homenagem, tentando transformar em semivassalo e em semifuncionário um pequeno rei que aproveitava a primeira oportunidade para declarar-se independente. [...]


Estela funerária de basalto com uma inscrição aramaica, ca. século VII a.C., Neirab (Síria)

O papel comercial. [...] A posição geográfica da Alta Mesopotâmia e da Síria, destinadas ao tráfico entre a costa fenícia e a Ásia Menor, de um lado, e as regiões do Eufrates inferior e do Tigre, de outro, permitiu-lhes desenvolver intensa atividade como intermediários. Foram eles, em terra, numa parte do Oriente Próximo, o que os fenícios foram no mar. Pouco a pouco, a agricultura e a indústria síria, aperfeiçoando suas técnicas, adquiriram grande renome e contribuíram para a fortuna de Damasco. [...] o deslocamento dos arameus antes de sua fixação como sedentários, as deportações dos reis assírios, a emigração voluntária de seus comerciantes nos vastos impérios que lhes haviam imposto o seu domínio, todas essas causas conduziram a disseminação em numerosas cidades, por vezes bem distantes, de grupos entregues aos negócios, grandes ou pequenos. Aumentando incessantemente, essa ubiqüidade lhes foi proveitosa, mesmo sob o domínio grego e, no tempo do Império Romano, quase por toda parte no mundo antigo, os comerciantes por excelência.

O aramaico, língua do Oriente. O resultado mais imediato disso foi a expansão de sua língua, cujos múltiplos dialetos se difundiram num aramaico comum. Em vez de escrever em caracteres cuneiformes, adaptaram ao seu idioma um alfabeto derivado do fenício. A comodidade conseqüente desse arranjo e sua dispersão levaram os reis assírios a contratar, para seus scriptoria, escribas arameus que escreviam em papiros. Avançando ainda mais, os Aquemênidas adotaram o aramaico como idioma administrativo de seu império. A atividade comercial dos arameus realizou o resto, e sua língua ganhou à custa de muitas outras. Seus progressos explicam a morte dos velhos idiomas mesopotâmicos. O uso do hebraico perdeu-se, mesmo na Palestina: a Bíblia ainda conserva passagens em aramaico [...]; Jesus e seus discípulos não pregaram em hebraico, mas em aramaico. O siríaco, que foi durante muito tempo o idioma dos cristãos da Síria e da Mesopotâmia, derivava do aramaico. Apenas a conquista árabe, no século VII d.C., deteve sua difusão, provocando o seu posterior desaparecimento. Mas, então, o aramaico já desempenhava enorme papel em todo o Oriente Próximo, exceto na Ásia Menor e no Egito: papel comercial, intelectual e mais ainda – como instrumento de unificação -, papel moral e político. 


Baal. Acrópole de Ugarit. 

A religião. No tocante a essa época antiga, a arte dos arameus é negligenciável. E não fosse o futuro que alguns de seus cultos desfrutarão no Império Romano, a religião também não ofereceria maior interesse.

Tratava-se, de fato, de uma religião sem originalidade, muito misturada, com um fundo sobretudo cananeu, mesclado de influências mitânicas, hititas e fenícias: tais influências estrangeiras eram tanto mais facilmente assimiláveis, quanto os cultos por eles refletidos tiveram, por sua vez, origem em cultos cananeus. Assim, El é mencionado em diversos pontos, principalmente, o deus da tempestade, Hadad – em Damasco, Rammon, isto é, “o tonante” – era reconhecido quase sempre sob o nome de Baal; da mesma forma, é em Astarte que encontramos o protótipo da maioria das divindades femininas. Os deuses mesopotâmicos, que haviam penetrado em grande número, confundiam-se frequentemente com deuses cananeus; entretanto, o Baal de Harrã permaneceu firmemente o deus-lua Sin que, provindo de Ur, na Caldéia, se instalara nessa cidade desde a mais alta Antiguidade.

A Síria, em matéria religiosa, também foi uma terra de confluência. Mais tarde, por volta do início da era cristã, havendo já recebido bastante de outras religiões, transformou ou, melhor, fundiu muito do que recebera, sobretudo por sincretismo com a teologia solar. Além disso, exportou muitos elementos religiosos por intermédio de seus comerciantes, presentes em toda parte, dos soldados que forneceu a Roma e daqueles que, nascidos em outras regiões, passaram tempos em seu território. A Dea syria Atargátis, os Baals de Doliché, Heliópolis e Emesa, partiram de solo sírio para ganhar a Europa: Atargátis já se firmara amplamente em Delos no início do século I a.C.

Nesse tempo em que Roma dominava o mundo, ninguém mais se preocupava, e desde há muito, com os reis ou com a civilização da Assíria. Jamais, no entanto, a ação efetiva dos arameus se exerceu sobre tão amplo domínio. E, sem dúvida alguma, essa influência se originara da perda de sua independência política, quando Sargão II reprimira as últimas rebeliões de Hamat e Damasco; a História oferece mais de um exemplo desse aparente paradoxo.


AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 66-70. (História Geral das Civilizações, v. 2)


NOTA: O texto "Os arameus" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

domingo, 25 de maio de 2014

Os ousados precursores

Cena de cópula, vale Camonica, Itália. 
Foto: Luca Giarelli

Cena de cópula, vale Camonica, Itália. 
Foto: Luca Giarelli

A atração sexual entre seres humanos do mesmo gênero remonta provavelmente à pré-história ou ainda antes. [...] O homo sapiens, ou seja, o que já pensava e entendia, deixou alguns vestígios das suas opções sexuais. Nas pinturas rupestres do vale Camonica, nos Alpes italianos, podem ver-se as figuras de dois homens a copular. Essa estação arqueológica pré-histórica tem cerca de 8000 anos e nada nos permite concluir que os dois cavernícolas acabavam de inventar o assunto. A única coisa que sabemos é que, deste então até hoje, os homens e as mulheres com inclinação para fazer amor com parceiros do seu próprio sexo foram uma presença constante na História. 

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Editorial Estampa, 2006. p. 13.


NOTA: O texto "Os ousados precursores" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

A guerra dos Bôeres

Na história do Império Britânico, a Colônia do Cabo desempenhou um papel semelhante ao da Argélia no processo de expansão colonialista da França, caracterizado pela imposição do domínio europeu a populações nativas violentamente hostis ao “homem branco”. Por outro lado, da mesma forma que a França pretendia que suas colônias africanas formassem um bloco contínuo da Argélia até o vale do Níger, o objetivo da Inglaterra era formar um grande eixo desde o Egito até a Colônia do Cabo.


A Guerra dos Bôeres. Richard Caton Woodville

No fim do século XVIII, os ingleses haviam penetrado no sul da África, onde já estavam instalados os bôeres, colonos descendentes de holandeses que se tornaram inimigos dos ingleses a partir de 1795, quando foram obrigados a lhes ceder a Colônia do Cabo. Os conflitos que se sucederam entre os ingleses e os bôeres forçaram estes últimos a emigrar para as regiões do interior, onde haviam fundado em 1830 as repúblicas de Natal, do Transvaal e de Orange, depois de expulsarem as tribos bantu que viviam na região. Esse deslocamento em massa dos colonos bôeres ocorreu no período compreendido entre os anos de 1834 a 1839, e tornou-se conhecido como great trek (“grande imigração”).


Mulheres e crianças bôeres num campo de concentração britânico durante a Guerra dos Bôeres

Em 1843, a Inglaterra anexou a república de Natal às suas colônias e, em 1881, tentou fazer o mesmo com a do Transvaal. Desta vez, porém, encontrou forte resistência por parte dos bôeres, que se rebelaram e derrotaram as forças inglesas na batalha de Majuba Hill. Diante disso, o governo britânico preferiu ceder e reconhecer a autonomia das repúblicas bôeres.

As principais companhias mineradoras da África do Sul – a Beers e a Goldfields of South África – eram dirigidas pelo inglês Cecil Rhodes, que governou a Colônia do Cabo como primeiro-ministro de 1890 a 1895 e cujo grande projeto político era consolidar a dominação branca no sul da África a partir de uma aliança com os bôeres. Tal projeto, porém, fracassou em virtude da descoberta de ricas jazidas de ouro no Transvaal, que atraiu para a região capitais estrangeiros e milhares de imigrantes – os chamados uitlanders -, que eram, em sua maior parte, súditos britânicos.

Em pouco tempo o número desses estrangeiros superou por longa margem o dos bôeres, e isso fez com que o governo do Transvaal, chefiado por Paul Kruger, adotasse uma série de medidas preventivas no sentido de limitar os direitos dos imigrantes e, sobretudo, de resistir às crescentes pressões por parte de Cecil Rhodes e do governo da Colônia do Cabo. Conseguindo apoio externo, principalmente da Alemanha, os bôeres prepararam-se para a resistência, movimento ao qual se uniu a república de Orange. Em uma tentativa desesperada, Cecil Rhodes tentou promover uma rebelião dos uitlanders, mas não foi bem sucedido, o que representou o fim de sua carreira política.

Depois de resolver o problema do Sudão egípcio, o governo britânico, chefiado por Chamberlain, procurou negociar com os bôeres. As tentativas realizadas nesse sentido pelo alto-comissário da Colônia do Cabo – Lorde Alfred Milner – não tinham, entretanto, o resultado desejado. Em 9 de outubro de 1899, Paul Kruger exigiu a retirada das tropas inglesas das fronteiras bôeres, fato que equivalia a u a declaração de guerra. Teve início então o conflito, que durou três anos e terminou com a derrota dos bôeres. Esses assinaram com os ingleses o Tratado de Verceniging (31 de maio de 1902), o qual lhes assegurava, entre outras coisas, a futura autonomia administrativa para suas repúblicas, a abolição dos direitos políticos das tribos nativas a eles submetidas e o uso do holandês como língua oficial. Dirigida por Lorde Milner, a reconstrução da Colônia do Cabo – devastada durante a guerra – foi rapidamente realizada e, a partir de 1907, concedeu-se a prometida autonomia dos bôeres. Em 1910 foi fundada a União Sul-Africana (formada pela Colônia do Cabo e as repúblicas de Natal, Transvaal e Orange), com base em um acordo que favorecia os bôeres e continha os fundamentos do apartheid, política de segregação racial cujo princípio era a superioridade dos brancos.


HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 183-184. Volume 5.

NOTA: O texto "A guerra dos Bôeres" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

A Guerra do Ópio

Desde o século XVIII os mercadores ocidentais dedicavam-se ao rendoso comércio de ópio com a China. O consumo dessa droga tornara-se tão generalizado no país, que ela vinha sendo utilizada como moeda no pagamento das exportações chinesas. Se tal substituição constituía uma excelente forma de favorecer a balança comercial dos países ocidentais, seus efeitos sobre a população chinesa eram, ao contrário, extremamente desastrosos. O uso do ópio afetava sobretudo as camadas mais pobres da população, sujeitas a um violento processo de desgaste moral e de debilitação orgânica. Em 1800, um edito imperial proibia a entrada de ópio no país, mas essa medida não impediu que os navios ocidentais continuassem a introduzir, clandestinamente, grandes quantidades da droga na China. A parcela mais significativa desse tráfico era realizada pela Inglaterra, por meio da Companhia das Índias, proprietária de extensas plantações de ópio na Índia.

Século XVIII (Royal Irish). Regimento de infantaria no assalto dos fortes de Amoy, 26 de agosto de 1841. Michael Angelo Hayes (artista) e James Henry Lynch (litografia).

Em 1839, o governo de Pequim enviou o emissário imperial Lin Tse-hsu a Cantão com a missão de pôr fim ao nefasto contrabando de ópio. Apoiado pelas tropas locais, esse funcionário confiscou o ópio que os comerciantes ocidentais transportavam em seus navios, apreendendo e queimando mais de 20.000 caixas de droga. Refugiando-se em Macau e, depois, em Hong-Kong, os comerciantes ocidentais protestaram energicamente contra a ação do governo chinês e anunciaram sua intenção de não retornar a Cantão enquanto o governo britânico não tomasse medidas que assegurassem tanto a sua proteção pessoal como a de seus bens. A Inglaterra não poderia desejar melhor oportunidade para concretizar tão almejada invasão da China; e, usando como pretexto a necessidade de garantir os comerciantes britânicos, desencadeou a chamada “guerra do ópio”.


Chineses fumando ópio. Arnold Wright

Em 1840, tropas inglesas, comandadas pelo coronel Henry Pottinger, desembarcaram na China e venceram facilmente a fraca resistência oferecida pelo seu exército, que não dispunha de armas modernas. Depois de tomarem Shangai, as forças invasoras prosseguiram sem maiores problemas até Nanquim, onde, em 29 de agosto de 1842, forçaram o governo imperial a assinar um tratado com a Inglaterra. Por esse acordo estabelecia-se a abertura de mais quatro portos chineses ao comércio internacional – Shangai, Amoi, Fuchow e Ning-po – além do de Cantão. Nesses portos, os ingleses poderiam instalar suas residências e representações consulares, tendo permissão também para negociar diretamente com os comerciantes chineses, o que abolia o monopólio comercial da Co Hong. Além disso, a Inglaterra adquiriu a ilha de Hong-Kong, sobre a qual passou a ter plena soberania.

Outros acordos, complementares ao tratado de Nanquim, impuseram aos chineses a criação de tribunais consulares nos Portos do Tratado (denominação dada aos novos postos que haviam sido abertos ao comércio com a Inglaterra), com competência para julgar, segundo as leis inglesas, todos os cidadãos britânicos acusados de crimes cometidos em território chinês. Reconhecia-se, assim, de fato, a extraterritorialidade dos centros comerciais ingleses na China, embora tal cláusula não estivesse contida explicitamente nos contratos.

Seguindo o caminho aberto pela Inglaterra, penetraram na China outras potências ocidentais, uma vez que o governo britânico não manifestara a intenção de garantir para si o monopólio do Celeste Império. Nesse sentido, o Lorde Robert Salisbury – político conservador inglês que, durante a segunda metade do século XIX, ocupou por várias vezes os cargos de ministro das Relações Exteriores e de primeiro-ministro – expressou com clareza a posição britânica em relação ao Extremo Oriente: “Na Ásia há lugar para todos”. Assim, não houve qualquer problema internacional quando, em 1844, emissários franceses e norte-americanos obtiveram do governo chinês tratados semelhantes ao de Nanquim.

O emissário francês obteve também do imperador um edito de tolerância em favor dos católicos, que dois anos depois foi estendido aos protestantes. Por esses tratados, os missionários ficavam proibidos de sair dos limites das cinco cidades portuárias abertas ao comércio com o Ocidente. Mas, aproveitando-se de sua condição de estrangeiros, que os punha a salvo da jurisdição chinesa, os missionários penetraram no interior do país. E, quando as autoridades chinesas os aprisionavam, eram conduzidos à mais próxima legação diplomática de um país ocidental, onde nunca sofriam qualquer punição porque não podiam ser considerados criminosos pelas leis de seus países. Dessa forma, os religiosos ficavam livres para retomar suas atividades no interior do país.

Quebrou-se assim o secular isolamento do Império Chinês que, incapaz de enfrentar a superioridade militar dos países ocidentais e de não aceitar suas imposições, teve de ceder até mesmo ante os que não recorreram à força. Tais acontecimentos refletiram-se em alguns setores do governo chinês, que passaram a propor, entre outras coisas, a assimilação da técnica militar das potências ocidentais, a fim de poder enfrentá-las em pé de igualdade, argumentando que a força era a única linguagem compreendida pelos europeus. Os defensores dessa teoria, que estavam em franca minoria nos meios governamentais, foram derrotados pelo conservadorismo dos membros da dinastia Manchu e dos mandarins. Presos à velha tradição de não manter contato com estrangeiros, esses elementos conservadores pretendiam controlar a penetração dos ocidentais fazendo-lhes algumas concessões e, ao mesmo tempo, manipulando-os por meio da mentira ou da astúcia, conforme a situação o exigisse. Tal estratégia, no entanto, revelou-se demasiadamente ingênua ante a firme determinação das potências ocidentais no sentido de intensificar a exploração do comércio com a China, sobretudo considerando-se que esta se apoiava no poder das armas.


HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 146-148. Volume V.

NOTA: O texto "A Guerra do Ópio" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

O homem do século XVI: o conhecimento

A quermesse de São Jorge com a dança ao redor do poste, Pieter Brueghel, o Jovem

A um nível diferente do psiquismo, o homem do século XVI não possui exatamente as mesmas faculdades naturais de conhecer o mundo exterior, nem mesmo a aparelhagem mental do homem do século XX. Entretanto, sua necessidade de certeza é, talvez, ainda maior do que a nossa. Porém, por um exemplo, o da França, esclarecido por trabalhos recentes, quantos outros permanecem de nós desconhecidos.

- Os sentidos. Eles são, provavelmente, mais aguçados do que os nossos num universo em que o homem se situa, mais amiúde, num estado de alerta. A hierarquia não é a mesma de hoje (L. Febvre).

A vista, que é o nosso sentido primordial, não vem, então, senão após o ouvido e o tato. Antes da propagação do livro impresso, a leitura constitui um meio de informação menos utilizado do que a audição. Os conselheiros dos soberanos são chamados auditores e as relações quase sempre são orais. A Palavra de Deus é comunicada muito mais pelo sermão ou pela prédica do que pela leitura. Entendimento significa compreensão. O tato é o órgão da certeza. Fornece ao homem a confirmação do que ele vê. As práticas religiosas ratificaram tal confiança (imposição das mãos, toque das relíquias). Todavia, no século XVI, desenvolve-se a função da vista, época em que o uso dos vidros brancos e dos óculos dão um prolongamento à atividade do homem.

- A influência do meio natural sobre o pensamento. Devido à falta de confiança na vista, o órgão do conhecimento científico, o homem permanece orientado para o qualitativo. Nem o espaço, nem o tempo são medidos com exatidão.

As medidas do espaço são tomadas de empréstimo ao corpo humano: polegada, pé, passo, cúbito, ou ao deslocamento do homem: dia de marcha. A jornada de carruagem é a unidade de superfície mais difundida. Todas estas medidas têm um valor variável. Não existe nenhuma possibilidade de avaliar as grandes distâncias.

Depara-se a mesma imprecisão para a expressão do tempo. A duração é o tempo vivido. Não se conta em horas, mas em preces: o tempo de uma ave, de dois padres-nossos. O tempo-instante é fixado pelos incidentes metereológicos contemporâneos. A data é expressa segundo um acontecimento e com relação às festas.

A divisão do tempo é baseada na alternância do dia e da noite. A relojoaria já produziu obras estimáveis a serviços das municipalidades, mas frágeis e pouco numerosas. O começo da jornada não estava fixado com uniformidade. Situa-se, na Itália, no começo da noite. Ocorre o mesmo com o início do ano. É somente no decorrer do século XVI que se introduz a ordem na questão da data.

Na realidade, só o ritmo das estações e a alternância do dia e da noite é que contam. Os meses são expressos pelos trabalhos do campo ou, entre as pessoas de saber, pelos símbolos do zodíaco. A divisão do dia em horas equivalentes durante todos as estações mal começa a impor-se. É verdade que, vivendo embora uma vida mais curta do que a nossa, o homem do século XVI é menos apressado que o do século XX. Dia de entrevista e tempo transcorrido num trabalho são noções muito elásticas.

Em contrapartida, o homem é muito mais sensível às concomitâncias percebidas na natureza. O animismo é alimentado por uma imaginação muito concreta: demônios, íncubos, súcubos, lêmures para as pessoas de saber, duendes, diabretes para todos, são companheiros da vida cotidiana.

- A fraqueza da expressão abstrata. As línguas vivas não permitem expressar perfeitamente os conceitos. Faltam ao francês da época muitos termos abstratos. O progresso da tipografia não permitiu ainda a codificação de Villers-Cotterêts que torna o seu emprego obrigatório nos atos jurídicos (1539). Mas ele não convém de todo à ciência. É, pois, verossímil que as outras línguas europeias não estejam melhor aparelhadas.

O latim, que apresentava a vantagem de ser compreendido pelo mundo erudito da Europa, podia enriquecer-se de neologismos, mas tendo sido "feito para exprimir as tentativas de uma civilização morta há uma dúzia de séculos... seria ele capaz de acolher ideias ainda por vir?" (L. Febvre).

A expressão do quantitativo está ainda mal dividida. O cálculo, contudo, dotou-se de usos simples, mas apenas para a contabilidade comercial. O cálculo científico está embaraçado por dificuldades de expressão. Os algarismos gobar (ditos árabes), hindus de origem, não penetraram a vida corrente onde imperam sempre os algarismos romanos cuja utilização nas contas feitas no papel é de tal modo complicado, que se empregam preferentemente o tabuleiro de xadrez, o ábaco e as fichas.

- Necessidade de certeza. Será talvez por causa de todas estas debilidades que se torna imperioso a necessidade de certeza? Prisioneiro do meio natural, o homem o conhece mal. Ele desdenha a observação metódica e não vê nela senão curiosidade, mas não faz disso um dever. O homem prefere raciocinar, sem se preocupar com o valor das bases desse raciocínio.

Consciente da fragilidade de sua ação sobre a natureza, ele considera como uma experiência miraculosa tudo quanto sabe fazer, sem ousar arriscá-lo por mudanças demasiado rápidas de método. Ele situa a idade de ouro nas origens da humanidade e apóia-se na tradição, não por preguiça de espírito ou por rotina, mas por razão. Por isso os trabalhos científicos estão atulhados de citações. Entrincheira-se atrás de autoridades e discute-se, sobretudo, os desacordos. É por aí, unicamente, que o pensamento avança.

Enfim, a necessidade de certeza sacia-se nas crenças animistas que se misturam às mais evoluídas religiões. Assim se explicam, sem se admitir a dúvida, as relações entre os seres, os seres e as coisas e entre as próprias coisas. Agir sobre a natureza é descobrir o caráter dos espíritos e forçá-los a agirem. Por isso a magia é apenas uma falsa ciência.

A magia é inocente. Não ocorre o mesmo com a feitiçaria. A feitiçaria, praticada entre os cristãos, é muito mais temível. Faz-se acompanhar de perversão ou mesmo de inversão de todos os preceitos das leis divinas e naturais. Sabemos hoje que ela revela do domínio da patologia. A feitiçaria só teria para o historiador um interesse limitado se as autoridades humanas não tivessem crido nas narrativas dos feiticeiros e na realidade do sabá. A feitiçaria constitui, portanto, um elemento negativo do conhecimento que não se deveria subestimar.

Fraco domínio sobre a natureza, força da tradição, magia e feitiçaria eram, igualmente, obstáculos aos progressos da humanidade. É na Europa Ocidental que o espírito de empreendimento suscita os maiores esforços no sentido de lhes escapar.

CORVISIER, André. História moderna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 21-23.

NOTA: O texto "O homem do século XVI: o conhecimento" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sábado, 17 de maio de 2014

O homem do século XVI: a afetividade

Cena de aldeia com a pousada (taverna) São MIguel, Pieter Brueghel, o Jovem

Se os tipos físicos são mais diversificados do que hoje, provavelmente o fato é ainda mais verídico no que respeita aos tipos psíquicos. Entre homens tão diferentes e tão estreitamente acantonados, os contatos, salvo vizinhança imediata, só poderiam ser rudimentares e esporádicos. Foram necessários dois séculos para ser estabelecida uma diplomacia europeia. As relações com os mundos exteriores só eram desejadas em caráter de exceção, salvo sob forma de conquista, por causa da confusão de estruturas sociais e políticas e, também, das diferenças de grau no controle de si e da diversificação das formas de afetividade.

Bordel, Joachim Beuckelaer

- O controle de si.  Somente este controle permite a organização e a manutenção de uma ordem social. Entre certos povos, tal controle não é, provavelmente, senão passividade.

Conhece-se melhor o caso dos europeus. O francês do princípio dos Tempos Modernos, bem como seus vizinhos, nos aparecem grosseiros e lascivos, instáveis, emotivos, impulsivos, suscetíveis de sentimentos singularmente violentos. Cupidez e concupiscência são mal refreadas. Assassinatos, crimes passionais, premeditados ou não, violações e raptos são relativamente frequentes em todos os níveis sociais. O clero evita a duras penas tais excessos. Os sentimentos mais elevados, fé religiosa, honra, têm um aspecto visceral e tomam, na ocasião, uma expressão feroz como o testemunham as guerras de religião e os duelos.


Rixa de camponeses, Pieter Brueghel, o Jovem

A crueldade da época nos surpreende. A vista do sangue não provoca repulsa. Atrai, de preferência. Corre-se a assistir as execuções capitais, acompanhadas de grande variedade de suplícios. Encontra-se o mesmo exagero na desesperança e nas penitências livremente consentidas.

Nasce, sem dúvida, na Itália, um tipo de homem superior novo, o cortesão, descrito por Baldassarre Castiglione em um livro célebre desse título (1528), cujo controle de si constitui uma das maiores virtudes, acrescido da distinção das maneiras e da cultura sem afetação. Todavia, tal controle de si é odioso à maioria dos franceses. Contribuiu mais tarde à impopularidade da Corte de Valois.

As paixões individuais mudam-se depressa em paixões coletivas. A peste, o anabatismo, a Guerra dos Camponeses são a oportunidade de "emoções" populares e de matanças generalizadas.

- A sociabilidade. As relações com o próximo correm, amiúde, o risco de serem relações de força. Infeliz do homem só, já o disse a Bíblia; podemos ajuntar: e da mulher sozinha.


Camponeses felizes do lado de fora da taverna "O cisne", Pieter Brueghel, o Jovem

A criança não suscita nenhum interesse por si mesma. Entre os grandes, os nobres, os burgueses, o filho representa o futuro da linhagem. Respeita-se no ancião o benefício da experiência, que ele pode fornecer, e a proximidade do céu na qual talvez se encontre. A caridade, altamente proclamada como uma virtude e um dever, é exercida no interesse do doador e não daquele a quem é dirigida. Os mendigos são tolerados, mas à condição de que não sejam estranhos à localidade.

É que os franceses e seus vizinhos, bastante gregários, constituem células sociais elementares, comunidades rurais, paróquias, muito fortes. Essas comunidades não são entidades, porém sua existência é sentida como a dos organismos vivos, corpos com cabeça e membros. O estrangeiro, o horsain, suscita apenas desconfiança e torna-se facilmente um bode expiatório, sobretudo se não fala a mesma língua, não pratica a mesma religião (judeus), ou exerce, além do mais, uma atividade distinta da do conjunto do corpo (negociante, banqueiro). Então, o ódio que o persegue é endêmico.

Não obstante, solidariedades supralocais são provocadas entre nobres, servidores do soberano. O espírito de corpo, anima determinados ofícios além dos limites da cidade. Os reis da França e da Inglaterra, combateram-se durante muito tempo e, por ser diferente do que veio a tornar-se em consequência, o sentimento nacional existe em seus dois povos.

- A vida e a morte. Estes dois termos não têm o mesmo valor de hoje em dia. A vida é demasiado curta para a maioria dos homens e a duração de todas as idades da vida é diminuída. O homem do século XVI se faz adulto e se desgasta muito cedo. Entre os povos menos resignados, a violência das paixões traduzem uma pressa de viver.

O apego à vida está incessantemente aguilhoado pelo espetáculo cotidiano da morte. Considera-se normal um casal perder a metade de seus filhos numa tenra idade. Somente os pais que perdem um filho único, esperado arrimo de sua velhice, podem, decentemente, afligir-se em público.

No mundo cristão, a morte reveste-se de grande importância, não tanto pelo fato de marcar o termo da vida terrestre, mas porque abre as portas para a vida eterna. Deste além, o homem forma uma representação demasiado concreta e vive-a intensamente quando ela vem ao seu espírito. Esses chamamentos do além suscitam, em todos os níveis, o desejo mais ou menos constante de sacrificar-se. Há, no ocidental do século XVI uma "predominância do afetivo sobre a inteligência" (R. Mandrou). Esta preponderância existe nas relações sociais como, também, nas tentativas de ultrapassagem.

CORVISIER, André. História moderna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 19-21.

NOTA: O texto "O homem do século XVI: a afetividade" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

O homem do século XVI: o regime biológico do homem

A ação do homem sobre a natureza corresponde a que ele possui sobre o seu corpo. Evidentemente, a alimentação é o melhor meio de sustentar e de fortalecer os corpos. É quase o único que, então, se conhecia, dotado de algum valor. No começo do século XVI, o emprego de estimulantes é muito mal regrado. A medicina e a educação física, em absoluto, nada têm de racional.

- Alimentos e estimulantes. Os tipos de alimentação são menos mesclados do que em nossos dias. O meio geográfico comanda. Pão, cozidos de arroz e de milho reinam sobre domínios completamente isolados. Juntam-se a isso as prescrições religiosas (sem vinho, porco e álcool; a Índia bramânica, sem carne nem peixe de mar). Enfim, a tradição resiste à introdução de alimentos novos e de receitas novas.

Decorre disso, em cada região, uma grande monotonia do regime alimentar. Imaginemos a mesa do europeu desprovida de batatas, arroz, cozido de milho, perus, açúcar, álcool, chocolate, chá, café e a ausência do tabaco. Contudo, não se deveria encarecer tal monotonia uma vez que, a partir do século XVI, o europeu renunciou ao consumo de numerosos produtos naturais: bagas silvestres, “ervas”, caças diversas. Existem, além disso, segundo as estações, diferenças de regimes alimentares de que o europeu perdeu o hábito.

Esta monotonia é quebrada pela irregularidade das quantidades consumidas. Fome e penúria não poupam nenhuma região do globo. Todavia, seus efeitos se atenuaram momentaneamente, na Europa, em conseqüência da diminuição da população consecutiva à Peste Negra. Isso é também verdadeiro nos países onde é praticada a pesca marítima, pois a pesca não está submetida aos mesmos imperativos meteorológicos do cultivo. Acrescentemos ainda a importância dos jejuns e das abstinências (153 dias por ano na Europa anterior à Reforma). Se a alimentação cotidiana é modesta, as festas são acompanhadas de comezainas. Mesmo entre os poderosos, é-se mais sensível à quantidade e à consistência dos pratos do que à sua qualidade.

Por apegados que os homens sejam à sua alimentação tradicional, esta evolui. Vêm as inovações menos da necessidade que da ainda limitada curiosidade dos poderosos do momento (F. Braudel). Mas quando um alimento ou um condimento é difundido, perde seu valor. É este o caso das especiarias cuja busca constituiu um dos aguilhões das Grandes Descobertas e das quais se desviarão os gourmets do século XVIII.

A grande maioria da humanidade tem uma alimentação essencial ou exclusivamente vegetariana. O arroz não presta, então, os mesmos serviços de hoje em dia, pois a segunda colheita, parece, não é ainda praticada. O milho é uma planta “milagrosa”. Cresce em cinco meses, requer apenas cinqüenta dias de trabalho anuais e pode alcançar um rendimento da ordem de 100 por 1.

O pão apresenta inúmeras vantagens. Pode ser conservado. É também o alimento que se torna menos caro. Quase em toda parte, a moagem é um empreendimento industrial, mas os particulares, mui frequentemente, fazem o seu pão. Cozem-no quer em seus próprios fornos, quer num forno banal mediante compromissos. Do mesmo modo, há nas cidades padeiros estabelecidos que fabricam pães feitos de misturas de cereais, de diferentes qualidades: escuro, para os mais humildes; “entre branco e escuro”... O pão branco constitui um luxo, menos raro talvez no século XVI do que no XVIII.

A padaria de panqueca, Pieter Aertsen

A Europa distingue-se das demais regiões do mundo por uma alimentação de carne, por vezes exuberante, mesmo, ao que parece, entre os pobres, antes da metade do século XVI (F. Braudel). Em contrapartida, a carne é bem pouco difundida alhures.

O leite e os ovos são consumidos em toda parte. O queijo é a maneira mais propagada do laticínio. Em toda parte é consumido fresco. Porém, sob sua forma seca, é um meio de conservação dos produtos do leite. É a providência dos marujos.

A dança do ovo, Pieter Aertsen

O peixe das lagoas ou dos rios é pescado onde quer que o possa ser. A Europa cristã multiplica mesmo as lagoas de barragem a fim de a conseguir. O peixe do mar, contrariamente, é negligenciado por grande porção da humanidade. A Europa busca o peixe em todos os lugares, sobretudo nos mares setentrionais: Mancha, Mar do Norte, Báltico e, outra vez, Atlântico norte. Desde a Idade Média fora estabelecida a moda do harenque. O embarricamento começou a efetuar-se no século XV, pelo menos. Nos fins do mesmo século o harenque abandona as costas da Europa. Vai-se procurá-lo mais distante; de onde o aperfeiçoamento de diversos processos de conservação, da organização de transportes. Mas, atingida a Terra Nova, produz-se uma corrida dos marinheiros bascos, franceses, holandeses, ingleses aos bancos de bacalhau.

Os quatro elementos: água. Um mercado de peixes. Joachim Beuckelaer

Manteiga, banha e óleo desempenham ainda um papel limitado no preparo dos alimentos. Propaga-se o uso do sal para a conservação da carne e para relevar a insipidez dos cozidos e das sopas. Do mesmo modo, são como que o desfile na monotonia da nutrição e das receitas. Utilizam-se as mais variadas hortaliças. As especiarias constituem os únicos produtos exóticos utilizados na cozinha. Triunfam com as Grandes Descobertas. O mel não foi ainda destronado pelo açúcar.

Mulher vendendo vegetais, Joachim Beuckelaer

[...] assinalemos que, na Europa, mal começa a difundir-se entre as pessoas mais abastadas o prato, a colher, o garfo, o copo individuais, mais frequentemente a partir de Veneza.

A água não é apenas a bebida do pobre. O problema da água potável não está resolvido em toda parte de maneira satisfatória. Há que se contentar com a que se tem ao alcance nas fontes, nos poços, nas cisternas. Nas cidades os aguadeiros multiplicam-se. Se a Europa Central tem o privilégio de contar com boas fontes, em inúmeros países a água só pode ser consumida depois de fervida. Para a tornar aceitável, a China pratica a infusão do chá.

O vinho é conhecido na Europa inteira. Ele é tanto mais caro na Europa não vinícola quanto menos se sabe conservá-lo. E conquanto ainda não seja objeto de consumição de massa, a embriaguez aumenta. Ao lado da cerveja fraca, geralmente fabricada em casa, a Europa do Norte começa a conhecer cervejas de luxo. Mas esta bebida apresenta o inconveniente de, para a sua fabricação, concorre com o pão, uma vez que ambos os produtos são feitos de cereais. É esta concorrência que explica o êxito da sidra no fim do século XV e no princípio do XVI? É por esta época que, vindo da Biscaia, ela se instala na baixa Normandia. Há muitas outras bebidas fermentadas, mesmo na Europa, onde se utilizam frutos e folhas de árvores silvestres (freixo, seiva de bétula). É o caso, em especial, fora da Europa, das bebidas feitas de sumo de Acer (Canadá), do vinho de palma e do de arroz. A América conhece uma cerveja de milho geminado.

Em princípios do século XVI, a aguardente deixa de ser do domínio exclusivo dos médicos e dos boticários. Da França, ganha a Europa do Norte, depois a do Sul. Fora da Europa, ignora-se amiúde o álcool. Em compensação, a Europa ignora os estupefacientes, o haxixe da Ásia, a coca da América tropical e o tabaco antes de sua introdução em Lisboa, em 1558.

É na Europa que a alimentação parece menos precária e mais energética pois a carne dá a impressão de ser aí difundida, inclusive na mesa do pobre, até o advento da crise econômica da metade do século XVI. Teria isso dado uma superioridade física ao homem europeu? Explicaria seu dinamismo no início dos Tempos Modernos?


O dentista, Johann Liss, e/ou Lucas van Leyden

- Doenças e fraqueza da profilaxia. A saúde pública está frequentemente afetada pelas epidemias. Na verdade, esses flagelos golpeiam sobretudo os pobres devido à subalimentação e a promiscuidade em que vivem.


Pode-se distinguir as doenças de carência causadas pelas fomes e as demais doenças, notadamente infecciosas, encorajadas por aquelas. Mais que os gelos hibernais, que destroem os cereais de inverno nos deixam a esperança de uma colheita de cereais de primavera, os estios úmidos, que reduzem as colheitas, provocam irremediavelmente a penúria. Duas más colheitas, e eis a fome. A catástrofe, as mais das vezes, é local; a impossibilidade dos transportes em massa à grande distância fazem-na considerar como geral. Os pobres, então, não mais encontram pão, tornado demasiado caro, a não ser pelas distribuições feitas nas cidades. O trigo desaparece. O camponês tem, em geral, poucas reservas. Indubitavelmente, é possível incorporar às sopas e aos cozidos toda sorte de coisas. Os mais poderosos e os mais ricos sobrevivem, bem como os mais robustos. Não obstante, em tempos de fome, os ímpetos da mortalidade podem adquirir proporções cruéis, atingindo localmente o terço ou o quarto da população.

Na verdade, as doenças de carência caracterizadas grassam sobretudo quando a alimentação é demasiado rara ou baseada quase exclusivamente num só gênero. Em relação às demais doenças, não se sabe infelizmente o que elas são na realidade. As descrições fornecidas pelos contemporâneos parecem confundir entre elas numerosas espécies de febres e numerosas espécies de doenças que marcam a epiderme. Os médicos hesitam no tocante à interpretação dos sintomas que nos foram relatados. De resto, é possível que as doenças não sejam, hoje, mais as mesmas dos começos dos Tempos Modernos ou não apresentem mais as mesmas formas. Que pensar das febres terçá, quartá, das brotoejas? Difteria, tifóide, varíolas, sarampo talvez constituíssem o seu fundo. Deve-se ajuntar a isso as febres intermitentes. A malária castiga as regiões quentes e úmidas. A Europa não é mais atingida que as outras partes do mundo.

"Os vírus colonizam mais rápido que os homens as regiões novas para eles". A sífilis, que talvez já existisse no Antigo Mundo, sob uma outra forma, triunfa em Barcelona desde as festas que assinalam o regresso de Cristóvão Colombo. Em quatro ou cinco anos conquistou a Europa. Em 1506-1507, atinge a China. A lepra se mantém na Ásia, mas recua bem nitidamente na Europa onde, em princípios do século XVII, terá quase desaparecido. Por causa do uso de roupas brancas ou devido à concorrência de outros vírus?

A doença mais temível continua a ser a peste, então invencível. Ela é o símbolo de todas as doenças do mundo cristão. De fato, existem duas espécies de pestes: a peste pulmonar, pandemia que nada detém (Peste Negra de 1348), e a peste bubônica, transmitida pela pulga do rato. Esta segunda é endêmica no sul da China, na Índia, na África do Norte e durante quase dois séculos, ainda, na Europa onde ressurge sem cessar localmente sob uma forma mais ou menos violenta. Entre os mais atingidos estão os recém-nascidos e as mulheres grávidas.

Na luta contra a peste e outras doenças, a medicina é impotente, quando não prescreve remédios, vomitórios, sangrias que enfraquecem o doente. O empirismo popular é talvez mais eficaz. Mas, provavelmente, é ele que inspirará , com o fito de deter sífilis, a desaparição dos banhos públicos. Leva os doentes a recorrer aos curandeiros. Os reis da França e da Inglaterra tocam as escrófulas (= adenites tuberculosas).

A melhor salvaguarda contra a peste é o isolamento. As autoridades municipais começam a organizar, seriamente, quarentenas, cordões sanitários, redes de informação externa. Mas a luta não ultrapassa o plano local. Todos os que podem abandonam a cidade infectada e se retiram para as habitações rurais. A par de admiráveis devotamentos, a peste suscita abandonos de posto. Mais do que qualquer outro flagelo, ela age sobre os espíritos, exasperando não somente os egoísmos das pessoas, mas também os dos grupos e das classes da sociedade. Suscita verdadeiras loucuras coletivas. Os pobres, em geral, permanecem encerrados nas cidades infectadas. Aí saqueiam e aí morrem. Por onde passa, a peste inspira, igualmente, uma arte mórbida (danças macabras). Desarmado assim diante da morte, o homem pode oscilar do fatalismo à raiva de viver, da prostração à ação. É necessário ainda que suas capacidades físicas lhe permitam esta última.


Triunfo da morte em Clusone, Val Seriana, Itália. Giacomo Borlone de Buschis

- As capacidades físicas. O homem mudou no talhe e na estatura. Podemos compreendê-lo ao estudar as armaduras. Para algumas exceções, como a de Francisco I, quantas outras chocam pela pequenez do talhe, pela estreiteza das espáduas e pelo tórax dos guerreiros.

A uma aristocracia bem nutrida e afeita a um treinamento esportivo opõem-se as classes populares menos bem ou insuficientemente prematuro da musculatura ameaça frenar o crescimento do esqueleto.

Só possuímos características assaz precisas dos indivíduos relacionados com o fim do século XVII e, unicamente, relativas aos soldados da Europa. Essas características deixam adivinhar inúmeras malformações congênitas, deformações devidas a doenças. Todo ferimento deixa traços; o tronco e os membros amiúde ficam tortos. A humanidade do princípio dos Tempos Modernos não apresenta, provavelmente, um melhor espetáculo. Os quadros dos realistas flamengos não ilustram casos muito raros.

Inversamente, esses homens revelam, possivelmente, uma resistência que já não possuímos. Resistência à dor, não embotada pelo emprego de anestésicos; ao calor, ao frio, às mudanças de temperatura, à fadiga. Do mesmo modo, os corpos são rapidamente gastos. Muitos homens de quarenta anos mostram-se decrépitos e são considerados como anciãos. A diminuição da visão é irremediável. As pessoas abastadas se retiram da vida ativa bem mais cedo do que hoje. As mulheres já não podem dar à luz muito antes de atingir a menopausa.

Os indivíduos reagem diferentemente a tais provas impostas a seus corpos. Alguns homens desistem frente às provas, outros lutam. Prostração e displicência, às quais crenças fatalistas podem fornecer uma justificação a posteriori, parecem imperar sobre a grande maior parte do mundo e conservam a fraqueza física e fisiológica. Contrariamente, quase sob todos os climas e em quase todos os universos religiosos, encontram-se homens em maior ou menor número que exigem muito de seus corpos, não só porque podem fazê-lo, como porque são a isso constrangidos. O esforço cotidiano do coolie chinês adulto exige desde a tenra idade a mobilização de toda a energia do homem. Há, igualmente, inúmeras atividades especializadas. O tecelão adapta o corpo à sua profissão, como o cavaleiro ao seu cavalo. Adquirem atitudes bastante particularistas que fazem com que seus corpos então se diferenciem muito mais do que nas sociedades evoluídas atuais.

Para se libertar da natureza, deve o homem impor-se esforços físicos. Deve considerar seu corpo como um instrumento e como um motor. Deve moldá-lo em tal objetivo e aceitar em consequência a deterioração e o desgaste. Assim, para explicar a maneira de ser e as atitudes do homem, é necessário fazer com que intervenham fatores afetivos e morais.

CORVISIER, André. História moderna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 15-19.

NOTA: O texto "O homem do século XVI: o regime biológico do homem" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

terça-feira, 13 de maio de 2014

O homem do século XVI: o homem face à natureza

- O homem face ao clima. A geografia física do globo não mudou em suas grandes linhas. 

Se as modificações das margens e dos cursos de água resultam, desde o século XVI, mais da ação dos homens ou de sua deserção que dos fenômenos naturais, as variações do clima quase não podem ser negadas. Uma certa concordância entre diversos índices (crônicas dos contemporâneos, flutuações das geleiras, exame dos anéis de crescimento das árvores) autoriza a reconhecer que, depois de longuíssimo período de temperaturas médias relativamente brandas, a Europa conhece, na segunda metade do século XVI, uma tendência ao resfriamento que se prolonga até o meio do século XIX (“pequena idade glacial”).

O homem é, certamente, mais afetado do que nós pela alternância das estações que ritma o jogo dos elementos naturais, sobre os quais ele tem muito menos poder de ação do que hoje.


Primavera, Pieter Brueghel, o Jovem

Na maior parte dos países temperados, no inverno, a atividade se restringe às horas que escapam às trevas exteriores perigosas, e mesmo interiores paralisantes. No verão, ao contrário, as longas jornadas são consagradas aos trabalhos dos campos, cujo resultado condiciona a subsistência do ano todo, e aos da oficina. Mas igualmente importantes são as meias-estações, a primavera que prepara a colheita e o outono durante o qual se põe em ordem o quadro de frutos silvestres, produtos de caça, lenha para aquecimento, vimes...


A colheita do feno, Pieter Brueghel, o Jovem

Sob outros céus, a alternância das estações toma outras formas: estação seca e estação chuvosa nos países de monções ou mesmo nos países mediterrâneos.

- O quadro de vida. A habitação mudou muito menos do que parece pois, hoje, apenas subsistem da época as casas mais sólidas, sobretudo as construídas de pedra ou de tijolos. Mas estes materiais são, de maneira geral, empregados tardiamente e, no século XVI. Paris continua a ser ainda uma cidade de madeira. Ou melhor, somente o rés-do-chão é de pedra. O incêndio de Londres em 1666 recorda que o emprego da madeira era aí ainda bastante difundido no século XVII. Apenas as igrejas, os conventos, as municipalidades são construídas de materiais duros. Mesmo nas cidades, a cobertura é feita amiúde de sarrafos ou de colmo.

Nas regiões em que é abundante, a madeira constitui a totalidade do edifício (Escandinávia, Rússia). Alhures, o modo de construção mais propagado associa a madeira e o adobe, ou seja, com tabique ou armação de madeira na Europa Ocidental e com adobe e bambu no Extremo Oriente. Uma estrita regulamentação da construção existe em cidade. Subsiste, todavia, certa fluidez no agrupamento da casa. A aldeia Lorena fechada não datará senão do século XVII. No interior dos quarteirões urbanos conservam-se jardins.

Nas cidades, a casa pobre, baixa, compõe-se, em geral, de duas peças, o “cômodo da frente” e o “cômodo traseiro”. A casa burguesa, que permanecera estreita, aumentou verticalmente e aloja inúmeras famílias. A divisão dos níveis sociais se propaga em altura: loja ou oficina no rés-do-chão, residência do mestre no andar de cima e, no alto, quartos dos operários, sótão habitados. No campo, o habitat associa estreitamente homens e animais.


Hora da refeição no campo, Pieter Brueghel, o Jovem

A terra batida que, salvo exceção, constitui o piso das habitações rurais, recua, nas cidades, diante do ladrilhamento. O parquete só timidamente aparece nas casas dos mais ricos e não se difundirá senão no século XVII. Em Paris continua-se ainda a juncar de palha o piso dos aposentos, no inverno, e de ervas recém-cortadas, no verão. A Europa conhece uma inovação com o vidro branco que se propaga nas janelas no século XVI. O taipal maciço é encontrado ainda, especialmente nos campos.

O aquecimento só existe, na verdade, nos países onde o inverno é rigoroso. Na China do Norte, na Rússia, o camponês deita com a família sobre o fogão de tijolo. A Europa do Noroeste conhece a chaminé de certa dimensão, que se torna um elemento decorativo entre os ricos. Em Paris, os pobres se aquecem com o “braseiro” de tijolo utilizado na cozinha. Os países mediterrâneos conhecem apenas a braseira. Na Europa Central e na Oriental, o fogareiro de tijolo, depois de faiança, é posto no cômodo comum. O aquecimento é o privilégio de um único aposento, o que implica, no inverno, uma vida concentrada num pequeno espaço.

O mobiliário, em geral, não é menos rudimentar. O uso da mesa alta distingue a Europa da maioria das demais partes do mundo onde as pessoas se acomodam em redor da mesa baixa, sentadas ou deitadas no chão. Na Europa Ocidental, o luxo do mobiliário consiste em cortinados, cobertas de cama, tapeçarias, almofadas, e, a um nível mais elevado, em móveis como leites com dossel, cofres esculpidos, mais tarde incrustados e, “gabinetes”, ancestrais das secretárias. Mas, a não ser nos castelos de alguma importância, este mobiliário se concentra no cômodo comum e, amiúde, único. A intimidade e a comodidade são quase ignoradas. As privadas são desconhecidas. A iluminação, durante muito tempo, é uma necessidade de Estado ou um luxo. Não obstante, o lustre ou o modesto castiçal se difundem. Esta “vitória sobre a noite” se colocaria na Europa no século XVI (F. Braudel).

O vestuário da grande maioria da humanidade permanece invariável no que concerne ao tecido e à forma empregados, como seja o quimono no Japão ou o poncho no Peru. Também quase não varia entre os países da Europa, homens ou mulheres, antes do século XVIII. A escolha do tecido é fixada segundo os recursos do país, o hábito da vestimenta e a categoria social.

A uniformidade constitui a regra, não apenas nas roupas de trabalho, mas também nos trajes de função. Destarte, na Europa Ocidental e na Central, o traje continua a ser o signo que distingue os letrados: eclesiásticos, agentes da Universidade (nisto compreendidos os médicos) e os juízes. O uso da vestimenta longa impõe um comportamento grave e comedido a homens ainda próximos da natureza.

Entretanto, o traje de corte, que imita bem o traje da cidade, torna-se a presa da moda. Isto a tal ponto, que tudo que se pretende permanente – Igreja – monarquia – se aferra ao uso de vestes anacrônicas cuja forma no conjunto, está fixada, no século XVI. Esta vitória da moda, não é ela o sinal de uma vitória sobre os imperativos do modo de vestir?

- Meios de ação do homem sobre a natureza. Localmente, o homem já possui forte domínio sobre a natureza. Mas o estado de seus conhecimentos biológicos e de sua técnica, a energia motriz de que pode dispor não lhe permitem tentar outra coisa senão uma ordenação prudente e limitada das condições naturais.

O universo fitológico difere sensivelmente do nosso. Salvo em algumas regiões da Ásia, da África e da América, o homem cultiva, no início do século XVI, um espaço bem menor do que o fará no século XIX. Na Europa, um lugar apreciável é deixado ou incult. Pelo menos a metade está ocupada pelas florestas, matas de corte, charnecas, baldios, terras ingratas que o homem, à falta de meios, não pode arrotear nem manter cultivadas, que ele utiliza como terrenos de percurso (inclusive as florestas) ou das quais retira recursos indispensáveis: lenha, forragem, turfa, frutos silvestres, caça etc. Ocorre o mesmo no Extremo Oriente onde os homens mais evoluídos se concentram nas únicas terras que permitem uma cultura permanente e abandonam o restante, colinas e montanhas, a populações primitivas.

O homem entrega-se à clemência do céu. Entretanto, às vezes, ele assume encargos. Na cristandade, cultiva-se a vinha até na Inglaterra e na Noruega para se ter vinho de missa, apesar de não haver colheita todos os anos. Este desafio à natureza, é ele assim tão excepcional?

O homem pouco atua sobre a fertilidade do solo. As terras, em todos os países de cultivo manual, são estrumadas, o mais frequentemente, como na China, pelo adubo humano. Além disso, as lavras são pouco profundas. Os próprios animais as estrumam quando permanecem sobre os restolhos. Para reconstituir a fertilidade do solo, o homem deixa a terra em repouso. Ao incult permanente acrescenta-se um incult temporário, não sempre periódico. Quando aumentam as necessidades alimentares, arroteia-se.

A permuta das espécies já foi considerável entre as diversas partes do Antigo Mundo, mas não se realizou nada comparável em rapidez às transformações produzidas pela descoberta do Novo Mundo. Imaginemos uma Europa onde faltem batatas, milho...

O universo animal é, provavelmente, mais rico do que hoje em espécies domesticadas. Até aí o homem interveio no equilíbrio destas. Entretanto, o urso frequenta, ainda, as montanhas e o lobo, os campos da Europa Ocidental; estão, contudo, em recuo. É menos assombroso ver o homem transportar seus animais domésticos de um a outro continente. Isso levará à América o cavalo, e à Europa o peru e a galinha-d’angola... Alguns animais domésticos seriam irreconhecíveis ao home do século XX. O porco permanece, em geral, pequeno (40 a 60 kg), veloso e armado de defesas. Somente as vacas, encontradas na Índia atualmente, podem dar uma ideia do que eram na Europa.

As civilizações não conservam as paisagens naturais senão nos lugares que negligenciaram. O agricultor do Extremo Oriente, do mesmo modo que o da Europa, faz impiedosa caça à arvore em seu território. Desajuizadamente, ele destrói algumas vezes certas espécies animais e vegetais. Tudo isso exige uma organização coletiva minuciosa e constrangedora para a conservação do terreno, mas raramente empreende uma modificação deliberada da paisagem. Todavia, nas margens do mar do Norte e nos deltas perigosos, a luta defensiva contra o mar tende a tornar-se uma reconquista. É necessário grande arrojo para mobilizar nesse objetivo as magras fontes de energia e as técnicas da época.

As fontes de energia motriz são fontes imediatas, emprestadas ao que se movimenta ou é movido de maneira natural.

O homem, de início, emprega a própria força. A tal respeito, não o faz melhor presentemente. Todas as máquinas elementares estão inventadas. As grandes civilizações do Antigo Mundo conhecem a alavanca, a roda, a polia, o cabrestante, o bolinete, o guindaste, os pedais, que multiplicam as forças humanas, naturalmente débeis.

A força animal é, ainda, mais frequentemente utilizada para transportar do que para puxar ou movimentar as máquinas. Ainda quanto a isso, pelo menos no Antigo Mundo, o homem não o fará muito melhor. O cavalo continua a ser um animal de preço, apanágio dos nobres, dos guerreiros ou dos agricultores de maiores posses das regiões mais fáceis de cultivar.

É graças ao cavalo e ao dromedário que o homem pode vencer a distância, multiplicando por cinco a extensão da etapa cotidiana. Ele, contudo, não venceu o peso. À falta de estradas praticáveis, o transporte permanece aleatório e limitado. Uma carroça atrelada não transporta muito mais que meia tonelada, e as despesas são enormes. Trata-se, portanto, de transportar a uma distância razoável apenas mercadorias leves, caras.

Em terra, o vento não é utilizado senão para mover moinhos. O mesmo ocorre com o motor hidráulico. Nascido das necessidades da moagem, é sempre chamado de moinho. Mas não aciona unicamente mós. Pode-se, pois, considerar que, no século XVI, ele se tornou a principal fonte de energia motriz aplicada na indústria.

A navegação se serve das únicas fontes de energia motora natural (remos, velas). Mas continua a ser um meio de comunicação quase terrestre: fluvial ou costeiro, de resto imbatível, lá onde for possível. A travessia direta dos oceanos e dos mares de alguma amplidão é sempre uma aventura. Ela só começa a ser encarada pelos europeus durante o século XV.

O homem do século XVI não pode considerar os combustíveis como uma fonte de energia. Não obstante, faz uso da madeira e, acessoriamente, na China do Norte e num ponto ou outro da Europa (região de Newcastle, de Liège), do carvão de pedra, não apenas com o fito de aquecer-se, mas para fins industriais: metalurgia, evaporação do sal... É no respeitante às fontes de energia que, provavelmente, a inferioridade das civilizações com relação às nossas é mais nítida.

Assaz paradoxalmente, a técnica é menos atrasada. O domínio da água conhece canais, irrigação, drenagem, bombas de elevação, eclusas. Sem dúvida, muitas ferramentas são feitas de madeira. Entretanto, a ferrumentária do aço, que permite furar, polir (arco de puz, serra, broca) já está sendo mais ou menos empregada. Falta-lhes somente a força. A necessidade de metais preciosos, ou mesmo simplesmente úteis, levou o homem, desde longa data, a ousar a exploração dos recursos do subsolo. Certamente, não é possível comparar a mina de carvão do século XVI com a do século XX. Todavia, tudo aí está: poços, guindastes, galerias, vagonetes, bomba d’água, ventiladores.

A técnica permitiria, pois, ao homem exercer considerável domínio sobre a natureza, se ele dispusesse da energia necessária. Para remediar esta insuficiência, ele se mostra engenhoso em multiplicar as próprias forças. A espera de poder pôr a serviço de sua técnica consideráveis fontes de energia, o homem revela, em suas relações com a natureza, uma paciência infinita. A do europeu do século XVI é, provavelmente, da mesma ordem da do chinês do século XIX. Na verdade, sua técnica e suas fontes de energia motriz não dão ainda ao europeu uma superioridade esmagadora sobre o chinês. Se ele se considera o piloto da humanidade, o é por motivos outros, especialmente espirituais.


CORVISIER, André. História moderna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 11-15.

NOTA: O texto "O homem do século XVI: o homem face à natureza" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.