"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Iconografia: Trabalhadores, despertai!

Trabalhadores, despertai!, V. Serov

O quadro acima foi feito depois da Revolução Russa de 1917, quando os comunistas já estavam no poder. Nessa época, como em toda a história da União Soviética, o Estado controlava rigorosamente a produção cultural. A arte estava a serviço do regime para legitimar o poder estabelecido. Artistas e intelectuais dissidentes eram perseguidos. O denominado "realismo socialista" na arte era promovido. O quadro exalta a participação do operariado na Revolução Russa. Era em nome dos trabalhadores que o Partido Comunista governava a União Soviética.

PEDRO, Antonio [et al.]. História do mundo ocidental. São Paulo: FTD, 2005. p. 384.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

História e ficção ou a realidade aos sonhos

O poeta Anacreon com suas Musas, Norbert Schrödl

[...] a história e a literatura tiveram uma origem comum nos primórdios remotos da própria linguagem, quando o xamã das comunidades fazia vibrar, com seu canto dançado, toda a memória mítica tribal, armazenada em unidades rítmicas, evocada e revivida em espetaculares coreografias coletivas. O modo pelo qual esse amálgama original vai aos poucos se diferenciando, se decompondo em formas autônomas, pode ser vislumbrado já na evolução das Musas da mitologia grega. De divindades inicialmente associadas à inspiração divina, passaram, depois, a ser sucessivamente identificadas com a memória, a música e a poesia. Só bem mais tarde vieram a ser, cada qual dessas nove divindades, assimiladas a formas artísticas particulares. Desde esse momento, a separação dos modos de elaboração das linguagens se tornou como que um vício crescente da nossa cultura, em consonância com a contínua diferenciação e segregação dentre os grupos de homens no interior da sociedade.

Calíope ensinando Orfeu, Alexandre-Auguste Hirsch
(Musa da Poesia Épica)

Já o próprio Aristóteles, na sua Poética, ressaltava a importância desse desmembramento das formas comunicativas, nele introduzindo entretanto uma notável originalidade, emanada do advento perturbador do discurso leigo na cultura. Afirma ali o filósofo: "Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser de história, se fossem em verso o que eram em prosa) - diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e o outro as que poderiam suceder".

A Musa Clio, Pierre Mignard
(Musa da História)

[...] Anteriormente, na cultura presidida pelas Musas, o padrão de fundo, envolvendo todas as linguagens, era o mito. Ele tornava toda narrativa histórica numa reedição circular das condições postas nas origens e toda narrativa ficcional num enredo enleado com os temas eternos da mitologia. Sua lei, a da cultura subordinada às Musas, era a da eterna repetição, da imaginação engastada no ritmo, do enlevo pela sedução mística da música, viesse ela da lira de Apolo ou dos tambores e flautas de Dionísio. "Sua voz incansável flui de suas bocas (de Musas) em entonações prazerosas, e essa harmonia enfeitiçadora, na medida em que se difunde, leva sorrisos ao palácio de seu pai (Zeus)...", reza a tradição. O próprio tempo obedecia à cadência irresistível dessa música e a marcha dos eventos se compunha dos desdobramentos contínuos, repetitivos, dessa pulsação cósmica. É por isso que essas deusas cantantes "sabiam tudo o que é, o que foi e o que será..."

Erato e sua lira, John William Godward
(Musa da Poesia Erótica)

Com o advento da cultura leiga, torna-se impossível, justamente, "saber tudo o que é, o que foi e o que será". Em compensação, abre-se uma área virgem na imaginação, onde os homens podem especular sobre o que poderia ter sido. Esse é o privilégio exponencial da literatura em chave leiga, assim como a irredutibilidade das contingências é o preço pago para a instauração da narrativa histórica, como uma prática regida por esse mesmo diapasão leigo. Pode-se dizer que, ao se separarem, uma ficou presa no labirinto do aleatório e a outra se safou liberta, levando nas mãos todas as chaves de portas que não existem.

As Musas: Clio, Euterpe e Thalia, Eustache Le Sueu
(Clio, Musa da História, Euterpe, Musa da Poesia Lírica e Thalia, Musa da Comédia)

Postas assim as coisas, contudo - ao contrário da conclusão a que nos podem induzir as aparências -, a história e a ficção, mais do que definirem diferentes modalidades da linguagem, estabelecem antes diferentes moralidades do discurso. Isso devido ao ativismo ético que se tornou a quintessência das culturas gnósticas, como a nossa, essa compulsão para a ação como recurso compensatório para o desencantamento do mundo e a disciplinação do corpo para o trabalho. Kafka percebeu com cristalina clareza o desequilíbrio desse dilema moral da nossa cultura. "Ninguém se pode dar por satisfeito com o Conhecimento puro e simples, antes devendo esforçar-se por agir de acordo com ele; e como a força para tanto não lhe é de igual modo fornecida, vê-se a criatura na contingência de consumir-se, arriscando-se a mesmo assim não obter a força necessária, conquanto não lhe reste senão essa possibilidade..."

As Musas Melpomene, Erato e Polyhymnia, Eustache Le Sueur
(Melpomene, Musa da Tragédia, Erato, Musa da Poesia Erótica e Polyhymnia, Musa da Poesia Sacra e Geometria)

Há em particular uma parábola de Jorge Luis Borges, denominada "História dos Dois Que Sonharam", que procura ilustrar essas diferentes moralidades, fazendo-as reverberar em sentidos opostos, no âmago de um contexto gnóstico espesso. A ambiguidade se manifesta já nas raízes da narrativa, Borges a atribui como transcrição literal ao historiador árabe El Ixaqui, mas indica ao mesmo tempo que ela provém de uma fonte ficcional, o livro das Mil e uma Noites, no qual ela seria, o que é naturalmente falso, a história correspondente à 351ª noite.

Polyhymnia, Charles Meynier
(Musa da Eloquência)

Trata-se da estranha história de um homem pio e generoso, chamado El Magrebi, que vivia no Cairo. El Magrebi era muito rico, mas também benevolente, o que lhe consumiu toda a fortuna, exceto a casa que herdara do pai. Sonhou então uma noite com um homem gordo, que tirando uma moeda de ouro da boca lhe falou que sua fortuna estaria na cidade de Isfajan, na Pérsia. Acatando a determinação do sonho, El Magrebi enfrentou mil dificuldades e riscos, até chegar à distante Isfajan. Chegou tão exausto que caiu em sono profundo no pátio de uma mesquita. Naquela noite um bando de ladrões atravessou a mesquita para roubar uma casa ao lado. Afugentados pelos moradores e pela polícia noturna porém, eles fugiram passando de novo pela mesquita, onde a polícia encontrou o pobre El Magrebi.

Terpsichore, Giovanni Baglione
(Musa da Dança e do Canto)

Sendo a polícia incapaz de provar sua culpa ou ele incapaz de provar sua inocência, foi espancado quase até a morte, ficando desfalecido por dois dias. Quando acordou, o capitão de polícia lhe perguntou quem era e o que fazia na cidade. Ele contou a história do sonho. O capitão riu até se dobrar e depois lhe disse: "Homem desatinado e ingênuo, três vezes eu sonhei com uma casa na cidade do Cairo e cujo fundo existe um jardim e no jardim um relógio de sol e depois do relógio uma figueira e depois da figueira uma fonte, e debaixo da fonte um tesouro. Não dei o menor crédito a essa mentira. Tu entretanto, filho de uma mula com um demônio, erraste de cidade em cidade guiado apenas pela fé em teu sonho. Que eu não volte a te ver em Isfajan. Toma essas moedas e vai-te".

Thalia, Giovanni Baglione
(Musa da Comédia)

El Magrebi voltou ao Cairo e sob a fonte no jardim da sua casa, que aparecera no sonho do capitão, encontrou o tesouro anunciado, Pode parecer impróprio que a história pessoal de um único homem, que não interferiu no destino dos povos, seja o assunto de um historiador. Mas toda narrativa é atravessada por uma intenção moral. No caso desta, tanto a moralidade da ficção quanto a da historiografia ficam expostas. El Magrebi, o sonhador obstinado, se parece com o fantasma inocente do literato, enquanto o capitão, que ri dos sonhos dos outros e dos seus próprias, insinua as feições do espectro cínico do historiador. Se reparamos, Borges os neutraliza porque é filho dos dois, suas histórias não têm heróis.

Apolo, Deus da Luz, da Eloquência, Poesia e Artes com Urania, Charles Meynier
(Urania, Musa da Astronomia e Astrologia)

Nicolau Sevcenko. História e ficção ou a realidade aos sonhos. In: YASBEK, Mustafa (Org.). Ecos do tempo: histórias da história. São Paulo: Clube do Livro, 1988. p. 149-153.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

A Criação

A Criação, Diego Rivera

A Mulher e o Homem sonhavam
que Deus os estava sonhando.
Deus os sonhava enquanto cantava e agitava seus
maracás, envolvido em fumaça de tabaco.
E se sentia feliz, e também estremecido pela
dúvida e pelo mistério.
Os índios Makiritare sabem
que, se Deus sonha com comida, frutifica e dá de
comer. Se Deus sonha com a Vida,
nasce e dá de nascer.
A Mulher e o Homem sonhavam
que no sonho de Deus aparecia
um grande ovo brilhante.
Dentro do ovo, eles cantavam, e dançavam,
e faziam um grande alvoroço,
porque estavam loucos de vontade de nascer.
Sonhavam que no sonho de Deus
a alegria era mais forte que a dúvida e o mistério,
e Deus sonhando os criava, e cantando dizia:
- Quebro este ovo, e nasce a Mulher, e nasce
o Homem, e juntos viverão e morrerão.
Mas nascerão novamente.
Nascerão e tornarão a morrer,
e outra vez nascerão.
E nunca deixarão de nascer,
porque a morte é uma mentira.

(Eduardo Galeano. Extraído de Memórias de Fogo)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

O legado da civilização mongólica

Gengis Khan e emissários chineses, Sayf al-Vâhidî. Hérât

Contrastando com os impiedosos massacres dos inimigos, deve-se apontar, desde logo, um marcante legado dos mongóis a Pax Mongolica. Esta Pax possibilitou, com relativa segurança, o desenvolvimento de atividades mercantis do Oriente ao Ocidente através de regiões e povos os mais diversos. Com os viajantes e com as mercadorias seguem também as ideias e invenções. A presença de mercadores venezianos em Pequim, de emissários mongóis em Bordeaux e Northampton, de cônsules genoveses em Tabriz, de artesãos franceses em Caracórum, de agentes fiscais árabes na China "são uma prova de que o mundo do século XIII estava-se contraindo. Neste sentido, o livro de Marco Pólo era algo mais que um catálogo de maravilhas: simbolizava o amanhecer de uma nova era." Observe-se que, ao lado das rotas continentais que correspondiam à antiga rota da seda, os mongóis reabriram a via marítima, a rota das especiarias. Grousset insiste na importância das rotas mundiais mantidas pelos mongóis: "A reunião da China, do Turquestão, da Pérsia e da Rússia em um imenso império regido por um yassaq severo, sob princípios atentos à segurança das caravanas e tolerantes para com todos os cultos, reabria por terra e por mar as rotas mundiais obstruídas desde o final da Antiguidade."

Viajantes e missionários que, usufruindo da Pax Mongólica, percorreram com segurança a Ásia e registraram o que viram, deixaram uma notável contribuição que iria frutificar nas concepções e atuações dos intrépidos navegantes lusitanos e espanhóis que marcaram com os Descobrimentos o início dos tempos modernos.

Hambly chama a atenção para o novo conceito de imperium surgido com a vida e as conquistas de Gengis-Khan e que cativou a imaginação dos homens, embora a impressão inicial ante o fenômeno fosse de terror. A lembrança desse império "ia ser tão penetrante e tão desafiante para as gerações posteriores como a lembrança do reich de Carlos Magno o foi para a Europa Medieval." "Jamais império tão vasto fora construído; e jamais a teoria do império universal tinha sido formulada com tanta força."

Podemos aferir a profunda impressão que a grandiosidade do império mongol causou na posteridade, especialmente no continente asiático, pelo fato de que "depois da queda do Império Mongol todos os chefes da Ásia Central procuravam, se pudessem, legitimar seu mandato proclamando-se descendentes de Gengis-Khan..."

Gernet aponta as diversas contribuições que da Ásia Oriental chegaram à Europa Medieval e cuja transmissão foram favorecidas pelas cruzadas dos séculos XII e XIII e pela expansão do Império Mongol nos séculos XIII e XIV: "A simples enumeração dos contributos da Ásia Oriental para a Europa Medieval nesta época - influências diretas ou invenções sugeridas pelas técnicas chinesas - basta para revelar a sua importância." 

Miquel lembra o legado que o Islam recebeu da Ásia Central e da China e que acrescentou às heranças iranianas: "somente alguns exemplos: mongol, o hábito de considerar o território como patrimônio teoricamente coletivo e indiviso do clã-Estado; mongol, a eleição do chefe pela assembleia dos príncipes; mongóis, certos atributos ou sinais exteriores do poder..."

Um legado interessante dos mongóis situa-se no campo da escrita: o alfabeto mongol, supra-estudado, encontra-se na origem do alfabeto mandchu. Février sublina: "o aspecto exterior da escrita mandchu é extremamente próxima do aspecto da escrita mongol." Diga-se de passagem que o alfabeto mandchu foi elaborado sob a orientação do imperador mandchu Nurhaci (1599).

A escrita kalmuk, criada em 1648 para uso dos kalmuks estabelecidos na Rússia, tem também sua inspiração no antigo alfabeto mongol.

[...] a ocupação mongol da China deixou o antigo império extremamente enfraquecido e com sérios problemas internos. Os mongóis não afetaram a milenar e avançada civilização chinesa: ao contrário, reforçaram velhas tradições alimentando uma xenofobia latente. A instalação da dinastia Ming implicou um esforço no sentido de apagar o hiato da dominação mongólica e ligar a nova China ao mais remoto passado nacional "elaborando uma civilização essencialmente tradicionalista." Note-se, contudo, a proteção ao budismo por Hong-wu que, lembrando-se do tempo em que vivera como bonzo num mosteiro, "não atendeu aos desejos dos letrados confucianos..."

As civilizações do Extremo Oriente, em virtude da queda do Império Mongol, isolar-se-iam num hermetismo multissecular, cortando as relações com o Ocidente. "Os europeus só reatariam tal contato muitas gerações mais tarde, na aurora do século XVI, com os périplos dos navegadores portugueses. Da grande aventura mongólica sobravam apenas lembranças aviltantes para a nova China, mas em nossos museus ficaram seus admiráveis desenhos de cavaleiros e animais, onde se aliaram, por um instante, a graça chinesa e o realismo mongólico."

GIORDANI, Mário Curtis. História da Ásia anterior aos descobrimentos. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 224-26.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Eleições do ódio

Por Orides Maurer Jr.*

Proclamação da República, Benedito Calixto

“Para os navegantes com desejo de vento, a memória é um porto de partida.”
(Eduardo Galeano)

Pela primeira vez na história política da sociedade brasileira uma eleição presidencial deixou marcas profundas de ódio, rancor e acirrou os ânimos de toda a sociedade. Por que? Porque nossa tão cantada “democracia” é mero palavrório. A ditadura militar implantada em 1964 e parcialmente finalizada em 1985 foi um momento histórico onde as massas – depois das manifestações pró-Diretas-já - foram alijadas de toda participação popular. As primeiras eleições para presidente pós-ditadura ocorreram ainda através do voto indireto dos congressistas e muito do entulho da legislação anti-democrática permanece, incluindo práticas de tortura.

Historicamente, nosso país se “uniu” para manter as fronteiras nacionais, mesmo tendo alijado de suas terras os povos indígenas, massacrado comunidades quilombolas e pobres. Hoje vemos ressuscitarem movimentos nazi-fascistas como ‘O SUL É MEU PAÍS”, “A RAÇA PAULISTA” e assemelhados sem fundamentação científica, meras cópias de uma das ideologias mais trágicas da história da humanidade. Pobre país o nosso. Continuamos a pagar um preço alto em termos civilizatórios por temos tido uma ditadura que estuprou, torturou, matou e massacrou uma sociedade inteira em nome da ideologia da “ordem e do progresso”.

Temos uma formação étnico-cultural de várias matizes: indígenas, africanas, europeias e, mais recentemente, asiáticas. Formação essa que, em toda a história brasileira, sempre foi escravizada, vilipendiada e manipulada pelas elites.  Na Colônia eram os portugueses; no Império, os britânicos; e na República, os norte-americanos, os europeus e os interesses de todos os bancos internacionais, do agro-negócio, mídias podres e partidos políticos que defendem todos os interesses dos grupos citados.

E as eleições de outubro de 2014 trouxeram à tona a questão do “outro” e os velhos ódios conhecidos em outras plagas que aqui também se aportaram e ganharam força nessa disputa eleitoral. Veja-se, por exemplo, a atual composição político-partidária do Congresso eleito: é o mais conservador e fundamentalista em toda a história republicana, com pautas que colocam o país fora da rota do mundo civilizado.

E, somando-se a todos esses fatores, continuamos vivendo e nos aprofundando numa crise ética que vem desde os tempos coloniais, com escândalos de corrupção, crise sócio-econômica, resultado de um modelo imposto pelos donos do capital internacional que não visa dar conta aos anseios de antigos e novos movimentos sociais e populares.

Um quadro de confronto – sem visão crítica da verdadeira história brasileira - é extremamente perigoso para o esfacelamento de toda a sociedade. A história já demonstrou que todas as sociedades que passaram por uma guerra civil ficaram com feridas abertas até o presente. Um exemplo clássico é a Guerra Civil Norte-Americana, ocorrida na segunda metade do século XIX, cujas sequelas ainda se fazem presente no país que é considerado uma democracia estável e uma das potências mundiais.

Um pequeno grupo fundamentalista, racista, homofóbico, misógino coordena e insufla multidões através das câmaras legislativas estaduais e federais e senado, de seus púlpitos, de suas redes de rádio e TV, jornais, panfletos, revistas, redes sociais... e, por termos uma sociedade manipulada, com pouco grau de senso crítico – haja vista que a própria população não reivindica uma Educação pública de qualidade -, e do mesmo modo para outras questões (saúde, segurança),  acaba buscando refúgio e aceitando as “mentiras” que parecem “verdades”.

Aí mora o perigo. O perigo de jogar irmão contra irmão, Estado contra Estado, levando a uma guerra generalizada e de consequências catastróficas para toda a sociedade, acirrando ainda mais os ânimos. Há outras soluções possíveis. E a principal passa pelos interesses de toda uma sociedade e não de políticos – e partidos, instituições... – com interesses pessoais.

Uma sociedade justa, humana, fraterna, solidária deve ser a meta de todo povo brasileiro. Não podemos ficar brigando por motivos vaidosos e mesquinhos. O grande inimigo da nação não é a PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. São os grupos acima citados que governam o país através de seus representantes políticos. A maioria deles eleita pela população. O que fazer? Apenas destituir um Presidente é a solução? Vide o último presidente deposto: Collor.

Por sermos um país de dimensões continentais e de formação étnico-cultural tão diversa e falarmos a mesma língua deveríamos ser o grande exemplo de democracia e convivência pacífica e solidária para o mundo civilizado. E não o contrário.

Que a história seja passada a limpo!

Que prevaleça o bom senso!


* Orides Maurer Jr. é historiador e autor dos blogs "História e Sociedade" e "Private Life".

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Obsidiana

Sacrifício humano. Codex Magliabechiano

A obsidiana é um mineral que, raspado, fornece um pó medicinal para a cura de ferimentos. Lustrado, transforma-se num luminoso espelho. Afiado e cortado, passa a ser uma poderosa arma. Essa pedra era muito conhecida pelos habitantes das cidades e aldeias que faziam parte de algumas das civilizações indígenas do continente americano.

Relato envolvente e hipnótico, Obsidiana mostra um europeu deparando-se com a morte nas terras distantes do além-mar. O choque entre dois universos incapazes de se entenderem reciprocamente. O homem encarado como ser divino aos olhos de outros homens. Os europeus observados com fascinação pelos povos não menos fascinantes do continente recém-descoberto.

* * *

"Observem os curiosos leitores se não é mesmo necessário ponderar sobre isto que aqui escrevo: que homens já existiram no universo que tal atrevimento tivessem?"
 [Bernal Díaz del Castillo, Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva España]

* * *

Ao pé desta pirâmide contemplo agora o fim de toda a história. Foi daqui mesmo que eles nos fizeram ver, pela primeira vez, a imensidão da cidade armada sobre os pântanos. Daqui pude ver como fervilhava o inferno de pedras brancas e alaranjadas que essa gente construiu entre os canais. Cidade de águas e de torres. Daqui do alto foi que eu e os meus estendemos as mãos na direção dos horizontes incrustados de plumas, de flores, de sangue escurecido, de montanhas fumegantes, à luz de um ar tão limpo como não recordo termos deixado atrás.

Como deuses eles nos receberam por toda parte. Aportamos e durante toda a escalada eles nunca ousaram encarar nossos líderes frente a frente, curvando-se como o costume diante de seu imperador de barbas ralas. Vi como uivavam de pavor diante de nossos cavalos, prolongamento de corpos de cristãos. Vi como gemiam enquanto observavam os olhos amarelos de nossos cães acorrentados. Esperavam por nós para entregar o império; escancararam todas as portas. Nenhum rei mouro teve franqueado o uso do ouro que eles depositaram em nossa confiança, entregando de bom grado o pescoço, quando o pedíamos, ao mesmo braço que abarrotava de tesouros os porões dos navios de nossa esquadra.

Boca e garganta secas. Um cão que ladra, não dos nossos. O sangue já pode ser observado pelos canais. Agora os cristãos estão diante deles por toda parte. Mas esses seres combatem como feras acuadas desde a matança na festa do Pátio Sagrado. Combatem a cruz de Nosso Senhor. Repudiam a servidão ao imperador que está além do vasto oceano e dos altos vulcões. Agora nos entregam à sede dos seus ídolos escondidos no seio destes templos com ar morno de matadouro.

Quero cuspir e não consigo. Um deles se dá ao trabalho de desferir uma pancada em minhas pernas e volta mais uma vez a me ameaçar com sua bengala dourada no ar. Não deseja que fiquemos erguidos. Meu joelho ferido empurra todo o corpo para baixo. Desmorono como um pão encharcado, aos olhos dos meus companheiros, todos em silêncio. Assim é que se humilha um capitão castelhano.

É certo que isto termina logo. Não posso mais ficar em pé. A fraqueza mina toda resistência. Três dias aprisionados ao ar livre e sem alimentos. Os sacerdotes que formam um grupo à nossa frente retornam entoando seus longos lamentos: lentas litanias. Sacerdotes de longos cabelos negros e longas túnicas negras. Golpeiam o próprio peito e balançam as cabeças asquerosas repetindo essas orações que nunca poderemos compreender. Nunca chegaremos à tradução pura das palavras dessa língua.

Guerreiros vestidos com peles e cabeças de jaguar vigiam mantendo distância. Há outros, jovens também, com as mesmas e repelentes máscaras de águia. Movimentos suaves em ritmo de pesadelo. Alguns desses rapazes já empunham nossas armas brancas, embora ainda quase todos tenham nas mãos suas próprias espadas de madeira com placas encaixadas de obsidiana afiada. A pedra de Óbsio. A pedra escura de vidro dos africanos e que estava à nossa espera nestas alturas do mundo. Um dos sacerdotes parece querer mostrar-me um espelho de obsidiana que ostenta ao peito. Procuro minha face, mas ela vem e vai num relance. Outro sacerdote, com uma espada de lâminas de obsidiana presa pelas duas mãos, está perto de mim. Cristo que lhes abrigue as almas.

No chão, é onde estou ainda. O joelho apodrecendo há três dias, desde minha intervenção fracassada para salvar a vida do capitão-geral, enquanto todo nosso exército se arrastava sob a chuva, acossado na retirada, protegendo o ouro que já pesava aos ombros e aos animais.

Os demônios nos tiraram tudo. Meu elmo jogado longe e minhas roupas num monte, junto com as dos meus companheiros. O alarido da guerra que não deixamos de lhes fazer vem até aqui, nos alcançando em ondas espaçadas. O estrondo das armas de fogo chega, o prolongamento dos braços cristãos. Eles gritam batendo nas bocas com as mãos abertas e o som sopra de todos os cantos da cidade. Amaldiçoada cidade aprisionada que agora os nossos e os aliados que obtivemos na própria terra se empenham em devastar, erguendo as colunas de poeira e de fumaça que podemos perceber sem esforço. A lua é a mesma de quando estivemos aqui pela primeira vez, trazidos pelas mãos servis de chefes maiores dessa gente. A lua é imensa no céu claro, e a luz do sol parece lhe dar mais brilho.

Sacerdotes regam as feridas dos meus companheiros com um remédio da terra: a obsidiana raspada; um pó fino que ajuda a cicatrizar as chagas que as lâminas de seus fiéis seguidores provocaram. Chega minha vez.

Todos nus como chegamos a esta vida, é como estamos. O calor forte penetra mais agora que não temos proteção alguma sobre a pele. Calor do fogo eterno que eles mantêm neste templo; calor do sol que banha este solo desde o alto, fogo que transformou todas nossas obsessões em névoa durante os últimos dias e noites que aqui vivemos.

Em nome do nosso rei e do nosso deus desembarcamos deste lado do mundo. Em nome de seus reis e de seus deuses eles nos deram combate. Não vi guerra assim jamais: entre franceses ou entre italianos ou entre turcos. Por seus reis e por seus deuses eles querem nos dar fim. Neste instante tentam erguer-me com certo cuidado. Meu rosto se reflete na placa de pedra escura que oscila no peito do sacerdote. Fecho os olhos feridos e os abro ao ouvir a voz de um homem que chora.

O bálsamo, o espelho, a morte. A esse que caminha em minha direção empunhando um punhal de obsidiana eu grito que não, que não é assim que se abate um fidalgo castelhano. Digo a esse sacerdote que não é assim que se abre o peito de um capitão castelhano, com um só talho rasgado em bruto golpe; que não é assim que se entrega seu coração pulsante ao sol e aos deuses assassinos à espreita desde o dia em que nos entregamos à conquista cristã, para o imperador espanhol, das terras que são parte destes domínios astecas das Índias Ocidentais.

Mustafa Yasbek. Obsidiana. In: YASBEK, Mustafa. (Org.). Ecos do tempo: histórias da história. São Paulo: Clube do Livro, 1988. p. 139, 141-145.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Estética no fim do medievo: O luxo e a moda

Blanca Maria Sforza, Giovanni Ambrogio de Predis, cerca de 1493. [Dama medieval com vestuário luxuoso e cabelo trançado.]

Mais ainda do que os pontos de honra, a cupidez provocava muitas brutalidades. Nesta época em que se desmoronavam os rendimentos senhoriais e em que o luxo penetrava cada vez mais as classes abastadas, a vaidade impunha faustosas generosidades testamentários e a liberalidade continuava uma virtude essencial do gentil-homem. Era preciso, portanto, "manter seu estado" a qualquer preço. A inveja e a avareza, tal como a prodigalidade eram "rainhas e senhoras". Todos os serviços eram pagos, a começar pelo militar. "Os homens de armas - escrevia Froissart - não vivem de perdões." Como, por outro lado, esperam de guerra saques e resgates, os cavaleiros convertem-se facilmente em estradiotos. Assim, embora Eustáquio d'Auberchicourt, cujas façanhas Froissart admira, se apodere de uma praça por recreio, para conquistar o amor de sua senhora, já Croquart, enriquecido pela guerra, sobe de pajem a senhor.

Nesta classe nobiliária, onde há muitos recém-chegados, a juventude rica aturde-se no luxo, ridicularizado, contudo, pela sátira burguesa do Contrefait de Renart:

A gente alegre movimenta-se.
Um joga dados, outro se diverte.
Um justa, outro guerreia.
Todos são grandes e gordos.
Não sabem donde lhes vêm os bens.

As extravagâncias da moda, o novo gosto pelos tecidos caros, pelas sedas e vestes forradas não são apanágios de uma classe privilegiada. Logo depois da Grande Peste, afirma o florentino Villani, as "mulheres mais humildes ostentam os vestidos das damas da aristocracia que morreram". Na Inglaterra certas leis suntuárias tentam, em vão, graduar o luxo do vestuário segundo a posição e a fortuna de cada um. A moda masculina inaugurara, logo no início do século XIV, os trajes bipartidos, em que as véstias, os calções e o chapéu eram de cores diferentes do lado direito e do lado esquerdo. Por volta de 1340 acrescentou-se a isso o uso de véstias curtas e justas: só as pessoas sérias, clérigos, magistrados, professores e médicos continuavam fiéis aos trajes compridos. Na segunda metade do século, a camisa de lã fina dá lugar à de pano; as peles raras utilizam-se na confecção de chapéus e no enfeite de certos trajes feitos de tecido mais leve e tintos em cores vivas e variadas, capazes de exprimir os matizes convencionais dos sentimentos. A silhueta das pessoas torna-se estranha: as mulheres puxam os cabelos para trás, a fim de libertar completamente a testa, mas usam na cabeça um hennin alto e pontiagudo, ou um chapéu parecido com o dos astrólogos, ornado com um véu comprido e esvoaçante; o senhor de La Tour-Landry critica os decotes audaciosos, as caudas longas, que é necessário segurar no braço e as cinturas apertadas até o sufocamento. Mais singular ainda é o aparato masculino: ombros falsos almofadados, cintura apertadíssima, véstia justa ao corpo e plissada. Tudo isso dá ao busto uma forma trapezoidal içada numas pernas fragéis, com calções colantes. Calçam sapatos de bico arrebitado - esporões de animais monstruosos, segundo Eustáquio Deschamps. Este traje completa-se com uns chapelões altos ou redondos, de tecido ou pele. A barba, que voltara à moda, com duas pontas "afigadas", desaparece no fim do século; os cabelos compridos e ondulados, no início, são mais tarde cortados em calote circular. João de Condé troça dessa forma de vestir numa composição oportunamente intitulada Do macaco:

Os jovens que agora chegam / apresentam-se fantasiados. / Fazem-se com tecidos diversas medidas, / cortes e aplicações; / e outrora os que vestiam estes tecidos / passavam todos por arautos; / agora, vestem-se grandes e pequenos... / Presentemente entraram na moda / mangas curtas, com um bico à frente, / muito estreitas entre os braços. / E cortam-se os bons tecidos / em faixas e em quartos... / Outros cingem-se tão baixo / que o cinto fica sobre os rins.

Petrarca já vilipendiara estas modas "desonrosas", e Urbano V e Carlos V proscreveram, naturalmente em vão, os sapatos de bico arrebitado. No século XV as coisas ainda se complicaram mais, acumulando-se as joias, os tecidos caros, sobretudo sedas e lamés dourados e prateados. O luxo do guarda-roupa que acentuava ainda mais o contraste entre a fortuna e a miséria das massas, correspondia, entretanto, a uma aspiração comum aos homens desse tempo por uma vida melhor, em busca de uma certa forma de beleza de que a literatura e a arte representam, melhor do que as excentricidades da moda, os movimentos mais autênticos.

PERROY, Édouard. A Idade Média: o período da Europa feudal, do Islã turco e da Ásia Mongólica (séculos XI-XIII). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. p. 303-305. (História geral das civilizações, 7).

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Estética no fim do medievo: Cavalaria e cortesia


Jean de Saintré justa com o cavaleiro espanhol Enguerrant em um torneio. Miniatura, cerca de 1470. Antoine de la Sale.

O ideal cavalheiresco é indubitavelmente a mais tenaz dessas convenções, dentro de uma classe nobiliária onde, no entanto, as famílias se renovam mais depressa do que outrora. Este ideal continua a basear-se na virtude viril, cujo critério é a exaltação do valor e do êxito pessoais; o cavaleiro em busca de proezas ou de atos de destreza no manejo das armas não é menos provido destes dons do que o burguês em luta pela fortuna. Aquilo a que na Itália se chamava virtu tenta sublimar a energia, a paciência e o domínio de si: ascese mais humana do que cristã, em que se prolonga a rudeza medieval, anuncia-se a elegância do Renascimento e onde o "gentil-homem" e o "bom homem" se procuram sem ainda se encontrar.

Devemos dizer, no entanto, que a cavalaria e a cortesia, impondo seus imperativos de maneira cada vez mais rigorosa, mostram-se incapazes de refletir as novas estruturas da sociedade. Trata-se de um ideal fingido, colorido de afetação literária e preso ao irreal, mesmo para os que não aceitam, em nada, a alteração das virtudes cavalheirescas e são rigorosos no respeito ao seu código.

Segundo o ideal cortês, a mulher continua a ditar o comportamento cavalheiresco: este, porém, muda de tonalidade. Laura é para Petrarca a "senhora da espiritualidade"; o cavaleiro busca a inspiração para os seus feitos na "dama dos seus pensamentos". "Poucos homens nobres - dizia o pai de Lalaing a ele - alcançaram a alta virtude da proeza se não tiveram uma dama ou uma donzela por que estavam apaixonados." Com efeito, por esta se fazem promessas difíceis e mesmo extravagantes; os companheiros de armas de Eduardo III juraram às suas damas, em 1337, que andariam com o olho tapado por uma pala preta enquanto não cumprissem determinada façanha. É da sua "dama" que, no termo das provações em plena corte ou num "passo de armas", o cavaleiro andante espera a recompensa das suas longínquas e múltiplas proezas. Em vez de satirizar estes costumes, como já se acreditou, o Petit Jehan de Saintré, de La Salle, escrito para o filho do Rei René, continua fiel ao "nobre tempo de outrora"; no século anterior, no decurso da sua vagabundagem heroica, Tiago de Lalaing recebera, como Jehan, as lições da Dama das Belas Primas; tendo conquistado o coração das princesas por meio de presentes, conseguiu entrar um dia na liça, ostentando na cimeira um véu bordado de pérolas e um bracelete no pulso, arras das suas admiradoras. Certas cores, emblemas e divisas tornaram-se os símbolos combinados de uma fidelidade ideal, procurada ainda, só ao serviço da Cruz e dentro do respeito pela mulher, pelos cavaleiros agrupados em torno de Filipe de Meziéres e de Boucicaut nas ordens da Paixão, do Escudo Verde e da Dama Branca. No entanto, entre os membros das novas ordens - Estrela e Jarreteira, no século XIV, Tosão de Ouro e São Miguel, no século XV - muitos associavam ou mesmo substituíam as preocupações mundanas às aspirações heroicas dos cavaleiros antigos.

Embora nas "cortes de amor", inovação dos príncipes da Borgonha, a mulher mantivesse incontestavelmente o lugar central, continuaria ela sendo o objeto puro de um amor lícito? Cristina de Pisano elevou-se num debate apaixonado, contra a moral laxista do Romance da Rosa. E isto porque, desde João de Meung às Cem Novelas Novas, passando pelo Ménagier de Paris e pelas Quinze Alegrias do Casamento, circula em todas as obras uma moral mundana, cujas aparências corteses encobrem, mais ou menos veladamente, um desprezo cínico pela mulher, feito do desdém do homem por um ser fraco e por um instrumento de prazer. As esposas respeitadas por sua fecundidade ainda têm motivos para se considerar felizes: "Na minha opinião - escrevia um autor italiano - a beleza da mulher não se deve julgar pelas graças e gentilezas do rosto, mas pelo corpo bem formado e capaz de produzir belos filhos, em abundância." Os bastardos são numerosos em todas as famílias e não existe mesmo o falso pudor de escondê-los ou deserdá-los. Celebra-se como refinamento o amor fora dos laços legais. As conversas dos homens, guerreiros ou não, assumem caráter de extrema liberdade: o Senhor de La Tour-Landry não encontrara melhor tratado de educação para suas filhas do que as anedotas das casernas; a sociedade das cidades italianas e mais tarde a corte de Borgonha, a mais elegante de todas, lançam às senhoras, com a maior naturalidade do mundo, as graças mais ordinárias. Ninguém se choca com a mistura de religião e licenciosidade: Luís de Orléans, que levava vida dissoluta, sabia também trazer o cilício; seu filho Carlos, o poeta, assimila sem pensar em nada de mal, os sofrimentos dos "apaixonados da Observância" aos padecimentos místicos dos filhos de São Francisco.

Aliás, como poderia este retardado ideal cavalheiresco policiar a vida dos homens de armas habituados às violências? Segundo seus princípios, as probabilidades, tanto na guerra como nos torneios, deviam ser iguais entre os adversários: a vitória caberia assim ao mais valoroso. Isto não impedia, porém, que se verificassem, nos combates ou nas cavalgadas, as brutalidades mais atrozes contra a canalha dos peões, ou os vilãos que habitavam as choças. "Queimar, pilhar, violar" era a divisa de muitos cavaleiros, cujas atrocidades Froissart conta complacentemente, de tal forma estas haviam entrado nos costumes, transformando-se, a seus olhos, em pecadilhos de gentis-homens, embora fossem, pelo contrário, consideradas crimes quando praticadas por um vilão, um burguês ou um letrado. A crueldade, considerada uma virtude militar, era reservada aos nobres. "Sabereis ser cruel e altivo? perguntaram ao burguês Filipe Van Artevelde, quando assumiu a direção de revolta de Gand. Um duelo entre dois burgueses causava escândalo, pois só a aristocracia se sentia no direito de ouvir o "grito do sangue" e defender a honra dos "laços carnais". Nestes casos, até a emboscada era considerada lícita: o piedoso cruzado de Nicópolis mandou assassinar seu primo na escuridão de uma rua parisiense. Assim, não há pior castigo para um cavaleiro do que ser tratado como vilão: condenado por ter morto a esposa, o senhor de Giac foi afogado num saco cosido, como um animal daninho. Tratava-se de uma morte indigna de um cavaleiro.

PERROY, Édouard. A Idade Média: o período da Europa feudal, do Islã turco e da Ásia Mongólica (séculos XI-XIII). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. p. 300-303. (História geral das civilizações, 7).

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Estética no fim do medievo: Contradições da vida moral

Cavaleiros medievais, Codex Manesse, entre 1305-1315, Meister des Codex Manesse

Angústia da existência e aspiração de uma vida melhor, todas as hesitações e todos os contrastes que marcam o pensamento filosófico e a vida religiosa encontram-se nos séculos XIV e XV, tanto na expressão da vida social como nas manifestações da arte. Abriu-se debate entre o sensível e o racional, a espontaneidade e a rebusca, a brutalidade e a afetividade. Nenhuma tendência das que se afirmam faz antever a resposta a este debate.

Seria fácil compor, utilizando os arquivos judiciários e os textos moralistas mal-humorados – neste tempo em que florescia o gênero dos Sonhos e das Lamentações -, um quadro exageradamente negro dos costumes da sociedade cristã. Era a época da peste e da guerra, ambas endêmicas. Tratar-se-ia de uma sociedade “fora dos eixos”, que perdera todo o pudor, fazendo gala de seus vícios e brutalidades, próxima em geral da demência, passando sem transição do crime cínico à penitência piegas, glorificando-se por vezes das suas ações torpes e respirando deliciada o odor dos túmulos? Muitos traços desta pintura romântica, ora trágica, ora picaresca, provém de uma ilusão de óptica. Efetivamente, devemos observar, de um lado, que os progressos dos espírito laico assim como da classe burguesa haviam [...] desenvolvido o gosto pela sátira social, pela maior liberdade de expressão e por um realismo menos embaraçado com as convenções. De outro, como se acentuava o contraste entre os costumes, sempre brutais, e o luxo crescente das classes elevadas, as contradições morais ainda ressaltavam mais vivamente.

Na sua vida, em geral precária e curta, os homens do século XIV não se embaraçavam com as próprias indignidades nem respeitavam as alheias. A inauguração em Hamburgo, em 1375, do primeiro manicômio será uma prova de agravamento das doenças mentais? De qualquer forma, é inegável que nenhuma corte deixava de possuir os seus loucos e anões; não havia festas populares onde eles não aparecessem: eram incluídos entre os animais dos circos. Como todos os seus predecessores, há séculos, os reis e os senhores não sabiam moderar suas violências; os súbitos ataques da raiva do cavalheiresco João, o Bom ou do afável Eduardo III, os acessos de furor de Filipe, o Bom, que se acalmava andando a cavalo, até o esgotamento, na floresta de Soignes, das crises de “melancolia” do Temerário são comuns a todos aqueles cuja vida ora guerreira, ora cheia de refinamentos não incitava a controlar as paixões. Froissart, embora seja um admirador cego da classe dos cavaleiros, confessa que “altos príncipes e altos senhores... seriam como que animais se não existisse o clero”. A atração das ciências ocultas difundidas largamente pelos próprios homens da Igreja, inclinados demais a denunciar um mal que viam em toda parte, é um indício de que, nestes tempos perturbadores, se procuravam aliados em todas as forças sobrenaturais ou infernais. Henrique de Transtâmara nada empreendia sem consultar o seu necromante de Toledo; dizia-se que um espírito familiar de Gaston-Phoebus, Conde de Foix, o avisava dos acontecimentos no próprio instante em que estes se desenrolavam. Quando um homem tão equilibrado como Gérson achava oportuno escrever um tratado destinado a afastar suas irmãs das infelicidades do casamento, fazia-o tanto como eco da antiga maldição monástica, reprovando o ato da carne, como para protestar contra as licenciosidades e aberrações de que era testemunha. Destes excessos, os moralistas extraíam uma condenação absoluta da vida secular, desde o romance satírico que acusa todos os contemporâneos de passar o tempo “assoando Fauvel” – o asno vermelho símbolo de todos os vícios – até às poesias de Eustache Deschamps, maldizendo aquele.

Temps plain d’orreur qui tout fait faussement
Age menteur, plain d’orgueil et d’envie.¹

Seu pessimismo tornava-se ainda mais forte perante as paixões coletivas que assaltavam prontamente as multidões urbanas. Estas ora choravam nos sermões, recebendo os sacramentos com fervor e expulsando as mulheres de vida fácil por exortação de um pregador (tolerando-as no entanto logo no dia seguinte), ora se revoltavam em “comoções” sangrentas, às quais, aliás, se mesclavam curiosamente os seres celestes. Assim, por ocasião das chacinas da guerra civil, em 1413 e 1418, os rebeldes parisienses colocaram sobre as imagens dos seus santos um chapéu largo, dos usados na Borgonha. Entretanto, as distrações populares assumiam freqüentemente foros de revoltante brutalidade, como acontecia com os espetáculos, prolongados à vontade, das execuções capitais, ou como certo torneio de cegos, realizado em Paris, em que estes se chacinavam a pauladas. Em todas as cidades existiam malandrins que de noite dominavam as ruas escuras. Em Paris havia o “reino dos maltrapilhos”, entre os quais os “francos burgueses”, cujo nome procedia de sua recusa de participar nos encargos comuns. A guerra provocou a subida à superfície, vindos dos covis, destes bandos de ladrões, assaltantes e assassinos; os coquillards² do século XV chegam a injuriar o próprio emblema dos peregrinos de Santiago.

Se as paixões são vivas e as dificuldades de uma inquieta existência incitam os homens a fazer fortuna o mais depressa possível – os coletores de impostos, cambistas e comerciantes de todos os gêneros são os mais apressados e também os mais frequentemente acusados de fraudes e concussões -, devemos esquecer o “burguês honesto” e o “pobre trabalhador”, cuja existência só conhecemos quando, tendo-se afastado da boa conduta, solicitam em termos chorosos as respectivas cartas de remissão. Existem duas maneiras de julgar o tempo em que vivemos ou condená-lo sem apelo, como fazem os moralistas e os satiristas, ou acomodar-se à situação com bonomia, sem esconder as fraquezas, criando uma moral temperada que, rechaçando qualquer exagero, concede o devido lugar ao prazer e ao interesse. Dentro da primeira forma integram-se, na Inglaterra, a crítica social de um Langland, cuja Visão de Piers Plowman se inspira nas prédicas populares; à segunda pertence a ironia sorridente de um Chaucer, nos seus Contos de Cantuária, obra de um homem de gosto cosmopolita, respeitador das convenções sociais.

¹ Tempo cheio de horrores que faz tudo falsamente
Era mentirosa, cheia de orgulho e inveja.

² Bandos de mendigos cujo nome deriva de suas vestes cobertas de conchas.


PERROY, Édouard. A Idade Média: o período da Europa feudal, do Islã turco e da Ásia Mongólica (séculos XI-XIII). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. p. 297-300. (História geral das civilizações, 7).

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Arte e sociedade no medievo: o românico e o gótico

Opostas em vários aspectos, tanto a arte românica dos séculos XI-XII quanto a gótica dos séculos XII-XV tentavam elaborar imagens que harmonizassem as intenções dos produtores eclesiásticos com as dos consumidores laicos. [...]

No românico, as igrejas quase sempre rurais - reflexo de uma sociedade agrária - incorporaram, especialmente na escultura e na pintura, motivos caros aos camponeses. Elas eram verdadeiros "bestiários em pedra", com inúmeros animais, reais e imaginários, retratados nas colunas e paredes. Eram comuns, por exemplo, os lobisomens sempre presentes na psicologia coletiva camponesa. As figuras monstruosas, semi-humanas - como centauros e sereias vindos da mitologia clássica - funcionavam como protesto contra a ideia do homem feito à imagem de Deus [...].


Arte românica [A Anunciação, Pietro Cavallini]

É importante lembrar que para os medievos não havia arte pela arte, imagens feitas apenas pelo seu valor estético. A finalidade didática delas era essencial. No românico essa característica era muito acentuada, daí, por exemplo, as frequentes cenas do Juízo Final colocadas logo na entrada, lembrando que somente dentro da igreja [edifício religioso] e da Igreja [instituição] era possível a salvação. A arquitetura sólida, de largas paredes, grossos pilares e poucas janelas não era apenas resultado das limitações técnicas da época, mas sobretudo da necessidade de fazer das igrejas "fortalezas de Deus". Na mesma linha, o românico não tinha preocupação de retratar a realidade visível, pouco importante, e sim de revelar a essência das coisas, daí o forte simbolismo daquela arte.

Arte gótica [O beijo de Judas, Giotto]

No gótico, arte urbana sem deixar de ser religiosa [...], o espaço da cultura vulgar era maior. O fundamental continuava a ser a arquitetura religiosa, mas as catedrais góticas contavam, para ser erguidas, com a indispensável colaboração da burguesia local e da monarquia. Atendiam, portanto, a necessidades espirituais e práticas diferentes das do românico. Expressão de uma nova sociedade em formação, o gótico estava ligado à cultura que se desenvolvia nas escolas urbanas, ao pensamento que procurava harmonizar Fé e Razão. Concebia-se Deus como luz [daí os vitrais] e valorizava-se seu lado humano [daí o culto à Virgem]. A natureza passava a ser vista como parte essencial da Criação, por isso se procurava retratá-la com realismo. Essa postura revelava tanto uma nova sensibilidade [cuja melhor expressão é São Francisco] quanto uma nova preocupação intelectual, cuja melhor expressão é a retomada de Aristóteles. O gótico estava exatamente nesse equilíbrio entre coisas tão diferentes como as representadas pelo santo e pelo filósofo.

FRANCO JR., Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 110-111.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Visões da história: o Renascimento

Retrato de Fra Luca Pacioli com um aluno, Jacopo de Barbari

Texto 1
[...] Há certas tendências que parecem permear todas as manifestações da cultura renascentista, como um esforço de metodização e racionalização tanto do real quanto do campo simbólico: uma ênfase contínua nas potencialidades, nos recursos e nos limites do corpo e do espírito humanos, um sabor especial pela liberdade e pelo ato libertador. [...]

Mas o campo da divergência é também prodigiosamente rico. Diferença no espaço, entre o Quattrocento italiano antigótico e o Renascimento flamengo, todo assentado sobre o gótico. Diferenças no tempo entre, por exemplo, a produção da arte italiana dos séculos XIV, XV e XVI. Diferenças simultâneas entre homens contemporâneos e conterrâneos, como Leonardo e Michelangelo [...]. É possível considerar como unidade homogênea um movimento que incorpora tanto Giordano Bruno quanto Inácio de Loyola, Rafael quanto Hieronymus Bosch, [...] Maquiavel quanto Erasmo de Rotterdam, Erasmo quanto Lutero? [...]

Não há, portanto, uma experiência histórica renascentista, há várias. Não há um Renascimento, há múltiplos. [...] SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. São Paulo: Editora da Unicamp/Atual, 1987. p. 73. (Discutindo a história).

Paisagem com  a queda de Ícaro, Pieter Brueghel, o Velho

Texto 2
Na Idade Média, ambas as faces da consciência - aquela voltada para o mundo exterior e a outra, para o interior do próprio homem - jaziam, sonhando ou em estado de semivigília, como que envoltas por um véu comum. [...] o homem reconhecia-se a si próprio apenas como raça, povo, partido, corporação, família ou sob qualquer outra das demais formas do coletivo. Na Itália, pela primeira vez, tal véu dispersa-se ao vento; desperta ali uma contemplação e um tratamento objetivo do Estado e de todas as coisas deste mundo. Paralelamente a isso, no entanto, ergue-se também, na plenitude de seus poderes, o subjetivo: o homem torna-se um indivíduo espiritual e se reconhece como tal. BURCHARDT, Jacob Christoph. A cultura do Renascimento na Itália: um ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 145.


O festim dos deuses, Giovanni Bellini

Texto 3
Embora o termo Renascimento subsista, aplicado a um momento ou a um conjunto de manifestações da cultura ocidental, existem hoje mais dúvidas quanto à sua precisão do que no século passado. A tendência atual dos historiadores orienta-se para uma desconstrução desta unidade conceitual e para a análise de suas contradições. [...]

Uma das primeiras dúvidas que surgem no estudo do Renascimento é a da cronologia. Rupturas radicais entre Idade Média e Renascimento, Renascimento e Reforma, Renascimento e Contrarreforma, Renascimento e Barroco, Renascimento e Maneirismo tendem a ser amenizadas. [...]

[...] Se o único sentido do Renascimento fosse o da aproximação do Ocidente cristão com a Antiguidade, esse período não se diferenciaria em nada da Idade Média.

A Antiguidade greco-romana nunca se ausentou do imaginário medieval. [...]

Fundamental, no entanto, é o fato de a sociedade europeia dos séculos XIV ao XVI ter sido suficientemente criativa e peculiar para não necessitar impor-se através de mitos póstumos. Ela própria gerou sua mitologia, numa interação de novidades e continuidades, mais nascimentos do que renascimentos. Michelangelo não vivia em Roma a.C. e sabia muito bem disso. QUEIROZ, Tereza Aline P. O Renascimento. São Paulo: Edusp, 1995. p. 15-16, 20. (Acadêmica, 2).