"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

“Entre homens”: homossexualidade e virilidade em 1968

Pátroclo, Jacques-Louis David

Se falar em sexo publicamente ainda era complicado nos anos 1968, era prudente que os homossexuais se reservassem ao espaço privado. Embora causassem polêmica, determinados comportamentos que confrontavam a noção de masculinidade criada pela sociedade não eram debatidos abertamente, como recorda Ricardo:

A gente supunha que algum rapaz que não falava em mulher, não jogava futebol e não bebia, pudesse ser uma mocinha. Mas, os homossexuais eram muito caricaturizados, discriminados, agredidos e era muito natural que não se expusessem.

A caracterização do homossexual atingia direto o estereótipo do "macho" e o preconceito era o preço mais alto a ser pago:

Eu fui criado numa sociedade onde ser homossexual era ser criminoso, era ser pecaminoso, uma coisa feia que não se conta, uma coisa vergonhosa. Então, o meu desejo foi levado... meu desejo ele foi ensinado a se manifestar somente em situações ligadas à marginalidade: Noite! A palavra noite é feminina já notaram? Dia é masculino: claro, luz, razão, precisão! Noite é feminina: escura, obscura, indefinida, marginal!... Então, meu desejo foi educado para ser ativado em locais tipo barzinhos à noite, becos escuros, saunas... Os tipos de caras que me atraem são caras assim, mais ou menos, que lembram esse ambiente, submundo de coisa assim.

Muitas vezes sem poder (e nem querer) frequentar os mesmos lugares que rapazes heterossexuais, a vivência homoerótica levava à prática de uma subcultura masculina, marginalizada. Os espaços de sociabilidade, caracterizados em sua grande maioria pela escuridão e seus sinônimos, eram restritos, e cabia ao jovem descobrir os mesmos. Os cinemas, desde décadas anteriores, eram espaços privilegiados para isso. Armando Antunes relembrou sua primeira experiência num cinema da capital mineira:

A primeira vez que eu fui num cinema e que aconteceu alguma coisa comigo foi no cine Piratininga. Eu sentei lá e de repente eu percebi que sentou alguém do meu lado, mas eu não me toquei, eu não estava ali para caçar. Eu era novo ainda. Quando eu percebi alguém me pegou. Eu senti uma mão me pegar. Mas eu dei um berro que o cara fugiu para um lado e eu fugi para o outro.

O grito instintivo não foi entendido por ele como uma agressão. Na verdade, foi o momento em que se deu conta de que não estava sozinho no mundo ao se interessar por um homem: "Eu não era a aberração da humanidade. Existia um núcleo, mas era um núcleo tão escondido que eu teria que procurar quem era". Armando relembra como começava um namoro na penumbra do cinema:

Você encostava a perna no rapaz e sentia se ele queria. Bom, se encostou e ele não tirou, é porque não se sentiu incomodado. Mas houve uma época em que o lanterninha pegava você no flagra. Ele jogava a lanterna em cima de você e chamava a polícia.

Se as condições permitissem, os contatos sexuais anônimos podiam terminar em masturbação mútua, em sexo ou em um hotel barato fora do cinema, como revelou o historiador americano James Green.

O Rio de Janeiro desde os anos de 1950 passou a atrair homens (que gostavam de homens) vindos de outros estados do país onde se sentiam pressionados, ou ainda hostilizados, pela família e pela sociedade em que viviam. Mudar-se para a cidade maravilhosa significava "livrar-se da supervisão e do controle familiar e da pressão para o casamento e filhos". Além do já consagrado local do centro da cidade nos arredores da Lapa, da Cinelândia e da Praça Tiradentes, os anos 1968 viram o bairro de Copacabana como o lugar de vida noturna mais vibrante não somente para a classe média em geral, mas também para os homossexuais. Este ainda é o momento em que estabelecimentos começam a atrair um público majoritariamente gay sem serem hostilizados pelos empresários locais. Algumas casas noturnas, como o Alfredão, o Alcatraz e o Stop, passaram a abrigar uma clientela composta por rapazes homossexuais. Entretanto, o grande charme de Copa era o mar e o desfile dos corpos seminus, que podiam ser observados sem pudor algum. E, em frente ao luxuoso hotel Copacabana Palace, local reservado ao jet set nacional e internacional, as bichas, como já eram chamadas desde os anos de 1930, fizeram do espaço o seu "posto", que passou a ser conhecido como a Bolsa de Valores: "lugar onde você pode mostrar-se aos holofotes e virar notícia tinha data e local marcado. O concurso de Miss Brasil era ponto de "bonecas", como também eram chamados os homossexuais mais afeminados, do Rio de Janeiro, como apresentou uma reportagem da revista Realidade:

Às oito da noite, 40 mil pessoas já estão no Marcanãzinho lotado, pois nada mais importante existe para elas que um concurso de Miss Brasil. O ginásio está explodindo em gritaria e aplausos, a cada "miss" que dá a paradinha, o rodopio e manda dois beijos para o público. De repente a polícia resolve entrar na "passarela". As "misses" assustadas saem correndo e dando gritinhos desesperados. Levantadas no ar, indefesas, pequeninhas diante do tamanho dos guardas. são levadas para algum canto misterioso. É o fim tradicional do desfile dos bonecas, ou transviados sexuais, que todo ano, em algum pedaço vazio da arquibancada, precede o desfile de verdade.

Entretanto, boa parte dos homossexuais se resignava a um universo privado, pessoal, muitas vezes relutando contra suas próprias vontades em nome do preconceito que lhes atingia. Mesmo nos círculos mais "avançados", como as organizações de esquerda que resistiram à ditadura militar, o homossexualismo era visto com muita reserva. Herbert Daniel, militante de organizações guerrilheiras, como a Polop (Política Operária) e a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), foi um desses que, em nome da aceitação no grupo e das práticas revolucionárias, negou sua sexualidade durante anos. Em seu livro, Meu corpo daria um romance, Herbert desabafa sua vida duplamente clandestina:

Quis extirpar o sexo antigo. Aos poucos, adotei um sexo futuro. novo, que naquele instante se tornava pura abstinência. A última vez que trepei com alguém deve ter sido em meados de 67. Abstinente passei toda a clandestinidade. Sete anos. (Não posso deixar de escrever o prometido elogio à punheta, senão dificilmente poderei fazer alguém compreender a minha clandestinidade. Porque creio que se tivesse apagado meu sexo nunca teria acreditado na militância. Um militante sem sexo é um totalitário perigoso. Um punheteiro é apenas um confuso ingênuo e esperançoso.)

As noites solitárias foram o preço a ser pago em nome de um "ideal" cujo "ideal de homem" era o guerrilheiro, viril e másculo. Os revolucionários dos anos 1968 carregavam muito do traço mais tradicional da cultura patriarcal desde a época colonial: a supremacia masculina. Nesta hegemonia, o importante era parecer "macho", mesmo não sendo.

James Green indicou que muitos homossexuais saíam em busca de homens "verdadeiros": uma reversão dos papéis tradicionais onde o sujeito "passivo" torna-se ativamente aquele que procura uma relação sexual. Segundo o brasilianista, essa dinâmica sexual, na qual o homossexual tinha de tomar a iniciativa, contribuiu para a formação de uma identidade imbuída de autoconfiança e que se contrapunha aos estereótipos sociais do bicha patético e passivo. É interessante ressaltar, com essa constatação. o quanto dos valores viris também foram apregoados por homossexuais. Uma reversão do entendimento, que vem desde o início da era cristã, de que o homem homossexual não era viril (lembrando que as relações homoeróticas entre gregos e romanos eram entendidas sobretudo como viris, expressando a potência masculina em detrimento do elemento feminino). Esta autoridade de si, juntamente com a evolução política dos anos 1968, permitiu o questionamento dos papéis sociais e sexuais rígidos assumidos pelas "bonecas", ou seja, de que para ser homossexual era preciso necessariamente ser efeminado. Certamente esses fatores contribuíram para formação de uma consciência que em fins dos anos 1970 passou a ser expressa pelo movimento gay no Brasil.

Angélica Müller. Não se nasce viril, torna-se: juventude e virilidade nos "anos 1968". In: PRIORE, Mary del; AMANTINO, Marcia. (Orgs.). História dos homens no Brasil. São Paulo: UNESP, 2013. p. 319-323.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Quando o amor vai à guerra

Três jovens espartanos praticando o arco, Christoffer Wilhelm Eckersberg

Esparta era um estado oligárquico e militar do Peloponeso dedicado quase exclusivamente a guerrear os seus vizinhos. Segundo Xenofonte, a homossexualidade era habitual no seu exército e entre jovens soldados era estimulada a formação de casais de amantes que iam unidos para a guerra. Um caso semelhante foi o chamado "Regimento Sagrado de Tebas", guerreiros beócios de elite que lutaram por vezes contra os Espartanos. As tropas homossexuais de Esparta obtiveram notáveis vitórias contra os Persas, entre elas a célebre batalha de Salamina, e um triunfo pírrico sobre a democrática Atenas, na Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), que significou o início da decadência do mundo grego.

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Editorial Estampa, 2006. p. 43.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Sexo e casamento na Idade Média (Parte 2)

Casamento de D. João I e Filipa de Lencastre. Chronique de France et d' Angleterre, Jean Wavrin, século XV

Em terceiro lugar, trata-se de união indissolúvel. Ao contrário dos vários tipos de aliança conjugal na Roma antiga, onde a separação do casal podia ocorrer sem maiores formalidades, o casamento cristão em tese só se desfaz com a morte de uma das partes ("não separe o homem o que Deus uniu", Mateus 19, 6). A Igreja medieval aceitava, no entanto, a anulação do casamento quando ele não era fisicamente consumado por incapacidade de um dos cônjuges. Ou quando ele unira pessoas aparentadas (por sangue ou por afinidade, como padrinhos e madrinhas), o que feria o grande tabu do incesto, já presente no Antigo Testamento e que ganharia peso ainda maior na Idade Média. A literatura expressou esse forte sentimento contrário ao incesto, por exemplo, no relato de Filipe de Beaumanoir, por volta de 1230, La manekine, cuja heroína amputa a própria mão para afastar o desejo proibido de seu pai. Um casamento podia ainda ser desfeito por outros motivos (bigamia, traição feminina etc), dependendo da influência da parte interessada nisso.

Em quarto lugar, o casamento é exogâmico. Na tentativa de dificultar o incesto e de estimular a circulação das riquezas, impedindo sua excessiva concentração em poucas famílias, a Igreja determinou que os noivos não tivessem parentesco abaixo do sétimo grau. De fato, na aristocracia o casamento era um importante negócio, que afetava não apenas as pessoas diretamente envolvidas, mas todo o clã. Se a mulher era a herdeira dos bens patrimoniais de sua família, precisava de um marido para administrar o senhorio e ser responsável pelas relações feudo-vassálicas relativas àquela terra. Se ela não era a herdeira principal, ao se casar (geralmente aos 13 ou 14 anos) entrava para a família do marido e levava um dote que era uma antecipação de sua parte na herança. Na burguesia, muitos empreendimentos comerciais ou artesanais eram ampliados por meio de alianças matrimoniais entre duas famílias. No campesinato, um servo que se casava com mulher de outro senhorio devia determinada taxa por tirar mão de obra de seu senhor.

Qualquer que fosse a categoria social das pessoas, desde fins do século XI ou princípios do XII surgiu o ritual eclesiástico do casamento. Ele tornou-se obrigatório apenas no século XVI, com o Concílio de Trento, porém difundia-se cada vez mais desde a Idade Média Central. Seus componentes já então estavam bastante uniformizados. Sob o pórtico da igreja ocorriam os esponsais, uma troca de juramentos assistida pelo padre. Vinha a seguir o período dos banhos (geralmente de 40 dias), isto é, da publicação da intenção de casamento para que se verificassem eventuais impedimentos.

A cerimônia que selava o casamento dava-se no pórtico da igreja, com os noivos quase sempre vestidos de vermelho, coroados de flores, a moça com os cabelos soltos em sinal de virgindade ou com um véu ligeiro. Novamente se trocavam juramentos - prática presente em todos os aspectos da vida social medieval -, seguia-se a bênção do casal e a troca de anéis. Entrava-se depois na igreja para a bênção nupcial e a missa, a que os esposos assistiam cobertos por um mesmo véu. Iam depois até o altar da Virgem, ao qual ofereciam uma vela e onde, em algumas regiões, a noiva fiava por alguns instantes. Tudo era acompanhado por muitos padrinhos e madrinhas, testemunhos indispensáveis para uma época pouco ou nada acostumada ao registro escrito e oficial de atos importantes da vida social.

Saindo da igreja, os recém-casados e seus parentes iam até o cemitério rezar sobre os túmulos dos antepassados, que não podiam ficar excluídos de uma cerimônia central para a solidariedade familiar e o espírito do clã. Finalmente, os novos esposos iam para casa, onde os amigos jogavam sobre eles punhados de trigo, rito propiciatório que deveria estimular a fertilidade material e física do casal. Começava então a festa. No caso dos nobres, ela era suntuosa. mesmo porque o casamento da filha mais velha de um senhor feudal era um dos quatro momentos em que os vassalos deviam ajudá-la financeiramente. No caso dos burgueses, sempre desejosos de imitar o padrão de vida nobiliárquico, a festa também tendia a ser farta, dependendo, é claro, dos recursos das famílias. No caso dos camponeses, toda a aldeia, inclusive o senhor, participava das bodas.

O reconhecimento social de que aquelas duas pessoas formavam um casal e poderiam manter relações sexuais não lhes dava, porém, liberdade total para tanto. Determinados dias da semana (em especial o sagrado domingo) e certos períodos do ano (festas religiosas, sobretudo a Quaresma) estavam interditados ao sexo. Jean Louis Flandrin calculou que na Alta Idade Média cerca de 180 dias por ano eram liturgicamente proibidos para relações sexuais, sem contar os dias de menstruação, gravidez e amamentação, igualmente de abstinência. A transgressão era punida de forma variável conforme os locais e as épocas. mas a média girava em torno de 20 a 40 dias de penitência, jejum alimentar e/ou continência sexual. Ademais, o sexo deveria ser apenas vaginal, visando à procriação, a mulher colocada debaixo do homem e no escuro, para se evitar a visão da nudez. O sexo oral e sodomita, a magia para atrair o desejo de alguém, as práticas anticoncepcionais e abortivas, as relações incestuosas e adúlteras eram pecados duramente castigados: de seis a 15 anos de jejum e de excomunhão, geralmente acompanhados de interdição perpétua de qualquer relação sexual e de casamento.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2011. p. 128-130.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Sexo e casamento na Idade Média (Parte 1)

Coito, Giovannino de' Grassi

Em uma sociedade tão fortemente penetrada pelos valores da Igreja, quer dizer, da comunidade cristã, muitas atividades anteriormente consideradas de foro pessoal passaram, pelo menos até o século XIII, a ser vistas como de interesse comunitário. Nesse processo de levar para a esfera pública as coisas privadas, o sexo foi talvez o mais atingido. Essa mudança de comportamento começara na verdade antes do cristianismo, com certas correntes filosóficas pagãs defendendo uma vida mais regrada, mais afastada dos prazeres materiais considerados animalizadores do ser humano. Como em vários outros aspectos, o surgimento do cristianismo respondia a essa demanda psicológica e comportamental da sociedade romana, daí seu sucesso. Tornado religião oficial em 392 e cada vez mais institucionalizado pela Igreja, já na primeira Idade Média o cristianismo pôde impor seus valores.

A vida sexual ideal passou a ser a inexistente. A virgindade tornou-se um grande valor, seguindo os modelos de Cristo e sua mãe. Vinha depois a castidade: quem já havia pecado podia em parte compensar essa falta abstendo-se de sexo pelo restante da vida. Os relatos hagiográficos de toda a Idade Média, sobretudo de suas duas primeiras fases, abundam em exemplos de santas que morreram para defender sua virgindade e de santos e santas que ao se converter ao cristianismo abandonaram a vida conjugal. No entanto, esse desprendimento não podia ser adotado pela maioria das pessoas. Era mesmo perigoso que gente sem o suficiente autocontrole tentasse levar uma vida de abstinência sexual. São Paulo já definira a questão no século I: "É melhor casar do que abrasar" (1 Coríntios 7,9). A vida sexual era possível para o cristão médio, desde que ocorresse nos quadros de uma relação definida e supervisionada pela Igreja, o matrimônio.

Contudo essa interferência eclesiástica na vida íntima dos fiéis não foi aceita com facilidade. Quanto mais recuados no tempo e mais afastados dos grandes centros clericais (sedes de bispado, mosteiros), mais os medievos puderam viver de forma "pagã", no dizer da Igreja. Os camponeses, em especial, superficialmente cristianizados até fins da Idade Média em várias regiões, quase sempre escapavam aquele controle. Os aristocratas, interessados em casamentos que garantissem bons dotes e grande prole para dar continuidade à linhagem e herdar o patrimônio fundiário da família, resistiram por muito tempo ao modelo de união sexual que a Igreja determinava. Mesmo os clérigos não aderiram de bom gosto ao celibato obrigatório imposto pela Reforma Gregoriana.

Assim, apenas ao longo do século XII, a Igreja pôde, com dificuldade, completar a definição da única modalidade aceitável de vida sexual cristã - o matrimônio, tornado um dos sacramentos. Ou seja, em primeiro lugar, uma relação heterossexual. Combatia-se. assim, a prática da bestialidade (sexo entre humano e animal), frequente no mundo antigo e no campesinato medieval. Uma tradição mítica interpretava o versículo bíblico no qual Adão, ao ver Eva, diz "desta vez é osso dos meus ossos e carne da minha carne" (Gênesis, 2, 23), como prova de que ele anteriormente fazia sexo com animais. as únicas companhias que tivera até então no Éden. O casamento cristão combatia especialmente a homossexualidade, o pior pecado sexual possível, por visar apenas ao prazer e não à procriação, como Deus determinara ao primeiro casal: "Sejam fecundos e multipliquem-se" (Gênesis, 1, 28). Outra passagem bíblica, muito citada pelo clero medieval, comprovava o horror ao homossexualismo, difundido em Sodoma e Gomorra, cidades por essa razão destruídas por Deus com enxofre e fogo (Gênesis, 18, 20-21; 19, 1-29).

Em segundo lugar, o matrimônio é uma relação monogâmica. Por um lado, isso atendia a um dado da mentalidade medieval, fascinada pela Unidade cosmológica, talvez como forma compensatória à grande diversidade da realidade concreta do Ocidente, dividido em vários reinos, milhares de feudos, dezenas de línguas e dialetos, diferentes liturgias (apenas com a Reforma Gregoriana tentou-se impor o rito galicano-romano a todas as regiões, o que demoraria a se concretizar). Assim, idealmente, ao Deus único deveria corresponder uma só Igreja, uma só fé, um Só governante secular. Por outro lado, a monogamia respondia a uma lenta, mas inegável transformação na sensibilidade coletiva - que a Igreja soube reconhecer e tornar lei - pela qual se passava a ver a essência do casamento no consentimento mútuo dos noivos. Isto é, a união deveria ser construída a partir do afeto recíproco, e não apenas de interesses políticos ou patrimoniais. Ora, com base no afeto conjugal, que é único (como o dirigido aos pais e a Deus), concluiu-se pela exigência de um único parceiro.

FRANCO JUNIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2011. p. 126-128.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Vício solitário: a masturbação no século XIX nos colégios internos

Masturbação, 1911, Mihály Zichy

Quando se apagam as luzes do dormitório, um jovem regente, responsável por vigiar os outros estudantes, toma sua posição estratégica. Enquanto finge dormir, observa atentamente as atitudes do suspeito, numa cama próxima. Algum tempo depois, começam os movimentos característicos e a respiração "frequente e suspirosa". Está armado o flagrante. Silenciosamente, o regente levanta-se, aproxima-se da cama e surpreende o estudante no meio da manobra. Dá início, então, ao escândalo. Os pensionistas acordam sobressaltados e, sentados em seus leitos, testemunham o sermão público contra aquelas "imundas práticas". "Confuso e envergonhado, o delinquente agradece os bons conselhos" e promete deixar para trás a masturbação.

A cena aconteceu no Seminário de Diamantina, provavelmente no início de 1860, em Minas Gerais, e foi uada como exemplo pelo médico João da Matta Machado em 1875. Ele ensinava que, se houvesse fortes suspeitas de masturbação contra um interno do colégio, deveria ser provocada a "confissão de delito" ou a acusação direta. E se esses meios se mostrassem ineficazes, não se poderia hesitar em utilizar o recurso extremo de surpreender o colegial em "flagrante delito" e expô-lo ao escárnio dos colegas.

Jovem sendo penetrado. Os outros três homens se masturbam. Miniatura otomana do livro Sawaqub al-Manaquib, século XIX, Artista desconhecido

A prática do onanismo entre alunos de internatos era uma preocupação e objeto de estudo de muitos médicos no século XIX. Para eles, a vida reclusa contribuía para propagar e agravar a prática das "manobras secretas" entre os meninos e as meninas. Para reprimir o "terrível inimigo" entre os colegiais, os médicos indicavam um conjunto de "regras higiênicas" direcionado aos diretores dos colégios, aos professores e às famílias.

Na tese A libertinagem e seus perigos relativamente ao físico e moral do homem, publicada em 1853, o médico Marinonio de Freitas Britto registrou que a masturbação estava muito difundida entre os meninos e os moços na cidade de Salvador. Segundo ele, os indivíduos afeitos à masturbação alegavam que esta era uma forma de saciar seus prazeres sexuais sem o perigo de contraírem a sífilis. No mesmo ano, o dr. Sulpício Germiniano Barroso também alertou para a prática generalizada e de efeitos assustadores que muitas vezes requeriam intervenção médica. "A julgar pela minha própria experiência, em dez masturbadores em quem a saúde se alterou imediata ou consecutivamente pode-se contar nove que se perderam no colégio ou em um internato", reforçou em 1858 o dr. Antenor Augusto Ribeiro Guimarães. No Rio de Janeiro, João da Matta Machado dizia-se espantado, em 1875, com o desleixo dos educadores diante das "manobras secretas" entre colegiais.

Satisfação de si mesmo, Egon Schiele

Diante desse que foi considerado um problema de saúde pública, a medicina tentava fazer a sua parte. "Regras higiênicas" eram indicadas para extinguir ou prevenir o aparecimento da masturbação nos internatos. O receituário do dr. José Bonifácio Caldeira de Andrada Junior, por exemplo, recomendava: não aceitar no internato adolescente de costumes e hábitos suspeitos; proibir a leitura de livros eróticos e as conversas levianas; dividir os dormitórios de acordo com as idades (pequenos, médios e grandes); proibir o diálogo muito livre entre os alunos internos e os externos; prevenir o aparecimento precoce da sensualidade por meio de exercícios físicos; abolir alimentos excitantes; repreender ou expulsar do colégio o masturbador, segundo a gravidade do "crime"; e medicar os que necessitavam de cuidados médicos.

Era importante identificar os estudantes masturbadores a fim de reprimir, evitar o "contágio" e as consequências do "vício execrando". A "campanha antimasturbatória" era fundamentada na moral religiosa e reproduzia ensinamentos contidos em obras de médicos europeus, como o famoso tratado Do onanismo ou das doenças decorrentes da masturbação, escrito em 1758 pelo suíço Samuel Tissot. Este tipo de literatura denunciava o prazer solitário como capaz de provocar "não apenas as piores doenças, mas também as piores deformidades do corpo e, por fim, as piores monstruosidades do comportamento", nas palavras do filósofo Michel Foucault (1926-1984).


Eros. Homem se masturbando, Egon Schiele

Influenciados por esses argumentos, os médicos brasileiros listavam uma série de danos decorrentes da prática da masturbação. Mencionavam, entre outros, a magreza, a palidez, o encovamento dos olhos, salivações abundantes, vômitos, estatura diminuída e curvada para diante. Em relação ao comportamento, os onanistas tornavam-se tímidos, melancólicos, indolentes, buscando sempre o isolamento. No intelecto, o vício ocasionaria a completa estupidez e idiotismo, resultando na incapacidade para o exercício de qualquer atividade ou profissão que exigisse a mínima concentração.

O opróbrio (vergonha pública) completava o quadro deplorável pintado pelos médicos, como descrito de forma dramática na tese Generalidades acerca da educação física dos meninos (1846), de autoria do dr. Joaquim Pedro de Mello: "Os indivíduos que têm a infelicidade de se lançarem a tão torpe vício [...] trazem em seu semblante, em todo o seu corpo, e tão bem em sua inteligência estampada a ignominiosa marca, que a todos denuncia a sua lastimável paixão".


Masturbação feminina. Shunga, 1824, Katsushika Hokusai

Drasticamente, os médicos também consideravam a masturbação como capaz de causar ou contribuir para o aparecimento de doenças como a tuberculose e a epilepsia. "Abusos de toda espécie, os excessos venéreos, a masturbação e a sífilis são causa de tísica pulmonar", afirmou o dr. Candido Teixeira de Azevedo Coutinho em tese defendida no Rio de Janeiro em 1857. Da mesma forma, Miguel Antonio Heredia de Sá, em Algumas reflexões sobre a cópula, onanismo e prostituição do Rio de Janeiro (1845), procurou explicar como se dava a manifestação da tuberculose nos indivíduos que buscavam o prazer sozinhos: as pessoas "dadas desde a tenra infância à masturbação têm o tórax acanhado e incompletamente desenvolvido, contém quase sempre, ou sempre, catarros crônicos, e afecções mais ou menos profundas do órgão pulmonar, que repetindo-se termina na tísica".

Na tese, o dr. Heredita de Sá registra o caso de um menino epilético e já idiota pelos efeitos do onanismo. Internado no Hospital da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, o rapaz apresentava na expressão da face "o vício e o padecer; teria ao muito doze anos; seu corpo era franzino e atrofiado, mas os órgãos genitais eram prodigiosos e tão completamente desenvolvidos como se fossem de um homem". O dr. Sulpício Germiniano Barroso, por sua vez, estava certo de que a epilepsia era uma afecção nervosa que, apesar de ter também outras causas, manifestava-se nos indivíduos apegados à masturbação. Para ilustrar, o médico descreve o caso de um rapaz que se entregou ao vício e acabou contraindo a doença: "todas as vezes que tinha poluções era acometido imediatamente do ataque, e a mesma coisa sucedia quando se masturbava: os acessos foram repetindo-se com tal intensidade que o indivíduo morreu em um deles".


A chegada do século XX não fez desaparecer o alardeio repressivo contra a prática da masturbação entre internos de colégios. Em 1927, a médica Ítala Silva de Oliveira, em sua tese Da sexualidade e da educação sexual, alertou para a proliferação do vício que, segundo ela, campeava na penumbra dos dormitórios dos internatos. Mas na mesma época já havia médicos que se afastavam da tese dominante, que condenava a prática da masturbação, também agora influenciados pelas novas correntes de estudo europeias. O dr. Oscar Bastos Rabello, por exemplo, lembrou em sua tese de 1920 que o médico suíço Auguste Henri Forel (1848-1931) não via mal na prática. Se espaçada, higiênica e moderada, não havia qualquer base na medicina para condenar a masturbação.


Nos internatos, dali para frente, a perseguição ao onanismo seria fundamentalmente religiosa.


Joaquim Tavares da Conceição. Vício solitário. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 10 / Nº 112 / Janeiro 2015. p. 50-53.

sábado, 20 de agosto de 2016

Concubinatos multiplicados

A expansão territorial dos séculos XVII e XVIII em direção ao interior da colônia foi motivada pela descoberta das minas de ouro e pelo crescimento da pecuária - nessas áreas, o número de homens era superior ao de mulheres, e os concubinatos, disseminados. A partir de meados do século XVIII, teve início a urbanização da colônia. Esse conjunto de situações promoveu enormes ondas migratórias, que obrigavam os colonizadores a se locomover da costa para o interior da colônia em busca de trabalho e ocupação. Tais deslocamentos alteraram a estrutura demográfica das populações e incentivavam o aparecimento de formas diferentes de família.

A existência de mulheres sozinhas nas cidades coloniais, por exemplo, dava uma característica especial às famílias, que se constituíam, muitas vezes, apenas de mãe, filhos e avós. Como hoje, multiplicavam-se os lares monoparentais com chefia feminina. Algumas dessas famílias incluíam escravos e escravas. Outras, parentes ou compadres e comadres "agregados". Frágeis? Não. Tais arranjos familiares permitiam às matriarcas elaborar agendas extremamente positivas para os seus: casavam filhos e filhas interferindo na escolha do cônjuge, controlavam o dinheiro com que cada membro colaborava no domicílio, punham em funcionamento redes de solidariedade, agiam, sós ou em grupo, quando deparavam com interesses contrariados.

Interior de uma casa do baixo povo, J. C. Guillobel

Havia também as tradições africanas, vindas do Reino do Congo ou de Angola, regiões onde as etnias matrilineares ajudavam a consolidar o padrão da família monoparental, com mulheres na chefia do domicílio. As exigências de um cotidiano difícil moldaram as funções da mulher na vida do casal. Muitas tiveram que tomar a frente dos negócios quando da ausência do parceiro, de sua morte ou partida. Em muitos casos, a casa e o lugar de comércio ou de produção de gêneros se confundiam.

Os filhos das uniões não sacramentadas eram considerados ilegítimos pela Igreja. Para se ter uma ideia de como os índices de ilegitimidade eram elevados, em Salvador, na Bahia, entre 1830 e 1874, quatro quintos das crianças negras e mulatas eram ilegítimas, e, em São Paulo, entre 1745 e 1845, elas perfaziam 39% dos nascimentos. Em Vila Rica, Minas Gerais, em 1804, os ilegítimos eram, em mais de 98%, crianças escravas.

Ao juntar o jornal - espécie de comissão que recebiam por trabalhos cotidianos -, as escravas conseguiam, muitas vezes, comprar a liberdade do companheiro com o qual se casavam. Casais assim formados sobreviviam razoavelmente. Alugavam um quarto em um cortiço ou casinha nos arredores da cidade e criavam os filhos. Para não atrapalhar o trabalho dos pais, as crianças podiam ser educadas por amigos ou parentes, em cujas casas cresciam e aprendiam os primeiros ofícios. Deixar a educação dos filhos a cargo de outras pessoas prenunciava hábitos ainda hoje presentes entre mães pobres. Apesar das medidas legais e do preconceito contra concubinatos, estes predominavam.

DEL PRIORE, Mary. Histórias e conversas de mulher. São Paulo: Planeta: 2014. p. 16-8.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

"E eram todos pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas"

Abril de 1500. Parte dos homens que estavam na esquadra de Cabral e desembarcaram nas terras avistadas surpreendeu-se com a natureza exuberante que se estendia por toda a parte. Tudo era diferente do que estavam acostumados e vários foram os estranhamentos relatados na carta feita por Pero Vaz de Caminha ao rei português. A contar pelo número de vezes em que o escrivão fez referências aos corpos indígenas, este parece ter sido um dos mais impactantes. Apesar do espanto pela nudez, acreditaram que seria um corpo sem pecado, porque tais seres não conheciam a maldade. Chegaram a essa rápida conclusão apenas observando seus corpos e comportamentos.

Marabá, João Batista da Costa

Logo no início da carta, após relatos de aspectos da viagem e do desembarque, há referência aos índios e a seus corpos. Foram descritos como pardos que viviam nus, não possuíam nada que cobrisse "suas vergonhas" e não se sentiam encabulados com isso, pelo contrário: eram de "grande inocência". Para eles, como não era importante cobrir seus rostos, não fazia a menor diferença tampar ou não seus corpos, situação constrangedora e aflitiva para os europeus, os quais, assim, trataram logo de entregar aos índios algumas peças de vestuário. A carta segue explicitando que havia sido oferecido a eles um barrete vermelho, uma carapaça de linho e um sombreiro preto, curiosos objetos que serviam tão somente para cobrir as cabeças. Apenas depois dos primeiros encontros foram ofertadas roupas propriamente.

Moema, Pedro Américo

As informações sobre aquelas pessoas "exóticas" eram sempre voltadas para seus corpos. Os navegantes tentavam, de formas diferentes, demonstrar para aquele grupo que deveriam cobrir suas "vergonhas", em vão. O cronista relata que, no momento da missa, deram um pano para que uma índia que estava por perto pudesse se cobrir. Todavia, parece que ela não viu sentido naquilo e, ao se sentar, não tomou os devidos cuidados em esconder partes de seu corpo. Ainda que a nudez feminina incomodasse os europeus, também lhes proporcionava momentos de satisfatórias comparações com as mulheres da Europa e elas, as índias, ganhavam na disputa. Comentando sobre uma jovem nativa em particular, Caminha afirmou que era

tão bem-feita e tão-redonda, e sua vergonha tão graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhes tais feições, envergonharia, por não terem as suas como as dela.

O relato também fazia referência a outros aspectos culturais ligados aos corpos indígenas, entre os quais os cabelos, descritos como corredios, cortados e enfeitiçados, a pintura e o uso de objetos identificados como adornos. Com relação à pintura corporal, informava que eles usavam preto e vermelho nos troncos e nas pernas e que variava de pessoa para pessoa ou conforme o gênero. Já sobre o uso de adornos, o cronista descreveu que enfeitavam os lábios inferiores dos índios, o que não os impedia de comer, beber ou falar.

Marcia Amantino. E eram todos pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. In: PRIORE, Mary Del; AMANTINO, Marcia. História do corpo no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 15-6.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Banquetes na Grécia e no Egito

Cena de banquete. Artista desconhecido. Afresco em Paestum - colônia grega  -, Itália

* Grécia. O banquete é uma instituição grega. Depois de uma ceia, na qual se comia sem beber, o banquete celebrava o momento em que um grupo de amigos - adultos e cidadãos - dividia o prazer de beber, conversando ou vendo um espetáculo de dança ou pantomima. Essa reunião, ou cerimônia, tinha sempre uma dimensão religiosa. Os deuses estavam associados a esse ritual, precedido por uma libação.

Em um banquete privado, como o de Platão e Xenofonte no célebre diálogo, os convivas ficavam estendidos sobre uma cama, com a parte superior do corpo virada para a direita, e o cotovelo esquerdo apoiado em almofadas. Era comum elegerem um chefe do banquete, responsável por fixar o número de copos que seriam esvaziados, a proporção da mistura de vinho e água (pois só os bárbaros bebiam o vinho puro) e os divertimentos da noite. Além das obras célebres de Platão e Xenofonte, o Banquete dos sofistas, de Ateneu, o Banquete dos sete sábios, de Plutarco, e sua compilação Conversas à mesa atestam a perenidade da instituição e do gênero literário que nascia ali. (Monque Trédé)

* Egito. As cenas de banquetes que enriquecem a iconografia dos túmulos privados do Novo Império evocam as festividades ligadas à vida do defunto, mas têm, geralmente, um significado funerário, buscando inspiração na lembrança de ágapes reais. No tradicional quadro da refeição do morto são incluídas as representações de elegantes convivas, parentes e amigos. Um espetáculo de dança e música completa o ambiente.

Uma cerimônia ritual reunia anualmente as pessoas próximas ao defunto, na capela de seu túmulo, para um festim em sua memória. Nessas ocasiões não faltava bebida, mas ninguém comia. As composições que retratam esses momentos exaltam os prazeres dos sentidos e são profundamente carregadas de erotismo. Além de evocar as alegrias da mesa, são um convite ao amor, uma aposta na sobrevivência eterna. (Annie Forgeau)

In: BETING, Graziella. Coleção história de A a Z: [volume 1]: antiguidade. Rio de Janeiro: Duetto, 2009. p. 14.

domingo, 14 de agosto de 2016

O corpo sedento: as bebidas na América pré-colombiana

Festa de beber dos coroados, E. Meyer

Na Europa, as bebidas mais valorizadas foram as fermentadas, consideradas desde a Antiguidade até a época moderna como superiores à água pura, uma vez que esta poderia estar contaminada, e os vinhos ou as cervejas tinham a capacidade de purificá-las, combatendo alguns dos micróbios transmissores de doenças. Além disso, a fermentação sempre foi vista como um processo mágico, um cozimento sem fogo, que produz calor, gases, efervescência, borbulhas. Por isso, certas civilizações, especialmente entre os ameríndios, relacionam-na ao sêmen humano e à formação da própria humanidade, constituindo, assim, o alimento cultural por excelência. [...]

No caso dos indígenas do Brasil, havia diversas substâncias essenciais, entre as quais o tabaco, os rapés alucinógenos (paricá e yopo), as bebidas enteogênicas, como a ayahuasca, mas, antes de tudo, por sua difusão extremamente ampla, os diversos líquidos fermentados (pouquíssimos foram os grupos indígenas amazônicos ou litorâneos que desconheceram-nas, diferentemente dos norte-americanos ou do extremo sul patagônico).

Um grande cientista brasileiro das drogas e bebidas, o pernambucano Oswaldo Gonçalves de Lima, cujo reconhecimento de suas contribuições originais ainda é insuficiente, estudou profundamente todos esses processos de fermentação tanto no Brasil como em outros países, especialmente o México. Escreveu, assim, os trabalhos pioneiros da etnozimologia (estudo das fermentações tradicionais), dando conta das formas antigas e contemporâneas de produção dessas bebidas como resultado da ação de bactérias e leveduras.

No nível mais simples, encontramos os bebedores de seivas de palmeiras, muitas vezes por meio de um buraco diretamente no tronco, em que, em poucas horas, o líquido leitoso e doce fermenta, podendo ser absorvido da própria planta (tal como faziam os guatós, do Pantanal). O mel também servia para essa finalidade, misturado com a cera em água, produzindo um hidromel de fraco teor alcoólico, especialmente utilizado pelos tapuias do sertão, assim como por outros hábeis colhedores de colmeias, como os kaingang do sul.

A fermentação por “salivação e esputo”, ou seja, por mascagem da mandioca, feita em geral por mulheres, é um dos métodos mais conhecidos, mas também se produzem bebidas alcoólicas por meio da fermentação de beijus, como é o caso do pajauaru, especialmente na região do Rio Negro. Nessa técnica, a mandioca é mergulhada por alguns dias na água e lama de um riacho e se torna “puba”, um pouco apodrecida, tornando assim mais fácil a amilase, ou seja, a quebra dos amidos.

Entre os índios brasileiros, o principal fermentado era o cauim. Assim eram chamados nas regiões litorâneas habitadas pelos tupinambás todos os sucos da mandioca e das frutas doces e generosas, como o ananás e o caju, mas também o cacau, a mangaba, a jabuticaba, entre tantas outras. Outro método era de frutas liquefeitas e trituradas com água que fermentavam e precisavam ser rapidamente consumidas antes de se estragar. Fossem fabricadas com mandioca, milho ou frutas, alcançavam um teor alcoólico máximo de 7%, no caso do abacaxi (o mais rico em açúcares), variando de acordo com o teor de açúcares do produto usado, o que é a característica geral de todos os fermentados.

Índios preparando e consumindo o cauim, detalhe da "America" de Jodocus Hondius, ca. 1606


Outros métodos também desenvolvidos, além da insalivação, eram o da fabricação de beijus, que, deixados embolorar, ficavam sacarificados pela ação do mofo e depois, misturados à água, fermentavam, constituindo o caxiri (especialmente nas regiões do Rio Negro, influenciadas pela cultura aruaque), o mucururú, a caiçuma e o pajauaru, ou então a massa da farinha de mandioca ou milho era envolta em folhas de bananeira (a técnica da moqueca ou da pamonha brasileira ou, ainda, da huminta andina) e também deixada embolorar para depois ser transformada em uma bebida fermentada, tal como o masato amazônico.

Essa busca, em todos os produtos da natureza, de matérias-primas transformáveis em bebidas fermentadas, foi uma das características mais amplamente difundida entre os indígenas americanos que, com exceção daqueles dos extremos sul e norte, fabricaram em quase todas as regiões licores alcoólicos, cuja denominação mais geral, além de cauim, foi, a partir das regiões da colonização espanhola, chicha. O mais provável é que o termo seja caribenho, como registrou no século XVI o cronista Gonzalo Fernandez Oviedo. Passou a designar os diversos fermentados americanos, o mais comum sendo o de milho germinado (maltado), mas podendo ser feito também de mandioca, batatas, pinhões, cogumelos e todos os tipos de frutas. Essa propensão a também fazer de todos os produtos comestíveis fontes para a fabricação de bebidas não escapou aos olhos dos primeiros europeus. O próprio Colombo, ao chegar na Ilha de La Hispaniola (atual República Dominicana e Haiti), registrou que “do que fazem pão, fazem vinho”.

No processo de colonização ocorreu uma contaminação dos brancos, africanos e mestiços pelos rituais idolátricos indígenas, em que o consumo sagrado do cauim, do pulque ou da chicha muitas vezes é acompanhado de outras substâncias psicoativas ainda mais fortes, mais desconhecidas e mais inquietantes. Isso tornou-se um pesadelo para as autoridades eclesiásticas, que desencadearam, com seus aparelhos policiais inquisitoriais, inúmeras campanhas de “extirpação de idolatrias” em que o alvo era sempre a embriaguez, especialmente no Peru no século XVII, quando as festas (taquis) e bebidas (chicha) dos índios eram perseguidas como depositárias de antigas tradições sobreviventes que deveriam, para a boa cristianização, ser completamente extintas.

Sempre há embriaguez em seus pecados, diziam dos indígenas as autoridades eclesiásticas. Por isso, buscavam proibir suas festas, rituais e cerimônias em geral e, especialmente, as que eram alimentadas pelo calor dessas poções de ebriedade. A embriaguez indígena passou a ser vista por quase todos os cronistas europeus como a causa principal da idolatria. O padre jesuíta José de Acosta, por exemplo, afirmará, em relação ao Peru, que tal não só é um pecado, como também é a causa principal de todos os outros.

Essa embriaguez descontrolada que atingiu os indígenas americanos, livres dos antigos controles tradicionais, abrangeu ainda os colonizadores europeus, assim como os escravos trazidos da África, que já possuíam o domínio das técnicas da fermentação, produzindo o pombe, cerveja de sorgo, assim como os diversos vinhos da seiva de palmeira, chamados de malafo, mas só tomaram contato com o vinho de uvas e sobretudo com os destilados, a partir do contato com os europeus.

O colapso das grandes civilizações ameríndias se deveu, em grande parte, ao choque biológico com as novas doenças europeias, além da desarticulação dos sistemas sociais existentes. No entanto, contemporâneos dessa que talvez tenha sido a mais grave hecatombe demográfica conhecida (morte de cerca de 90% da população original), buscaram outras explicações para o enorme despovoamento. Generalizada em toda a América pelos colonizadores europeus, uma delas culpava os supostos maus hábitos indígenas por essa catástrofe. No Peru, o padre Lizárraga afirmava que o alcoolismo e a sodomia foram as causas da despovoação das Índias. O demônio teria estabelecido seu império sobre aquela gente e todas as suas crenças e devoções foram identificadas a ele pelos missionários. O próprio conhecimento das plantas inebriantes teria sido transmitido pelo demônio aos povos originários, enquanto as consideradas puramente medicinais teriam outra fonte de saber.

Os usos de bebidas fermentadas e outras drogas foram objeto de grandes discussões teológicas entre vários autores durante o século XVI, com o dominicano Bartolomé de Las Casas defendendo os indígenas e sendo tolerante com suas formas de embriaguez e até com suas “superstições”, enquanto outros teólogos, que predominariam, viam em suas festas, bebedeiras, adivinhações e cultos de lugares, plantas, animais e coisas manifestações demoníacas que deveriam ser extirpadas. [...]

O uso em si das bebidas não era condenado, pois os europeus também o faziam, mas sim a busca deliberada dos “transtornos que afetam a mente”, dos efeitos psicoativos das diversas manifestações e formas das ebriedades, consideradas todas, fossem de bebidas fermentadas, fossem de tabaco, de coca ou de ololiuqui como “borrachez”, sendo assim censuradas como embriaguez no sentido geral de alteração voluntária do estado mental, que era exatamente a marca mais característica das formas de beber indígenas, intensas e extremadas. A perseguição à embriaguez buscada de forma deliberada e sistemática, em rituais de convívio, com significados de devoção e hospitalidade, foi uma das grandes obsessões dos colonizadores das Américas.

No âmbito do mundo luso-brasileiro, João Azevedo Fernandes reuniu boa parte das evidências existentes nas fontes primárias a respeito da perseguição implacável dos colonizadores, especialmente os clérigos, para com os ritos da cauinagem, vistos como a verdadeira religião sem templo dos aborígenes. O antigo “regime etílico” indígena, regrado, ritualizado e servindo de elemento central das culturas nativas, foi praticamente destruído, interditado e substituído pelos derivados da cana-de-açúcar, sobretudo a cachaça.

Henrique Carneiro. O corpo sedento. In: PRIORE, Mary del; AMANTINO, Márcia (Orgs.). História do Corpo no Brasil. São Paulo: UNESP, 2011.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Os manicuros de Sakara

A imagem mais antiga de um casal homossexual encontrada no túmulo de dois manicuros da V dinastia: Niankh-Khnum e Khnum-Hotep. Pintura mural numa mastaba de Sakara, datada de cerca de 2450 a.C.

Segundo parece, o incesto não era o único tabu ancestral que se desprezava nos palácios reais de Tebas ou de Mênfis. É provável que certos serviços cortesãos, como o de cabeleireiro, maquilhador ou manicuro fossem exercidos por homens homossexuais (o que explicaria o seu [...] vínculo aos ritos funerários, na delicada função de limpar os cadáveres embalsamados). Em 1964, houve um achado nas ruínas da necrópole de Sakara que contribuiu decisivamente para reforçar esta hipótese. O arqueólogo egípcio Ahmed Moussa dirigia uns trabalhos nas proximidades da pirâmide de Unas, quando descobriu uma série de passagens funerárias escavadas numa encosta escarpada. Informou da descoberta o seu superior, o professor Mounir Basta, que entrou de gatas por uma das estreitas passagens. Quase à beira de desfalecer, foi dar a uma câmara mortuária com um fresco pintado no único muro não desmoronado. A pintura mostrava dois homens jovens olhando-se de perfil, com os narizes a tocar-se, as bocas muito próximas. Um deles apoiava afectuosamente uma mão no ombro do outro, que por sua vez lhe pegava no pulso oposto. O arqueólogo-chefe decidiu chamar "Os irmãos" a tão valiosa descoberta.

Mas, quando reparavam o caminho que levava à pirâmide, os trabalhadores desenterraram uma série de placas murais com inscrições e desenhos de estilo semelhante ao de "Os irmãos". Ao terminar os trabalhos, Basta e Moussa contavam com material suficiente para reconstruir quase por completo o que era uma mastaba, um túmulo em forma de pirâmide truncada. As numerosas pinturas estavam em relativo bom estado e os frisos com hieróglifos quase intactos. Os arqueólogos puderam, assim, concluir que o sepulcro tinha sido construído por volta do ano 2450 a.C., durante a V dinastia, por ordem de um servidor do faraó Niuserré chamado Niankh-Khnum que, conforme explicava uma inscrição por baixo do revelador fresco, era "chefe dos manicuros no palácio real". A construção estava destinada a ser o seu próprio túmulo, repartido com o seu colega e amigo íntimo Khnum-Hotep, que era o outro rapaz que o olhava de perfil. Além disso, a inscrição do frontispício reunia os nomes de ambos em Niankh-Khnum-Hotep, que significa algo como "unidos na vida e na morte".

O professor Basta começou a pensar que talvez se tivesse equivocado ao atribuir o abraço dos jovens ao afecto fraternal. Confirmou a sua suspeita comparando o desenho com as figuras que apareciam no próprio túmulo e com outras da mesma época. Em todas elas, a atitude carinhosa que os manicuros demonstravam correspondia à dos casais unidos pelo casamento, cujos membros eram também os únicos que se olhavam tão próximos um do outro. As figuras masculinas que representavam irmãos ou companheiros nem sequer se tocavam e mantinham o estilo hierático próprio da arte egípcia: o tronco de frente e a cabeça e as pernas de perfil, orientadas no mesmo sentido.

A imagem de Niankh-Khnum e Khnum-Hotep percorreu o mundo como a mais antiga representação artística de um casal homossexual e, desde então, a mastaba de Sakara tem sido visitada por milhares de turistas das mais variadas procedências e tendências.

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Editorial Estampa, 2006. p. 27-8.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Hipátia

Hipátia, Alfred Seifert


- Vai com qualquer um - diziam, querendo sujar sua liberdade.

- Nem parece mulher - diziam, querendo elogiar sua inteligência.

Mas numerosos professores, magistrados, filósofos e políticos acudiam de longe até a Escola de Alexandria, para escutar sua palavra.

Hipátia estudava os enigmas que tinham desafiado Euclides e Arquimedes e falava contra a fé cega, indigna do amor divino e do amor humano. Ela ensinava a duvidar e a perguntar. E aconselhava:

- Defende o teu direito de pensar. Pensar errado é melhor que não pensar.

O que fazia essa mulher herege ditando cátedra numa cidade de machos cristãos?

Era chamada de bruxa e feiticeira e a ameaçavam de morte.

E num meio-dia de março do ano de 415, a multidão se atirou em cima dela. E foi arrancada de sua carruagem e despida e arrastada pelas ruas e golpeada e apunhalada. E na praça pública a fogueira levou tudo o que restava dela.

- Haverá uma investigação rigorosa - prometeu o prefeito de Alexandria.

GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 69.

domingo, 7 de agosto de 2016

Rochas de livres prazeres: práticas sexuais nas pinturas rupestres da Serra da Capivara

Cena de beijo. Pintura localizada na Toca do Boqueirão 
da Pedra Furada. 
Foto:Augusto Pessoa

Mais de 1.300 sítios arqueológicos já foram encontrados no Parque Nacional Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, Piauí. Desses, 900 contêm cenas rupestres, com representações dos afazeres cotidianos dos grupos que ali viveram no mínimo 12 mil anos atrás. Gravadas nas rochas, há cenas de caçadas, lutas sociais, rituais e relações humanas diversas. Inclusive as sexuais.

Entre as representações rupestres aparecem figuras humanas exibindo-se individualmente, com destaque para seus falos. Os caçadores e coletores praticavam suas relações sexuais, parece-nos, de forma um tanto livre de certos padrões ditos morais, de acordo com as representações vistas nas cenas rupestres. As cenas mostram diversas posições de sexo, envolvendo duplas, trios ou grupos maiores numa mesma ação. Há também ocasiões mais "românticas", como a representação de um beijo. Tais sentimentos e desejos não são privilégios exclusivos dos corpos e mentes de hoje. Nossos ancestrais também os vivenciaram, como sugerem os vestígios que deixaram.

Infelizmente ainda existem manuais didáticos escolares que consideram a História do Brasil apenas a partir de 1500, com a chegada dos portugueses. Em alguns casos, para se remeter ao período anterior, fala-se de "pré-história brasileira", numa abordagem claramente eurocêntrica, que dá pouco ou nenhum relevo à longa experiência dos povos presentes no continente. Os homens e as mulheres da suposta "pré-história" viveriam em cavernas, vestidos com peles de animais, em alguns casos cobrindo aquelas que consideramos suas "partes íntimas". É como se estivessem fora da história, num período que seria o prelúdio do desenvolvimento humano, no qual não existiria nada a não ser uma luta instintiva pela sobrevivência.

Estudos desenvolvidos por arqueólogos brasileiros como Niède Guidon subvertem a concepção de "pré-história". Ao focalizar a presença humana no continente e trazer ao debate a produção material e cultural dos povos ancestrais - com base em análise de suas artes rupestres, cerâmicas, instrumentos musicais, ossadas e códigos de DNA, entre outros vestígios - eles apontam para a compreensão de outra História. Quem sabe a História Antiga do Brasil, ou a História Ancestral do Brasil.

Há 200 mil anos, os nossos ancestrais tinham as mesmas condições físicas e mentais que compartilhamos hoje, e empregavam os meios à sua disposição para realizar diferentes ações sociais, culturais, políticas e interpessoais, assim como fazemos atualmente. Sua vida social era mais elaborada do que se imaginava. Demonstram grande desenvolvimento para o fazer, o prazer e para práticas hoje consideradas saudáveis, como caminhar, dançar e brincar.

As muitas cenas com representações do sexo nas pinturas rupestres do Parque Nacional da Serra da Capivara revelam que a sexualidade não era algo reprimido ou escondido, pois todos os membros dos grupos de caçadores e coletores da época tinham acesso àquelas cenas, feitas por eles mesmos ou por seus ancestrais. É possível identificar representações dos órgãos genitais femininos (vulva) e masculinos (falos eretos). Quando há representações de mãos coltadas para trás, são sinalizações de cenas femininas ou com mulheres.

O sexo, para aqueles grupos, devia ser considerado uma prática natural e prazerosa. Dificilmente estava submetido a excessivas restrições ou tabus religiosos. O mesmo se observa entre outros grupos de caçadores e coletores, inclusive os atuais. A sexualidade é compreendida de modo diferente por essas sociedades. Pintores antigos, tanto brasileiros quanto africanos, mostravam as cópulas humanas em posições variadas e com certo realismo. Nas pinturas rupestres africanas, especialmente na região abaixo do deserto do Saara, há uma série de representações de homens mascarados com seus falos eretos prestes a penetrarem as mulheres já em posição ginecológica.

A sexualidade é uma temática bastante recorrente nas cenas rupestres da Tradição Nordeste, uma das tradições estilísticas de pinturas da região piauiense não somente na Serra da Capivara, mas também em outros locais do país, como no interior da Bahia e no Rio Grande do Norte. Na região de sua abrangência, inclusive em São Raimundo Nonato, além das representações do sexo entre humanos, há cenas de sexo com animais, o que chamamos atualmente de "zoofilia". Cenas que aparecem também nos vestígios de outros povos do mundo.

É válido considerar que nas cenas de "excitação" coletiva os falos representavam "espadas", ou seja, simbolizavam poderio e força. Já a cena do beijo sugere que a boca se desenvolveu como importante zona erótica ao longo de toda a vida humana.

Filósofos como Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau consideravam "selvagens" os homens das terras distantes da África, América e Ásia. Assim, segundo Hobbes, eles seriam incapazes de construir laços de amor, além de levarem uma vida sem ofício ou arte. Essa ideia se perpetuou através dos escritos de muitos ocidentais, mas já se comprovou que havia sim trabalho, amor e vida social entre esses grupos ancestrais, como evidenciam as pinturas e outros vestígios deixados pelos primeiros ocupantes das terras brasilis.

Nas pinturas rupestres da Serra da Capivara há cenas de danças feitas com tamanha desenvoltura plástica que demonstram certa sensualidade. Algumas cenas de sexo grupal, com animais ou ainda, supostamente, com humanos "menores", nos remetem a um período sem as restrições morais e éticas da tradição religiosa judaico-cristã. Um período em que os ritmos e as energias da vida humana se harmonizavam com os da natureza.

Michel Justamand. Rochas de livres prazeres. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 10 / Nº 109 / Outubro 2014. p. 62-3 e 66-7.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Apolo e Jacinto

Apolo amava apaixonadamente um jovem chamado Jacinto. Acompanhava-o em suas diversões, levava a rede quando ele pescava, conduzia os cães quando ele caçava. Certo dia, os dois divertiram-se com um jogo e Apolo, impulsionando o disco, com força e agilidade, lançou-o muito alto no ar. Jacinto contemplou o disco e, excitado com o jogo, correu a apanhá-lo, ansioso por fazer a sua jogada, mas o disco saltou na terra e atingiu-o na testa. O jovem caiu desmaiado. O deus, pálido como Jacinto, ergueu-o e tratou de aplicar toda a sua arte para estancar o sangue e conservar a vida que se esvanecia, mas tudo em vão: o ferimento estava além dos poderes da medicina. Como um lírio, cujo haste quebrou-se num jardim, curva-se e volta para a terra suas flores, assim a cabeça do jovem moribundo, como se tivesse se tornado muito pesada para o pescoço, pendeu sobre o ombro.


A morte de Jacinto, Merry-Joseph Blondel

- Morreste, Jacinto - exclamou Apolo -, roubado por mim de tua juventude. O sofrimento é teu, e meu o crime. Pudesse eu morrer por ti! Como, porém, isso é impossível, viverás comigo, na memória e no canto. Minha lira há de celebrar-te, meu canto contará teu destino e tu te transformarás numa flor gravada com minha saudade.

Enquanto Apolo falava, o sangue que escorrera para o chão e manchara a erva deixou de ser sangue; uma flor de colorido mais belo que a púrpura tíria nasceu, semelhante ao lírio, com a diferença de que é roxo, ao passo que o lírio é de uma brancura argêntea. E isso não foi bastante para Febo. Para conferir ainda maior honra, deixou seu pesar marcado nas pétalas, e nelas escreveu "Ai! Ai!", como até hoje se vê. A flor tem o nome de jacinto e, sempre que a primavera volta, revive a memória do jovem e lembra o seu destino.

Conta-se que Zéfiro (o vento oeste), que também amava Jacinto e tinha ciúme da preferência de Apolo, desviou o disco de seu rumo para fazê-lo atingir o jovem. Keats faz alusão a isso no "Endimião", quando descreve os espectadores do jogo de argolas:

Contemplam os jogadores dos dois lados
Lembrando, ao mesmo tempo,
A sorte de Jacinto, quando o sopro,
De Zéfiro o matou;
De Zéfiro que, agora, penitente,
Quando Febo se eleva
No céu, as pétalas da florzinha beija.

Também no "Lycidas", de Milton, há uma alusão ao jacinto:

A roxa flor que traz a dor impressa.

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. p. 75-76.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Prazer antigo: Taça de Warren

Há dois mil anos, membros da elite de grandes impérios como o de Roma não se preocupavam apenas com poder e conquista. Como todas as elites, também encontravam tempo para o prazer e para a arte. Este objeto incorpora as duas coisas. É uma taça de prata feita na Palestina, por volta de 10 d.C. [...]

A Taça de Warren mostra cenas de união sexual entre homens adultos e rapazes adolescentes. Esta peça de prataria romana, de dois mil anos de idade, é um cálice que parece capaz de comportar o conteúdo de uma taça muito grande de vinho. [...] Deve ter sido usada em festas particulares, e, levando em conta o tema, certamente atraía a atenção e despertava a admiração de todos os presentes.

Comer e beber abundantemente eram rituais importantes do mundo romano. Em todo o império, funcionários romanos e mandachuvas locais usavam banquetes para azeitar as engrenagens da política e dos negócios e para ostentar riqueza e status. As mulheres romanas costumavam ser excluídas de eventos como as bebedeiras das quais nossa taça faria parte, e talvez seja lícito supor que nosso objeto se destinava a festas com listas de convidados compostas apenas por pessoas do sexo masculino.

Imaginemos um homem chegando a uma grande vila perto de Jerusalém por volta do ano 10. Escravos conduzem-no por uma opulenta área de jantar, onde ele descansa com outros convidados. A mesa está servida, com bandejas de prata e taças enfeitadas. É nesse contexto que nossa taça seria passada de um convidado para outro. Nela duas cenas de sexo entre homens são ambientadas numa residência particular suntuosa. Os amantes são mostrados em sofás forrados, semelhantes àqueles em que repousariam os convidados de nosso jantar imaginário. E veem-se uma lira e flautas prontas para começarem a tocar quando os participantes se instalarem para desfrutar seus prazeres sensuais. Bettany Hughes, historiadora e apresentadora, discorre a respeito:

A taça mostra duas variedades de ato homossexual. Na frente há um homem mais velho - sabemos que é mais velho porque tem barba; sentado sobre ele, de pernas abertas, está um jovem muito bonito. É tudo muito vigoroso e viril, muito realista - não é uma visão idealizada da homossexualidade.¹ Mas se olharmos a parte de trás veremos uma representação mais tradicional. Mostra dois belos jovens - sabemos que são jovens porque cachos de cabelos lhes caem pelas costas. Um está deitado de costas, e o outro, um pouco mais velho, afasta o olhar. É muito mais lírica, uma visão bastante idealizada do que era a homossexualidade.²


¹ Lado A da Taça de Warren: um homem adulto e um jovem; um menino escravo atrás da porta espia os amantes


² Lado B da Taça de Warren: o outro lado da taça mostra dois jovens

Embora as cenas homossexuais na taça hoje nos pareçam explícitas - para alguns, chocantes e proibidas -, a homossexualidade era parte da vida romana. Mas era uma parte complicada, tolerada, e não inteiramente aceita. A linha de conduta-padrão entre os romanos, sobre o que era admissível em uniões entre pessoas do mesmo sexo foi definida com clareza pelo teatrólogo Plauto na comédia Caruncho: "Ame o que lhe aprouver, desde que fique longe de mulheres casadas, viúvas, virgens, jovens rapazes e meninos de família."

Portanto, se quiséssemos mostrar sexo entre homens e jovens que não fossem escravos, faria sentido buscar inspiração nos tempos da Grécia Clássica, em que era normal homens mais velhos ensinarem meninos sobre a vida em geral, numa relação de mentor-pupilo que incluía sexo. O império romano em seus primórdios tinha idealizado a Grécia e adotado boa parte de sua cultura, e a taça mostra o que é, sem dúvida, uma cena grega. Seria uma fantasia sexual romana sobre uma união sexual entre homens na Grécia Clássica? É possível que, situando-a em um passado grego, qualquer desconforto moral seja mantido a uma distância segura, ao mesmo tempo que dá um tempero extra à excitação do proibido e do exótico. E talvez todo mundo ache que o melhor sexo sempre acontece em outro lugar.

[...]

Não há dúvida sobre onde esses encontros ocorrem. Os instrumentos musicais, a mobília, as roupas e os penteados dos romanos - tudo aponta para o passado, a Grécia Clássica de séculos antes. Curiosamente, podemos saber, pela taça, que os dois jovens mostrados aqui não são escravos. O estilo dos penteados, com um longo cacho caindo pelas costas, é típico de meninos gregos nascidos livres. Entre os dezesseis e os dezoito anos, o cabelo é cortado e dedicado aos deuses, como parte da passagem para a idade adulta. Portanto, ambos os meninos mostrados na taça são livres e de boas famílias. Mas também podemos ver outra figura, que pode ter participado do banquete romano no qual a taça era usada. Está no fundo, espiando uma das cenas de sexo atrás de uma porta - só vemos parte de seu rosto. É, sem dúvida, um escravo, embora seja impossível saber se está apenas se entregando a um ato de voyeurismo ou se atende, muito apreensivo, a um pedido de "serviço de quarto". Seja como for, nos faz lembrar que o que ele e nós testemunhamos são atos a serem praticados apenas em particular, a portas fechadas. Bettany Hughes comenta:

Em Roma havia a noção de que os homens tinham boas esposas e não deveriam recorrer ao sexo com outros homens. Mas sabemos, pela poesia, pelas leis, por referências a relações homossexuais, que isso de fato acontecia em todo o mundo romano. A Taça de Warren é um bom fragmento de indício material que comprova isso. Ele nos diz o que de fato ocorria, nos conta que a atividade homossexual era algo que acontecia em altos círculos aristocráticos.

[...] esta tolerante peça de jantar situa seu dono firmemente nas altas camadas da sociedade, o mundo que São Paulo condenava com eloquência pela embriaguez e fornicação.

Mac GREGOR, Neil. A história do mundo em 100 objetos. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013. p. 267-72.