"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 31 de maio de 2017

A garra charrua

Índios do Rio da Prata (charruas). 
Jornal de viagem de Hendrick Ottsen, 1603

No ano de 1832, os poucos índios que tinham sobrevivido à derrota de Artigas foram convidados a firmar a paz, e o presidente do Uruguai, Fructuoso Rivera, prometeu que eles iam receber terras.

Quando os charruas estavam bem alimentados e bebidos e adormecidos, os soldados entraram em ação. Os índios foram libertados de suas penas e angústias a golpes de punhal, para não gastar balas, e para não se perder tempo com enterros foram atirados no arroio Salsipuedes.

Foi uma armadilha. A história oficial chamou de batalha. E cada vez que nós, uruguaios, ganhamos algum troféu de futebol, celebramos o triunfo da garra charrua.

GALEANO, Eduardo. O caçador de histórias. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 55.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Cegos

Como éramos vistos pela Europa no século dezesseis?

Pelos olhos de Theodor de Bry.

Esse artista de Liége, que nunca esteve na América, foi o primeiro a desenhar os habitantes do Novo Mundo.

Suas gravuras eram a tradução gráfica das crônicas dos conquistadores.

Pelo que essas imagens mostravam, a carne dos conquistadores europeus, dourada nas brasas, era o prato predileto dos selvagens americanos.

Canibais, Theodro de Bry

Eles devoravam braços, pernas, costelas e ventres e chupavam os dedos, sentados em círculo, diante das churrasqueiras ardentes.

Mas, e perdoe o incômodo: eram índios aqueles famintos de carne humana?

Nos gravados de De Bry, todos os índios eram carecas.

Na América, não havia nenhum índio careca.

GALEANO, Eduardo. O caçador de histórias. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 26.

sábado, 27 de maio de 2017

Diagnóstico da Civilização

As idades do homem e a morte, Hans Baldung

Em algum lugar de alguma selva, alguém comentou:

Como os civilizados são esquisitos. Todos têm relógio e ninguém tem tempo.

GALEANO, Eduardo. O caçador de histórias. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 115.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Principais crenças mundiais

Provenientes de praticamente todos os cantos do mundo, as maiores crenças são tão diversificadas quanto suas culturas. Algumas se originaram na pré-história, mas o séc. XX viu surgirem várias novas religiões que atraíram milhões de seguidores.

Nome
Local/Data
Adeptos
Fundador
Textos

Religião tradicional chinesa

Desconhecido, pré-história
400 milhões
Autóctone
Não documentados
Hinduísmo
Índia, pré-história
900 milhões
Autóctone
Os Vedas, os Upanixades e os épicos sânscritos

Xintoísmo
Japão, pré-história

3-4 milhões
Autóctone
Kojik, Nihon-gi
Vodu
África ocidental, desconhecido

8 milhões
Autóctone
n/d
Zoroastrismo
Irã, séc. VI a.C.

200 mil
Zaratustra
O Avesta
Taoísmo
China, c. 550 a.C.

20 milhões
Lao-Tsé
Tão Te King
Jainismo
Índia, c. 550 a.C.
4 milhões
Mahavira
Ensinamentos de Mahavira

Budismo
Nordeste da Índia, c. 520 a.C.
375 milhões
Sidhartha Gautama, o Buda
O cânone pali, os sutras Mahayana

Confucionismo
China, séc. VI/V a.C.
5-6 milhões
Confúcio
Os Quatro Livros e os Cinco Clássicos

Judaísmo
Israel, c. 1300 a.C.
15 milhões
Abraaão; Moisés
Bíblia hebraica; Talmude

Cristianismo
Israel, c. 30 d.C.
2 bilhões
Jesus Cristo
A Bíblia (Antigo e Novo Testamento)

Islamismo
Arábia Saudita, revelado no séc. VII
1,5 bilhão
n/d; o profeta é Maomé
O Corão (escrituras); Hadith (tradição)

Siquismo
Punjab, Índia, c. 1500
23 milhões
Guru Nanak
Adi Granth (Guru Granth Sahib)

Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Mórmon)

Nova York, 1830
13 milhões
Joseph Smith
A Bíblia; O Livro de Mórmon
Tenrikyô
Japão, 1838
1 milhão
Miki Nakayama
Mikigaurata, Ofudesaki, Osashizu

Bahaísmo
Teerã, Irã, 1863
5-7 milhões
Baha Alá
Escritos de Baha Alá

Igreja de Cristo
(Cientista)
Nova York, EUA, 1879
Até 400 mil
Mary Baker Eddy
A Bíblia; Ciência e saúde com a chave das Escrituras

Caodaísmo
Vietnã, 1926
8 milhões
Ngo Van Chieu
Cânone Cão Dai

Rastafarismo
Jamaica, anos 1930

1 milhão
Halié Selassié I
Piby sagrada
Associação das Famílias para a Paz Mundial e a Unificação

Coreia do Sul, 1954
3 milhões (cifra oficial)
Sun Myung Moon
Sun Myung Moon, o princípio divino
Wicca
Década de 1950, porém com base em crenças antigas

1-3 milhões
Gerald Gardner
n/d
Falun Gong
China, 1992
10 milhões
Li Hongzhi
Escritos do mestre Li, incluindo Zhuan Falun

PARKER, Philip. Guia ilustrado Zahar: história mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 492-3.

terça-feira, 23 de maio de 2017

Objetos perdidos

O século XX, que nasceu anunciando paz e justiça, morreu banhado em sangue e deixou um mundo muito mais injusto que o que havia encontrado.

O século XXI, que também nasceu anunciando paz e justiça, está seguindo os passos do século anterior.

Lá na minha infância, eu estava convencido de que tudo o que na terra se perdia ia parar na lua.


Pegada do piloto do módulo lunar da Apolo 11, Buzz Aldrin, na superfície lunar. 20 de julho de 1969. 
Foto Buzz Aldrin

No entanto, os astronautas não encontraram sonhos perigosos, nem promessas traídas, nem esperanças rotas.

Se não estão na lua, onde estão?

Será que na terra não se perderam?

Será que na terra se esconderam?

GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 339. 

domingo, 21 de maio de 2017

Do Império Celta ao Império Assírio X

Déjoces quisera fazer dos medos uma nação. Seu filho Fraorte, ao mesmo tempo que pagava à Assíria tributo de vassalagem, continuava aquela obra submetendo as tribos persas. Com paciência, preparava a luta contra a Assíria.

Deve-se ligar a esse impulso nacional de um povo ariano a prédica de um filósofo medo que, reformando a religião oficial, o masdeísmo, fez dela uma religião de salvação?

Decoração em tumba da religião zoroastrista. 
Província de Sulaymanyah

Zaratustra nascera entre os magos. Após dez anos de solitária meditação, teve a revelação de uma fé depurada cuja doutrina emanava tanto das misérias populares quanto do desejo de unidade que animava o Irã: Zaratustra pedia ao deus Masda que pusesse fim à anarquia feudal tão nefasta ao povo. Pensando ser chegado o momento de agir, o Rei Fraorte lançara-se contra a Assíria - tentativa prematura, pois os medos foram esmagados.

Seu sucessor, o General Ciaxares, foi por seu turno forçado a se dobrar numa prudente vassalagem.

Mas desde -633 esse esforço nacional possuía para os medos o valor de uma tradição. Zaratustra traduzia a confiança deles no futuro. Enquanto o mundo oriental vivia na angústia e nos cemitérios medos, os abutres retalhavam os corpos expostos nas torres, um pensamento se elevava do Irã, como as chamas que no alto das colinas glorificavam o deus ariano da luz - os clarões do petróleo em fogo iluminavam muitas vezes as noites desse país onde sobeja a nafta.

Zaratustra reduzia o ritual à beberagem sagrada que o sacerdote tomava, à água benta e à oferenda dos pães. Suas tendências monoteístas aproximavam-se das do Egito: como este, ele pesava os valores morais na balança das ações que seriam creditadas à alma imortal no curso de suas futuras etapas, inferno, purgatório e paraíso. Zaratustra exaltava o esforço indispensável ao triunfo do bem na luta contra o mal, celebrava o reinado de Deus, o julgamento final que o realizaria e anunciaria um Messias libertador.

Em torno dessa fé, um povo inteiro cobrava esperança: no planalto iraniano, Ciaxares forjava o instrumento do revide, seu exército.

Nesse momento, em eco longínquo para o trágico Oriente assírio, piratas malaios haviam atacado os ainos no Japão e o chefe do clã malaio vencedor fora feito imperador por seus homens após a batalha. Djimon fundara assim a "divina" dinastia japonesa. Esses piratas eram selvagens. Mongóis juntaram-se a eles.

Mas acabavam de se organizar duas forças que desfeririam na barbárie golpes sucessivos: a cavalaria meda e o gênio grego.

RIBARD, André. A prodigiosa história da humanidade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964. V. 1. p. 84-5.

sábado, 20 de maio de 2017

Do Império Celta ao Império Assírio IX

O cartaginês Hanão foi, com sessenta navios, até a Guiné, à ilha Fernando Pó, depois de haver contemplado as eurpções vulcânicas do Camerum. Sobre o Atlântico, as trocas entre celtas e cartagineses se intensificavam. As cidades da Jônia enxamearam. Mégara fundou Bizâncio e controla no Mar Negro a importação de trigo. Mileto cria Cízico no Helesponto e regulariza o tráfico com os citas.

Há ali todo um mundo que as cobiças sanguinárias do imperador assírio não atingem. Quando muito ouve ele contar as riquezas pelos mercadores da Lídia que formam na Ásia Menor, na encruzilahada das rotas, entre a Jônia, o Egito e o Eufrates, um ativo Estado comercial.

Assurbanípal entrou em relações com o rei da Lídia, Giges, capitão audacioso que soube fazer de seu país a artéria principal do tráfico de Nínive e Éfeso, por Sardes, sua capital. A Lídia possuía as mais ricas jazidas de ouro, pelo que se tornou um importante centro econômico. Apoiava-se na atividade marítima da Jônia e suas relações com Mileto lhe abriam o mercado egípcio. O Rei Giges enviava colonos ao Mar do Norte e presentes ao Apolo de Delfos: jactava-se de agir e pensar como grego.

Candaules, rei da Lídia, mostra sua esposa escondendo de Giges um dos seus ministros, enquanto vai para a cama. 
William Etty

Foi sob seu reinado que a moeda apareceu em Sardes - estáteres de ouro e de prata - cujo manuseio facilitou singularmente os pagamentos e acelerou as transações. A inovação contribuiu para a prosperidade da Lídia.

Se a posição desse Estado era vantajosa para sua economia, suas vizinhanças imediatas o eram menos. Suas fronteiras estavam à mercê das incursões bárbaras e os bandidos da Capadócia espreitavam as ocasiões que para tal se oferecessem. Giges se aliaria de bom grado à Assíria para resistir a eles. Negociou: a aliança com os assírios assegurou-lhe ao mesmo tempo a saída no Eufrates.

Essa política entretanto não salvou a Lídia: os bárbaros a invadiram pelo Bósforo. Assurbanípal não interveio, pois nesse meio tempo Giges pensara dever tratar com o Egito e formar com ele uma liga dirigida contra a Assíria. Devido a tal erro diplomático, os sucessores de Giges levaram anos para recobrar sua prosperidade.

Assurbanípal mantinha pois a supremacia no Oriente.

Não obstante, semelhante poderio, baseado unicamente na violência, não podia pretender durar. A revolta era alentada em todo o império, inclusive entre os árabes, cujo rei acabava de ser arrastado a Nínive, preso pela mandíbula a uma corrente de cão. Antes de morrer, Assurbanípal calculou sem dúvida o que seria a vingança dos povos: pelo planalto do Irã ela se levantava.

RIBARD, André. A prodigiosa história da humanidade. Rio de Janeiro: Zahra Editores, 1964. V. 1. p. 82-4.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Do Império Celta ao Império Assírio VIII

Em certo momento, os medos tentam aliar-se aos citas e levantar contra a Assíria uma espécie de coalizão ariana; os clãs iranianos não estão unificados e sua aristocracia está em guerra permanente; sua unidade religiosa é fraca, embora todos eles sacrifiquem nas alturas em grandes fogos a seu deus Masda. Seus magos, confraria análoga às dos druidas ou dos brâmanes, não formam um grupamento organizado; além disso, a rivalidade dos medos, instalados ao norte do Irã, e dos persas, fixados ao sul, estraçalha as tribos. Os assírios não terão dificuldade em submetê-los.

Entretanto, um dos chefes medos, Déjoces, teve a habilidade de aceitar a derrota para trabalhar no sentido de estabelecê-los num Estado que seria vassalo da Assíria enquanto os medos não tomassem consciência de sua unidade.

Déjoces, escolhido por sua correção, foi eleito rei. Reuniu as tribos em torno de uma cidade que construiu: Ecbátana, protegendo por trás de sete muralhas concêntricas de ameias coloridas um palácio real de arquitetura militar. Então, lentamente, malgrado a servidão, os medos se revelaram, frente à Assíria, uma nação.

Senaqueribe, após uma insurreição, destruíra a Babilônia a ferro e água e, dessa Babilônia devastada a que chamamos Caldéia, leva suas conquistas à Arábia, até as fronteiras do Egito. Senaqueribe pode bem passar por um rei faustoso, o rei que o protocolo assírio não permite se veja em pessoa. Nínive pode resplender por seus palácios e sem templos de largos afrescos, por suas salas de marfim, de sândalo, de mármore e basalto - mas a guerra é que fez tal riqueza. A guerra é o único tema dessa arte e aí tudo é emprestado pelos países vencidos. O fausto assírio não deve nada a seu trabalho - tudo ao crime e à pilhagem.

Assurbanípal durante uma caçada. Relevo no palácio de Nínive.

Em -666, é sobre o Egito que se lança o exército assírio. Seu rei Assurbanípal, mais educado que seus antecessores, mais indulgente mesmo, não fez senão saquear o Egito; Tebas foi por ele arruinada para sempre.

Assurbanípal reinava sobre o maior império que até então existira, império continental que, apesar de algumas breves improvisações marítimas, não conheceria nada do mar.

Nesse tempo, seus horizontes recuaram bastante.

RIBARD, André. A prodigiosa história da humanidade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964. V. 1. p. 82.

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Do Império Celta ao Império Assírio VII

Se seus vizinhos imediatos na Sibéria não tivessem sido os hunos, os mais bárbaros dos mongóis, a China teria aí sem dúvida mais influência.

É certo que a confederação chinesa se mudava agora numa vintena de principados cujos conflitos exauriam a classe camponesa. Mas desde a dinastia dos Tchéus a China conhecia certo progresso intelectual. Em suas cortes feudais, recitavam-se cantos populares, as pesquisas astronômicas eram ativas, estudavam-se os eclipses, a Geometria dominava os fatos essenciais. Quando esse esforço racional se interrompera, a Filosofia se declarara protegida por uma ordem universal ligada à ordem humana e o camponês, sem se perder em especulações sobre o além, pedia a seu labor e ao respeito dos ancestrais a felicidade desta terra que ele conquistava pacientemente às searas.

Os citas não estavam pois totalmente isolados e, se seu nível técnico era ainda rudimentar, os assírios não estavam absolutamente em condições de lhes condenar a barbárie: quando o Rei Sargão II, um general vencedor, franqueou aos assírios o Oriente com que seus predecessores haviam sonhado, esses conquistadores semitas apareceram como o pior povo que já se conheceu.

Ora, desde cerca de dois mil anos, eles tinham vivido em relações constantes com a Suméria e Babilônia. Se Nínive é célebre por suas construções e seus astrólogos, quando Sargão II cria uma biblioteca, se seu palácio de Corsabad é suntoso, é porque da Babilônia e dos hititias lhes vieram os conhecimentos necessários. Eles se mostraram mesmo herdeiros inferiores: não só não realizaram em relação à ciência sumeriana nenhum progresso, como regrediram bem longe em relação à Babilônia: esta prossegue seus trabalhos astronômicos em que se descobre que o movimento dos planetas obedece a leis e se constrói um sistema divino do universo.

A despeito de tais ensinamentos, os assírios têm grandeza ou originalidade apenas na violência; se na arte são excelentes figuradores de animais é porque estes lhes exaltam a brutalidade. Os assírios apenas sabem fazer a guerra. Aperfeiçoaram os instrumentos próprios: suas cotas de malhas, seus aríetes e os capacetes serão modelos.

Quanto a seus crimes, são eles lendários - verdadeira técnica de devastação. Suas cruezas não são uma política de exceção ou um paroxismo de selvageria. São o aspecto essencial da mentalidade assíria, voltada inteiramente para o aniquilamento dos vencidos.

O saque das cidades e os impostos esmagadores eram apenas o prelúdio disso. O rei assírio daz decapitar com método: cabeças e peles humanas atapetam as muralhas de seus palácios. Milhares de prisioneiros são lançados ao fogo ou emparedados vivos, empalados, esfolados vivos. Cortam-se os punhos, os lábios, as línguas dos camponeses e deportam-se os sobreviventes por dezenas de milhas para arrancar às nacionalidades as raízes e eliminar pelo exílio em massa qualquer possibilidade de vingança. Incendeiam-se e arrasam-se as aldeias, abatem-se as árvores e, como a revolta rebente continuamente, o rei assírio ordena que se aniquile uma região.

Foram esses processos que em -722 Sargão II aplicou aos israelitas.

Judeus sendo deportados para o exílio no Império Assírio. 
Relevo do palácio de Nínive.
Museu Britânico. Foto: Osama Shukir Muhammed Amin

Anexou-lhes o país e os deportou para o Leste. Os judeus mergulharam no desespero. Evocando as ideias egípcias a respeito da salvação pelo arrependimento, os judeus imploraram a misericórdia divina. A angústia desse povo expulso da terra prometida onde não havia chegado a durar como Estado e a tradição religiosa do Egito ensinaram-lhe a concepção de um Deus de justiça e de esperança que os profetas Amós, Oséias, Miquéias e Isaías o conjuravam a adorar.

Depois de Damasco e Gaza, Sargão II acometeu o Urartu e os frígios, depois os filisteus. Foi sempre vencedor.

A desgraça de Israel veio a ser a de seus vizinhos. A morte de Sargão não interrompeu essas empresas. Da Mesopotâmia a Tiro, de Jerusalém ao lago de Van, seu filho Senaqueribe devasta o Oriente em meio às convulsões dos povos vencidos. Nenhum parece capaz de resistir a ele mediante uma política coerente, nem mesmo o Egito.

RIBARD, André. A prodigiosa história da humanidade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964. V. 1. p. 80-1.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Do Império Celta ao Império Assírio VI

Os colonos gregos haviam passado dos estabelecimentos agrícolas à fundação das cidades marítimas onde escoavam para entre os bárbaros os produtos da indústria helênica.

O templo de Apolo em Cumes era já célebre. Na Itália, essa irradiação era ainda mais fácil porquanto a emigração asiática lhes mostrava o caminho.

Dançarinos e músicos etruscos. 
Pintura mural na Tumba dos Leopardos. Tarquínia.

Os etruscos haviam fixado seus acampamentos perto das aldeias da Úmbria. Depois a aristocracia etrusca reduzira os camponeses úmbrios à servidão e os fazia desbravar no interior as terras incultas. Pelo vale do Tibre os etruscos internavam-se na Itália, fundando cidades sob o emblema de seu poder, a dupla acha num feixe de madeira. O povoamento ainda insuficiente não permitia a essa confederação urbana organizar todo o país. Mas graças a suas origens, ela dispunha de uma forte indústria do cobre e do bronze, de arquitetos e engenheiros que souberam criar uma rede de caminhos e drenar o solo por meio de galerias curvas subterrâneas. As oficinas de cerâmica mantinham relações com os negociantes de Corinto. Os ritos religiosos dos etruscos evocavam a astrologia do Eufrates, cujos segredos, como a observação do fígado dos animais, eram apanágio de sua aristocracia.

Ideias e técnicas da Ásia iam portanto integrar a Itália na história mediterrânica. Pastores latinos se haviam estabelecido com seus rebanhos sobre uma colina escarpada das bordas do Tibre, o Palatino, e populações vizinhas se haviam juntado a eles: desde sua fundação, em -753, Roma esteve em contato com os etruscos e os gregos, numa região francamente civilizada; recebeu dos mercadores de Cumes e dos artesãos etruscos indústrias e alfabetos, misturando com uma religião e uma língua de origem ariana costumes da Ásia. Esta forneceu assim à Itália suas primeiras artes, suas culturas - a vinha e a oliveira - e transformou a paisagem da península dando-lhe um rosto mediterrânico cujos traços o espírito grego animará. Em -735, Corinto funda Siracusa. Os colonos gregos se talham domínios nas admiráveis terras de trigo da Sicília.

A Europa, essa terra melhor dotada de costas do globo, tornava-se definitivamente marítima e oriental enriquecendo-se com o Mediterrâneo.

O Oriente também corria o risco de se fechar aos fenícios: com a peste, a guerra se fazia até mais dura do que nunca. Os exércitos assírios, após invadirem a Palestina e a Galiléia, ameaçavam os árabes que os cumulavam de presentes. De um momento para outro, Tiro e Sídon podiam ser cortadas de suas caravanas.

Somente a concentração dos citas nas fronteiras do norte retardava a pressão assíria. Os citas eram os mais bem organizados dos criadores nômades que, da Sibéria meridional ao Mar Negro, percorriam as estepes do Turquestão ocidental e da Rússia do sul, com seus cavalos, seus bois e seus carros.

Haviam submetido tribos arianas, os cimérios. O emprego dos estribos tornava-os prestigiosos cavaleiros, ébrios muitas vezes de carnagem e de sua bebida de leite de jumenta fermentado. A ourivesaria de seu arreamento era de um realismo brutal e essa arte se estendia largamente pela estepe até a Sibéria central, entre os ferreiros de bronze, e Minusinsk, no Altai.

Na Ucrânia, os citas se haviam tornado lavradores: os escravos lavraram terra, e vasavam-se os olhos daqueles que se empregavam em trazer o leite. Abastecendo os gregos de peixe salgado, de trigo, de metais preciosos e de âmbar do Báltico, seus chefes participavam do movimento comercial que atingia o Cáucaso por mar e por terra.

Por mar, as expedições helênicas haviam feito entrar na história essas regiões fabulosas, ricas em ouro, aonde, dizia-se, haviam outrora chegado os Argonautas, e a arte geométrica dos gregos já experimentara ali, em suas cores e seus ritmos, o gosto oriental. Por terra, os citas mantinham relações com o Irã, a Mesopotâmia e as tribos mongóis, relações mais violentas, muitas vezes, do que de simples negócio, mas que lhes levavam rudimentos de civilização.

RIBARD, André. A prodigiosa história da humanidade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964. V. 1. p. 78-80.

domingo, 14 de maio de 2017

Do Império Celta ao Império Assírio V

Ela detinha já tão bem a bacia oriental do Mediterrâneo que, abandonando as rotas do Norte, cujo segredo lhes havia definitivamente escapado, os fenícios dirigiam seus esforços para o longínquo Ocidente. Para reforçar aí suas bases, os navios de Tiro fundaram Cartago em -814 e dali, alongando suas escalas, ganharam os Açores, a Cornualha e o Báltico. Os cretenses não haviam jamais conhecido esse universo que a chegada dos celtas à Espanha iria aumentar.

Depois de haverem atravessado os Pirineus, esses se fixavam entre os iberos, construíam fortes e traficavam com os fenícios. Um dia, o Império celta encontrou o Mediterrâneo. Esse encontro apressará sua evolução e preicipitará seu avanço sobre os germanos. Os fenícios tinham feito de Cartago o entreposto das riquezas do Sudão e da África central - escravos, peles de animais, penas de avestruz, ouro e marfim; da floresta cerrada, algumas tribos traziam às vezes madeiras preciosas.

Cartago ensinava a equitação aos negros do Sudão, ensinava-lhes a tecer o algodão e a trabalhar o ouro. Encontrava, aliás, na África negra as influências de civilização vindas da Núbia até a Nigéria e reconhecíveis nas línguas, na organização social, na cosmogonia e no número de tradições.

Busto da deusa púnicaTanit. Necrópole de Puig des Molins.

Apesar de os fenícios se empenharem em despistar seus rivais e em fazer mistério de suas carreiras, o monopólio do Mediterrâneo continuava a fugir-lhes: a migração helênica atingia agora a bacia ocidental e aí criava não somente uma concorrência comercial, mas um povoamento estável.

Asiáticos de Anatólia, os estruscos, instalavam-se na Itália; provinham da Cilícia como piratas, embora civilizados pelo contato com Babilônia e os hititas, ao passo que os próprios gregos fundavam cidades no golfo de Taranto, passavam o estreito de Messina e criavam Cumes na costa ocidental da Itália.

Os fenícios não se haviam equivocado a respeito: tratava-se mesmo de um povo inteiro de homens ousados expulsos de sua terra pelo regime da propriedade familial ou pelas rivalidades políticas e que, à procura de terras férteis, ali erguiam templos às divindades agrárias: seu contato ganharia a substância mesma das populações indígenas, modificá-las-ia em seus costumes e segundo um ideal de que Tiro nada sabia.

Era a herança cretense transfigurada pela vitalidade ariana que um clima afortunado levava à plenitude. As lições de harmonia recolhidas de Creta ordenavam na procura do equilíbrio físico a espontaneidade dos jovens que se enfrentavam nos jogos olímpicos. Olímpia era um antigo santuário onde festas fúnebres reuniam os gregos. Desde que estas se tornaram periódicas e acompanhadas de jogos ginásticos, constituíram uma trégua entre os povos gregos, congregando-os em torno de sua paixão comum pelos concursos atléticos.

Em -776 registraram-se oficialmente os nomes dos vencedores e a lista dos atletas foi desde então fielmente conservada.

Esses jogos olímpicos bem cedo pareceram exprimir suficientemente o ideal do mundo grego para que deles se datasse a era das olímpiadas - verdadeira metamorfose do mundo mediterrânico. Os fenícios o viam transformar-se debaixo de seus olhos.

Com razão não haviam eles se preocupado com a confederação militar que Esparta criava no Peloponeso: Esparta não tinha comércio nem marinha, não cuidava de arte nem de pensamento e seu lirismo coral não era mais do que espírito do acampamento. Estes árias em estado bruto que eram os dórios não pareciam nada temíveis a neociantes internacionais.

Mas já ao contrário, eles, misturados por toda parte aos aqueus e formados pelas influências orientais, insuflavam um vigor novo à civilização em que se exaltava a Grécia da Ásia. Corinto, por exemplo, beneficiava-se dessa renovação de tradições que havia outrora recebido diretamente. Se uma casta dória exercia ali o poder, não era como soldados, mas como mercadores enriquecidos pelo tráfico de seus dois portos e pelas relações com a costa asiática. Aquela rivalidade era perigosa; por todas as margens do Mediterrâneo ouviam-se os ecos das rapsódias maravilhosas que recitavam na Jônia a Corporação dos Cantores Homéricos.

RIBARD, André. A prodigiosa história da humanidade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964. V. 1.  p. 76-8.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Do Império Celta ao Império Assírio IV

A evolução precipitou-se da direção de Atenas por volta de -820. Os proprietários de bens de raiz, depois de terem reduzido a realeza a funções religiosas, substituíram-na por um arconte escolhido por toda a vida dentre eles. O velho palácio micenense da Acrópole real não sobreviveu à monarquia: foi desde então um lugar sagrado onde as famílias nobres conservaram suas residências e fixaram seu governo. A seus pés desenvolveu-se uma cidade de artesãos: o quarteirão dos oleiros, que modelavam uma bela cerâmica de desenhos geométricos, tornou-se uma cidade laboriosa a que chegavam os mercadores da Grécia e da Ásia.

A evolução social teve por sua vez outros efeitos. O regime aristocrático avivava as lutas de partidos. Os vencidos dos conflitos anteriores não tinham outro recurso senão a expatriação, e como o direito de velhice igualmente expulsava os moços da terra familiar, a emigração recomeçou com intensidade, acelerada pela atração da viagem, tão viva entre os gregos.

As cidades gregas da Ásia Menor continuaram assim a ser abastecidas de homens empreendedores; depressa foram belas capitais.

Os dórios batalhavam ainda para submeter a Grécia continental e já seus vizinhos asiáticos, com Mileto, Éfeso, Focéia e tantos outros, estavam em plena criação - cidades industriosas que enxameavam suas oficinas nas ilhas do mármore, Naxos e Paros, nos centros metalúrgicos das Cíclades, ricas em ferro, Samos e Creta, povoavam o Oriente Próximo de seus bronzes e baixos-relevos, e imprimiam em tudo o espírito de aventura e de heroísmo que em Esmirna os poemas homéricos celebravam - por isso, bem cedo sua epopéia foi cara aos corações dos gregos.

Héracles e Atena. Vaso ático. Python e Douris.

Formava-se assim entre essas cidades, tomadas da mesma necessidade de vida, uma solidariedade intelectual cujas zonas de influência eram marcadas pelos progressos da língua grega. As costas da Ásia Menor eram a ardente forja onde, de dialetos diversos, se moldava uma língua homogênea.

Como Creta, os gregos da Ásia trocavam a guerra pelo laço dos intercâmbios entre os homens e o fascínio de uma civilização.

RIBARD, André. A prodigiosa história da humanidade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964. V. 1. p. 75-6.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Do Império Celta ao Império Assírio III

Os reis da Assíria dominavam na Babilônia, e sua capital, Nínive, recebia os presentes de todo o vale do Eufrates. Já a Assíria sufocava deles: recomeçara a luta pela posse dos mercados  da Síria, marcada por alternativas de guerras e alianças.

Os soberanos assírios humilhavam os povos vizinhos, rompiam as coalizões, destruíam as aldeias hostis. Em -877, um deles, renovando nas águas do Mediterrâneo o gesto tradicional que simbolizava sua vitória, molhou nelas suas armas ao sul do Oronte. Os tributos de Israel, de Tiro e Sídon afluíram para a escolta real.


Arqueiros assírios. Palácio de Nimrud

Seu sucessor, Salmanazar III, levou a guerra de Damasco ao lago de Van e se atirou contra os medos, clãs arianos que no Irã haviam ficado tão atrasados a ponto de cortarem ainda as rodas de suas carroças em troncos de árvores. Os medos por sua vez pagavam tributo e enviavam ao rei da Assíria seus belos cães amestrados. A guerra se transformava na indústria nacional dos assírios.

Somente a guerra manteve o contato entre esse Oriente convulso e o mundo mediterrânico em que pequenos Estados se organizavam, demasiado frágeis para tentarem restringir as ambições do novo déspota oriental.

Um conflito permanente, aliás, retardava a evolução da Grécia: os dórios haviam-na conquistado aldeia por aldeia e formado nela, por vários sítios, comunidades militares mais ou menos fortes segundo o grau de resistência dos aqueus. Para os dórios, governar limitava-se a submeter.

Em Esparta é que três tribos dórias melhor conseguiram concentrar seus efetivos pela expulsão dos indígenas da cidade e pela construção de uma sociedade à feição de um acampamento, acessível tão-somente aos dórios, sob a autoridade de dois reis, de um senado de vinte e oito membros e de uma assembleia mensal dos espartanos.

Escultura de um hoplita espartano. Museu arqueológico de Esparta.

Dedicada à guerra por suas origens e pela vontade de se manter, essa elite dória se dispensava de qualquer outra tarefa, lançando a da produção aos ombros dos vencidos, que reduziam à escravidão: a estes se chamou hilotas. Viviam sob o temor de uma repressão atroz. Essa organização codificou-a o tio de um rei, Licurgo, que, inspirando-se nas leis cretenses, fixou no rigor delas os princípios dessa aristocracia militar. Quando ela aumentou em número, os espartanos recomeçaram as invasões dórias - diante deles, os habitantes emigravam.

Para o Norte, seu impulso foi menos vigoroso. O militarismo espartano carecia de amplitude; a Tessália e a Beócia jamais lhe sentiram a ameaça. Por isso, o poeta Hesíodo, filho de um grego da Ásia que regressara à terra beócia, podia ali meditar sobre a justiça, celebrar as paciências do labor campesino e exigir da força a obediência a uma regra moral.

A guerra teve igualmente consequências de ordem social.

Diante da invasão dória, desmoronou-se a monarquia absoluta por ter sido impotente para salvar a sociedade micenense. Viram-se então famílias nobres se apossarem das terras, monopolizarem o direito de cidadania e organizarem as magistraturas das cidades. Os camponeses sofreram em toda parte pela avidez dessas famílias: na Ática eles cultivavam-lhes os domínios mediante um sexto da colheita.

RIBARD, André. A prodigiosa história da humanidade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964.  V. 1. p. 74-5.