"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 30 de novembro de 2013

Os druidas

Os druidas trazendo o azevinho, G. Henry E. Horned

Os druidas eram os sacerdotes entre as antigas nações célticas da Gália, Bretanha e Germânia. O que sabemos a respeito deles é tirado dos escritores gregos e romanos, comparado com o que ainda resta da poesia gaélica.

Os druidas combinavam suas funções de sacerdotes com as de magistrados, sábios e médicos. Colocavam-se, em relação ao povo das tribos célticas, de maneira bem semelhante à que os brâmanes da Índia, os magos da Pérsia e os sacerdotes do Egito se colocavam diante de seus respectivos povos.

Os druidas ensinavam a existência de um deus, a quem davam o nome de “Be’al”, que segundo os entendidos, significa “a vida de tudo” ou “a fonte de todos os seres” e que parece ter afinidade com o Baal dos fenícios. O que torna essa afinidade mais notável é o fato de os druidas, do mesmo modo que os fenícios, identificarem aquela sua divindade suprema com o sol. O fogo era considerado como símbolo da divindade. Os escritores latinos afirmam que os druidas também cultuavam numerosos deuses inferiores.

Não usavam imagens para representar o objeto de seu culto, não se reuniam em templo ou construções de qualquer espécie para a realização de seus rituais sagrados. Seus santuários consistiam em um círculo de pedras (cada uma das quais, em geral, de tamanho muito grande), cercando uma área de vinte pés a trinta jardas de diâmetro. O mais célebre deles é o de Stoneheng, na planície de Salisbury, Inglaterra.

Esses círculos sagrados ficavam, em geral, perto de um rio, ou à sombra de um bosque ou de um frondoso carvalho. No centro do círculo, havia o Cronlech, ou altar, que era uma grande pedra colocada à maneira de uma mesa, sobre outras pedras. Os druidas tinham, também, seus santuários em lugares elevados, com grandes pedras ou montões de pedras no alto dos morros. Eram chamados Cairns e usados para cultuar a divindade simbolizada pelo sol.

Não pode haver dúvida de que os druidas ofereciam sacrifícios à sua divindade. Há, contudo, certa dúvida a respeito da espécie de sacrifício que ofereciam, e quase nada sabemos sobre as cerimônias relacionadas com seus serviços religiosos. Os escritores clássicos (romanos) afirmam que eles ofereciam sacrifícios humanos nas grandes ocasiões, como, por exemplo, para obterem a vitória na guerra ou livrarem-se de moléstias perigosas. César descreve minuciosamente a maneira como isso era feito: “Têm imagens imensas, cujos membros são feitos de madeira trançada e se enchem com pessoas vivas. Essas imagens são queimadas e os que dentro dela se encontram vitimados pelas chamas.” Muitas tentativas têm sido feitas pelos escritores simpáticos aos celtas para desmentir o testemunho dos historiadores romanos a esse respeito, mas sem sucesso.

Os druidas realizavam dois festivais por ano. O primeiro tinha lugar no princípio de maio e era chamado Beltane ou “fogo de Deus”. Nessa ocasião, acendia-se uma grande fogueira em algum lugar elevado, em honra ao sol, cujo benéfico regresso era saudado, depois da sombria desolação do inverno. Reminiscência desse costume perdura até hoje em algumas partes da Escócia, sob o nome de Whitsunday.

O outro grande festival dos druidas era chamado Samh’in, ou “fogo da paz”, e se realizava no princípio de novembro, costume que ainda permanece na região montanhosa da Escócia, sob o nome de Hallow-eve. Por essa ocasião, os druidas reuniam-se em assembléia solene, na parte mais central da região, para desempenhar as funções judiciais de sua classe. Todas as questões, fossem públicas ou privadas, e todos os crimes contra pessoas ou propriedade eram-lhes, então, apresentados, para apreciação e julgamento. Esses atos judiciais estavam ligados a certas práticas supersticiosas, especialmente o ato de acender o fogo sagrado, o qual serviria, por sua vez, para acender todos os fogos da região, que tinham sido, antes, escrupulosamente apagados. Esse uso de acender fogueiras no dia primeiro de novembro foi conservado nas Ilhas Britânicas, até muito depois do advento do cristianismo.

Além dessas duas grandes festividades anuais, os druidas tinham o hábito de comemorar a lua cheia e, especialmente, o sexto dia da lua. Nesse dia procuravam o visco que crescia em seus carvalhos favoritos e ao qual, assim como ao próprio carvalho, atribuíam peculiar virtude e santidade. Sua descoberta era uma ocasião de regozijo e culto solene. “Eles o chamam – diz Plínio – por uma palavra que, em sua língua, significa “cura-tudo” e, tendo feito solenes preparativos para as festividades e sacrifício embaixo da árvore, para ali levam dois touros inteiramente brancos, cujos chifres são, então, amarrados pela primeira vez. O sacerdote, vestido de branco, sobe à árvore e corta, com uma foice de ouro, o visco, que é recolhido em um pano branco, depois do que se processa a matança das vítimas. Ao mesmo tempo, dirigem preces a Deus, para que lhes conceda prosperidade.” Era bebida a água em que o visco fora colocado, tida como remédio para todas as enfermidades. O visco é uma planta parasita e, como não é frequentemente encontrada nos carvalhos, o seu encontro se tornava mais precioso.

A druidesa, Odilon Redon

Os druidas eram mestres de moralidade como de religião. Um valioso exemplo de seus ensinamentos éticos foi conservado nas Tríades dos bardos gaélicos, e dele podemos deduzir que a ideia que faziam da inteira moral era justa em seu conjunto, e que eles adotavam e ensinavam muitas regras de conduta nobres e valiosas. Também eram os cientistas e sábios da sua época e de seu povo. É discutível se estavam ou não familiarizados com o alfabeto, embora haja grande probabilidade de que estivessem, de certo modo. É certo, contudo, que não passaram para a escrita coisa alguma de suas doutrinas, de sua história ou de sua poesia. Seus ensinamentos eram orais e sua literatura (se a expressão pode ser usada em tal caso) preservada apenas pela tradição. Os escritores romanos, todavia, admitem que “eles prestavam muita atenção à ordem e às leis da natureza, e investigavam e ensinavam aos jovens entregues aos seus cuidados muitas coisas referentes às estrelas e seus movimentos, ao tamanho do mundo e das terras e concernente à força e ao poder dos deuses imortais”.

Sua história consistia em narrativas tradicionais, em que eram celebrados os feitos heróicos de seus antepassados. Segundo parece, essas narrativas eram em versos e constituíam, pois, parte da poesia, assim como da história dos druidas. Nos poemas de Ossian, temos, senão verdadeiras produções dos tempos dos druidas, pelo menos o que se pode considerar como fiel representação das canções dos bardos.

Os bardos constituíam parte essencial da hierarquia druídica. A propósito, observa um autor, Pennant: “Supunha-se que os bardos eram dotados de poder igual à inspiração. Eram os historiadores orais de todos os acontecimentos passados, públicos e particulares. Também eram perfeitos genealogistas” etc.

Pennant apresenta uma descrição minuciosa dos Eisteddfods, ou reuniões de bardos e menestréis, que se realizavam no País de Gales durante muitos séculos, muito depois de já terem desaparecido todos os outros setores do sacerdócio druídico. Nessas reuniões somente os bardos de valor podiam apresentar suas peças e somente podiam executá-las os menestréis realmente à altura. Eram nomeados juízes para decidir o valor dos concorrentes e conferir-lhes os graus adequados. Primitivamente os juízes eram nomeados pelos príncipes de Gales e, depois da conquista do país, por designação dos reis da Inglaterra. Conta a tradição, porém, que Eduardo I, em represália à influência exercida pelos bardos para estimular a resistência do povo ao seu jugo, perseguiu-os, com grande crueldade. Essa tradição ofereceu ao poeta Gray o assunto para a sua conhecida ode, “O Bardo”.

Ainda se realizam, ocasionalmente, reuniões dos amantes da poesia e da música gaélicas, conservando essas reuniões o seu antigo nome.

O sistema druídico estava em seu apogeu por ocasião da invasão romana comandada por Júlio César. Aqueles conquistadores do mundo dirigiram toda a sua fúria contra os druidas, considerando-os seus principais inimigos. Os druidas, perseguidos em toda parte do continente, refugiaram-se em Anglesey e Iona, onde encontraram abrigo e continuaram a prática de seus ritos, agora proibidos.

Mantiveram seu predomínio em Iona, no litoral e nas ilhas adjacentes, até que foram suplantados e suas superstições vencidas pela chegada de São Columbano, apóstolo da Escócia que converteu os habitantes ao cristianismo.


BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. p. 333-336.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

As sacanagens clericais no Brasil colônia

Velho entrega a uma jovem uma carta de amor no desenho de Carlos Julião. Amor cortês para as brancas, mãos nos peitos para as negras: as investidas variavam de acordo com os "tipos" de mulheres.

O padre Manuel da Nóbrega chegou à Bahia em 1549, à frente de seis inacianos, inaugurando a presença jesuítica na colônia. Em 1553, não teve como esconder seu desalento com a conduta do clero colonial. “A evitar pecados esse clero não veio”, escreveu a outro padre. Queixou-se de que os padres viviam amancebados com as índias, chamadas por ele de “negras da terra”, alegando que eram suas escravas! Além disso, absolviam todo tipo de lubricidade, sem dar qualquer penitência. Era caso de “chorar”, escreveu Nóbrega.

É claro que ele se referia ao clero secular, não aos quadros da Companhia, “soldados de Cristo”, que levavam a sério a militância apostólica. Quando não a levavam, eram expulsos. Já os “clérigos do hábito de São Pedro” não tinham a mesma formação dos jesuítas ou de outros frades regulares. O paradigma deste julgamento, em todo caso, a moral cristã, em sua versão católica: sexo é coisa má, só tolerável no matrimônio, e só de vez em quando, para procriar os filhos de Deus.

Nóbrega teria razão ao criticar, em meados do século XVI, os padres que vinham pastorear almas no Brasil? Do ponto de vista da Igreja, tinha toda a razão – e ainda teria se vivesse no século XVII ou no XVIII.

Basta ler a confissão do padre Frutuoso Álvares, o primeiro a se apresentar ao visitador do Santo Ofício, na Bahia, em 29 de julho de 1591. Disse que nos últimos 15 anos tinha cometido “tocamentos torpes” com 40 pessoas, “abraçando, beijando”, a começar por um jovem de 18 anos. Contou que, neste caso, “tocou com as mãos” em sua “natura”, isto é, no seu pênis, provocando, por duas vezes, “polução” (gozo) no “membro viril” do rapaz.

A linguagem oficial da época é, aliás, saborosa. O pênis era chamado de “natura”, “membro viril”, “membro desonesto”. Desonestidade, por exemplo, era palavra muito usada para designar lubricidade, sensualidade ou simplesmente sacanagem. Nos documentos de época já aparece a expressão “fazer as sacanas”. No caso dos tocamentos em que padre Frutuoso era perito, também havia uma expressão em parte familiar: “jogar as punhetas”.

Padre Frutuoso, vigário no Recôncavo da Bahia de Todos os Santos – todos eles! – foi o primeiro a confessar que “fazia sacanas” no Brasil desde o tempo em que serviu na Madeira – a ilha, vale dizer. Estimou em cerca de 100 parceiros, “pouco mais ou menos”, o número de rapazes (sempre jovens) nos quais jogara “as punhetas”. Devem ter sido uns 200 ou 300.

Nóbrega tinha razão ao criticar os padres seculares? Há vários outros exemplos nos papéis inquisitoriais. Padre Jacome de Queiroz também se apresentou, de sua própria iniciativa, ao visitador, para confessar que tinha sodomizado duas índias. Alegou que o fez sem querer: como tinha tomado muito vinho, ao achegar-se às meninas, “errou de vaso” e, ao invés de penetrar no “vaso natural”, como devia (?), meteu seu “membro desonesto” no vaso traseiro, por vezes grafado no documento, em latim, vas preposterum.

O mais incrível neste caso é que o visitador mal ligou para o fato de que as índias em causa eram meninas, uma de 6, outra de 7 anos. Hoje seria caso de pedofilia e abuso sexual de menores. Na época, não passava de sodomia. A questão era saber em que vaso o padre mete seu “membro viril” e se o fez por escolha ou por acidente. O grande historiador francês Phillipe Áries esclarece: nesta época, as pessoas viam as crianças como “pequenos adultos”.

Devemos deduzir, desses exemplos, que a lascívia dos padres era típica do clero secular? Nada disso. No século XVIII, o frei franciscano Luís de Nazaré, vigário nas Minas, alegava ser exorcista sem sê-lo e, quando sabia de moças adoecidas e melancólicas, apresentava-se para curá-las, expulsando o demônio. De Bíblia na mão e com seu membro viril à mostra, jogava o “jogo dos punhos”, esfregando o sêmem pelo corpo da “possuída”. Preso pelo Santo Ofício, alegou que fez tudo por luxúria, não por acreditar que o sêmem era capaz de expulsar demônios. Acrescentou que as mulheres do Brasil eram tolas e acreditavam em qualquer coisa. A Inquisição só não disse “tudo bem” porque cassou as ordens sacras do frei.

Também no século XVIII, outro frade regular, pertencente à Ordem das Mercês do Pará, preferia rapazes. Gostava, em particular, de oferecer seu “vaso traseiro” e como por vezes o “vaso sangrava”, ele dizia que estava menstruado. Numa palavra: o frade das Mercês dizia que era mulher, disfarçada de frade. Ele acrescentou, como frei Luís de Nazaré, de Minas, que também os rapazes do Brasil eram tolos e acreditavam em tudo.

Voltando aos padres seculares e aos heterossexuais, Lara Lages, em sua tese de doutorado, tratou dos solicitantes as turpia. Quem eram? Padres, em geral seculares, que no ato da confissão, ou a propósito dela, “cantavam” as mulheres, quando não avançavam nelas. Muitos alegavam que, sendo eles padres, não havia pecado no avanço. Deus perdoava. Outros, tratando com mulheres casadas, diziam que eles, padres, eram ricos, e poderiam regá-las muito mais que seus maridos. A subversão da doutrina católica era total.

O mais interessante, porém, é que havia uma gradação “sociológica” nas investidas dos solicitantes ad turpia: com mulheres “brancas e honradas”, eles vinham com uma conversa amorosa, tipo amor cortês. Um deles mandou uma florzinha entredentes pelas grades do confessionário. Mas com mulheres negras, escravas ou forras, cortesia zero: mãos nos peitos, mãos debaixo da saia.

Trópico dos pecados? Sim. Prova de que a Igreja era conveniente com sodomias, pedofilias e abusos sexuais? Só conhecemos tudo isso porque a Igreja Católica tinha aparatos de vigilância e punição dos padres que subvertiam a moral cristã. Punia alguns. Os papéis da Inquisição dão a prova. Os jesuítas, por sua vez, quase não aparecem como réus nesses escândalos: Ad majorem Dei Glorium – tudo pela glória de Deus. Ou, como diria Gilberto Freyre: “donzelões intransigentes”.


Ronaldo Vainfas é professor da Universidade Federal Fluminense e autor de Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 8, nº 93, junho 2013. p. 21-22.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A voz das ruas: a primavera brasileira


A primavera brasileira, que chegou no inverno, tem feito reivindicações sociais e econômicas de forma precisa, relativas aos transportes públicos, à educação e à saúde. Do mesmo modo, formularam-se críticas contundentes a escolhas e decisões do governo em matéria de política econômica, como, por exemplo, os gastos – indecentes – autorizados para a construção de monumentais estádios de futebol, quando, em contraste, os serviços públicos apresentam um quadro de lamentável precariedade. Com as manifestações do dia 11 de julho, suscitadas pelas centrais sindicais, e por organizações de trabalhadores da cidade e do campo, estas questões ganharam ainda em amplitude e profundidade. De modo imprevisto, pode-se dizer que elas entraram na pauta atual dos debates que se travam na sociedade, constituindo um ganho irreversível dos movimentos em curso.

Mas não apenas de direitos econômicos e sociais tem falado a Rua.

Apareceram com grande força reivindicações de caráter político. O principal alvo tem sido a mal chamada “classe política”, evidenciando-se um processo de autonomização crescente entre os políticos profissionais e os partidos, de um lado, e a sociedade, de outro. O autismo de certos representantes, como os notórios presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, que se permitiram usar aviões da Força Aérea para viagens privadas, resumem, mas não exaurem, o descompasso entre os partidos políticos e os cidadãos comuns.

O problema não é apenas brasileiro. Trata-se de um fenômeno universal.

Criados originalmente por movimentos de trabalhadores, ao final do século XIX, no contexto da civilização fordista triunfante, os partidos, nas primeiras décadas de sua existência, dispunham de elevada representatividade e pareciam exprimir fielmente anseios e aspirações sociais. No entanto, já antes da Primeira Grande Guerra, em luminoso estudo, Robert Michels, analisando o partido social-democrata alemão, apontava nítidos sinais de burocratização, devido a padrões de organização centralizados, verticais, hierárquicos. Abria-se um fosso entre representantes e representados, constituindo-se os primeiros numa espécie de “estrato diferenciado”, que se reproduzia continuamente, através de mecanismos próprios, longe da vontade e do controle dos últimos.

A tendência acentuou-se com o passar das décadas, afetando o conjunto da vida partidária, baseada no modelo fundado pela social-democracia alemã, embora os partidos fossem muito diferentes entre si e defendessem diferentes programas e objetivos.

As estruturas partidárias, contudo, mantiveram-se, protegidas por instituições e legislações específicas, reproduzindo-se, nutrindo-se da própria seiva, ampliando-se, monopolizando a competição pelo poder e quase toda a vida política das sociedades. Nos anos 1920 e 1930, questionado fortemente por alternativas de direita (nazi-fascismo) e de esquerda (socialismo soviético), o regime dos partidos sobreviveu a duras penas. O programa democrático, em nome do qual fora esmagado o nazi-fascismo, deu a eles um fôlego renovado.

Entretanto, desde os anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, teve início uma curva descendente, lenta, mas insofismável, da influência dos partidos políticos na vida social. Nos anos 1960 e, especialmente, no ano quente de 1968, quando se multiplicaram contestações e questionamentos à ordem vigente, os partidos pouco tiveram a dizer, sempre a reboque dos acontecimentos, perdendo prestígio e representatividade.

Nos regimes democráticos, mais consolidados, é claro, há décadas, o crescimento da abstenção e do voto nulo. Desconfiados, os cidadãos afastam-se dos partidos, que já não empolgam as pessoas, sobretudo a juventude. Por outro lado, em inúmeras convulsões que têm marcado os últimos anos – derrocada de ditaduras, desagregação do socialismo na União Soviética e na Europa central, “primaveras árabes”, entre outros -, os partidos políticos têm evidenciado notável incapacidade de diálogo e de protagonismo, sendo praticamente ignorados.

O Brasil não escapa dessa tendência. Ao contrário, alguns aspectos particulares a têm reforçado em nossas latitudes: o esplêndido isolamento de Brasília, transformada numa espécie de “ilha da fantasia”; as mordomias, existentes desde a fundação da nova capital, ampliadas à época da ditadura e, desde então, sempre reforçadas; salários desproporcionalmente altos; crédito fácil e barato; aposentadorias compensadoras; planos de saúde especiais; passagens aéreas gratuitas; assessorias sem tamanho; privilégios que não encontram paralelo no mundo, mesmo em países muito mais ricos, e que não se limitam ao Parlamento federal (Câmara e Senado), estendendo-se ao Executivo e ao Judiciário.

Construiu-se uma espécie de barreira que separa os (podres) Poderes da cidadania, intensificando dinâmicas que isolam, cada vez mais, as elites políticas da população.

Quando os episódios eleitorais, por mais que se renovem os parlamentos – e o índice de renovação não é desprezível -, a situação se reproduz. Os novos eleitos, cedo ou tarde, uns mais, outros menos, tendem a ser engofados por esse mundo de privilégios, onde (quase) todos fazem o que “todos fazem”. Em meio à prevaricação, o anormal converte-se em norma, e “otário” é quem luta contra a insânia.

Espelho da nacionalidade, deputados e senadores, desembargadores e ministros dos tribunais, presidente e governadores não são “monstros”, ou extraterrestres, mas brasileiros, eleitos ou nomeados por brasileiros. Em certo sentido, representativos, a par das distorções não negligenciáveis derivadas da legislação eleitoral e da ação do poder econômico.

O coro de tudo arrasar e destruir, sob a alegação de que o regime é falido, não se sustenta. Já passamos por uma longa – e recente – ditadura, feita em nome da luta contra a corrupção e que só fez multiplicar desmandos de toda a ordem, acrescentando-se a tortura como política de Estado.

Não se trata, portanto, de desmontar o regime dos partidos, mas de impedir que eles dominem sem contraste a vida política. Sociedades complexas não dispensam representantes, mas podem aprender a regular e a reduzir seu poder, a controlá-los. Assim como é sabido que monopólios são deletérios na vida econômica, trata-se, na vida política, de acabar com o monopólio dos partidos.

Os movimentos sociais da “primavera” brasileira, tão eficazes na denúncia dos desmandos econômicos e sociais e na formulação de reivindicações nessas áreas, estão desafiados a formular uma plataforma de reforma política que, sem destruir o regime democrático, o aperfeiçoe, impedindo que as dinâmicas autonomistas cavem abismos intransponíveis entre representantes e representados.

É com esse ânimo e essa intenção que têm circulado na sociedade algumas ideias que merecem sem consideradas. Elas aqui vão relacionadas na perspectiva de contribuir para um urgente e decisivo debate.

1 Extinção do Senado e criação de um Parlamento unicameral. A noção do respeito pela Federação, assegurando-se a todos os estados patamares razoáveis de poder e influência, para que não sejam esmagados pelos mais poderosos, pode ser garantida mediante quocientes desiguais de representação, beneficiando estados menores ou menos populosos.

2 Extinção do maldito instituto da reeleição. Introduzido em má hora, por métodos heterodoxos e casuísticos, espalhou-se como praga, contaminando múltiplas instituições públicas, inclusive escolas e universidades. Hoje em dia, o político ou o administrador que não consegue se reeleger se tem como fracassado. Desde a primeira investidura, só pensa na segunda ou na terceira, contribuindo para viciar o processo político. A reeleição deveria ser proibida em todos os níveis e para todos os cargos públicos. Respeitado um período de “quarentena”, a ser definido, o político poderia concorrer de novo.

3 Redução dos mandatos de parlamentares, em todos os níveis, para dois anos, o que, aliás, já é praticado nos Estados Unidos (deputados estaduais em diversas unidades da federação norte-americana têm mandato de apenas um ano).

4 Diminuição drástica dos privilégios e das assessorias dos parlamentares que passariam a ter assessores profissionais, aprovados em concursos públicos.

5 No financiamento das campanhas eleitorais, proibição, sob severas penas, de doações de pessoas jurídicas, fixando-se um teto de R$ 5 mil reais para doações de pessoas físicas.

6 Manutenção e ampliação do horário eleitoral gratuito, estabelecendo-se tetos para o custo de tais programas.

7 Estabelecimento de candidaturas avulsas. Qualquer cidadão poderia ser candidato para cargos parlamentares, caso contasse com aprovação de 20 mil eleitores registrados, aumentando-se o quociente para candidaturas a cargos executivos.

8 Facultar a determinadas instituições civis a possibilidade de indicar candidatos.

9 Ampliação da legislação sobre plebiscitos e referendos. Plebiscitos obrigatórios para questões indicadas por mais de 500 mil cidadãos.

10 Ampliação da legislação concernente às iniciativas populares, obrigando-se o Parlamento a considerar tais iniciativas prioritariamente, caso reunidas 300 mil assinaturas, aferidas por meios eletrônicos.

11 Regulamentação das mídias impressas e audiovisuais, segundo padrões já definidos em regime democráticos europeus.

Se a primavera brasileira conseguisse unificar-se em torno de alguns desses pontos, formulando uma plataforma de reforma política, a ser aprovada por um plebiscito nacional, poderíamos, talvez, quebrar o círculo vicioso que bloqueia e desmoraliza o regime democrático. Em vez de destruí-lo, trata-se de radicalizá-lo, democratizando a democracia.


Daniel Aarão Reis é historiador da Universidade Federal Fluminense (UFF). In: Revista História Viva. Ano IX, nº 118. p. 27-29.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Revolta do Vintém

Charge sobre a Revolta do Vintém

Não é de hoje que aumentos das tarifas de transporte público tornam-se estopim para manifestações e revoltas populares no Brasil. Em 1880, a cobrança de uma taxa na passagem de bonde transformou a capital do Império, o Rio de Janeiro, em praça de guerra - e contribuiu para desestabilizar a monarquia brasileira, que cairia nove anos depois. O movimento, considerado o primeiro grande distúrbio urbano no país pela melhoria dos serviços públicos, ficou conhecido como Revolta do Vintém. Pelo menos três pessoas morreram e centenas ficaram feridas durante os dias em que a confusão tomou conta das ruas do Rio. Um vintém equivale a menos de 20 centavos em dinheiro de hoje, mas o cálculo é uma aproximação.

A revolta começou em 13 de dezembro de 1879, quando a Coroa anunciou um imposto de 20 réis - equivalente a um vintém - sobre as tarifas de bondes puxados a burro, um dos principais meios de transporte da população na época. O tributo, chamado de "imposto do vintém" seria cobrado diretamente nas passagens a partir de 1º de janeiro de 1880 e foi instituído pelo governo como forma de diminuir o déficit público. Na prática, era um aumento no preço da passagem, e considerável: da ordem de 20%.

Não tardou para que a medida ganhasse as páginas dos jornais e a reação negativa da população. A primeira crítica era que o novo imposto atingiria da mesma maneira os ricos e os pobres, já que o bonde era praticamente o único meio de deslocar-se por grandes distâncias na cidade. A primeira manifestação ocorreu no dia 28 de dezembro. Foi um ato pacífico que reuniu 5 mil pessoas (a população do Rio era de 1,1 milhão de habitantes) no Campo de São Cristóvão para ouvir o discurso do abolicionista e republicano José Lopes Trovão. Dono do jornal Gazeta da Noite, Trovão tornou-se um dos principais líderes do movimento. Dali, a multidão seguiu em passeata até o Palácio da Boa Vista, onde estava o imperador dom Pedro II.

Um mensageiro da Coroa trouxe a informação de que o monarca, mesmo a contragosto, aceitaria receber uma comissão de manifestantes para discutir a taxa, mas o recado foi ignorado. Os republicanos procuravam tirar o máximo de proveito político da situação. Mesmo assim, o dia terminou sem incidentes e a multidão se dispersou em paz.

Nos dias seguintes, a imprensa conservadora criticou o fato de os manifestantes não terem aberto o diálogo com dom Pedro II. No dia em que o imposto começaria a ser cobrado, uma grande manifestação foi organizada no Largo do Paço. Trovão fez um breve discurso pedindo que a população reagisse pacificamente à cobrança do imposto, mas não foi ouvido. Grupos de manifestantes começaram a seguir pelas ruas da Carioca, Uruguaiana, Visconde do Rio Branco e Largo São Francisco, ponto de partida e chegada da maioria das linhas.

Ali, começou o confronto. Para protestar contra a cobrança do vintém adicional, os manifestantes tomavam os bondes, espancavam os condutores, esfaqueavam os animais utilizados como tração, despedaçavam os carros, retiravam os trilhos e, com eles, arrancavam as calçadas. Os focos de tumulto pipocaram em vários pontos do centro do Rio de Janeiro, com barricadas e depredação. Manifestantes entraram em conflito com a polícia, que respondeu à bala, matando três pessoas.

A confusão continuou no dia seguinte. Trilhos de bonde continuaram a ser arrancados das ruas e as chaves dos veículos, roubadas. Das janelas, garrafas e pedras eram atiradas em direção aos veículos. No decorrer do dia, várias pessoas foram presas e a polícia solicitou reforço do Exército, que passou a controlar a situação reprimindo os focos com golpes de cassetete - ou tiros. No dia 3 de janeiro, a situação estava um pouco mais calma, resumindo-se a alguns focos de tumulto na Rua do Ouvidor, rapidamente sufocados pelas tropas do Exército.

A situação só foi totalmente controlada no final do dia 4, quando alguns manifestantes tentaram impedir a circulação de bondes na Rua Sete de Setembro, sem sucesso. Por causa da pressão popular, o imposto acabou sendo revogado em setembro de 1880. Mas os danos foram além de manifestantes mortos e dos bondes destruídos. Diante do desgaste político, todos os integrantes do Ministério da Fazenda foram substituídos por ordem do imperador.

Não se sabe ao certo o número de feridos durante as manifestações e tampouco se os mortos foram apenas os três registrados no primeiro dia do confronto. O que se sabe é que o Rio de Janeiro viveu dias de grande tumulto, com saques de lojas, roubos e população em pânico. [...]

"A Revolta do Vintém representou uma mudança na forma de atuação política, até então concebida apenas como a atividade institucional e parlamentar, com um sistema eleitoral marcado pelo voto indireto e censitário", afirma o historiador Claudio H. M. Batalha [...]. "A política deixou de ser restrita ao Parlamento e passou a ser feita também nas ruas, por meio de panfletos, comícios e manifestações." Batalha lembra que a revolta teria efeitos de longo prazo, ao ampliar as campanhas abolicionistas e republicana com gente na rua.

É muito difícil - tirando o foco de que a razão que deu início ao protesto foi o aumento no preço do transporte urbano - traçar paralelos entre o que aconteceu na década final do império e as manifestações que começaram a ocupar as ruas das principais cidades brasileiras em junho.

"Ambos tiveram como estopim o aumento do custo das passagens do transporte público, depararam-se com reações violentas da polícia e a questão inicial dos transportes apontou para outros problemas enfrentados pela população", afirma Batalha. "Mas na Revolta do Vintém as lideranças políticas tiveram papel essencial, enquanto que o processo recente é muito mais horizontalizado", diz o historiador. Para Batalha, assim como a Revolta do Vintém mudou a percepção da política, dos gabinetes para as ruas, no final do Império, muita gente acredita que algo similar ocorrerá a médio prazo no processo que o país vivenciou a partir do meio do ano. [...]

Marcus Lopes. Passe livre, versão século 19. In: Revista Aventuras na História. Edição 121, Agosto 2013. p. 56-59.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Revolução Inglesa (1640-1688)

Pensada originalmente como um termo astronômico por Nicolau Copérnico, a palavra “revolução” apareceu pela primeira vez no campo político, no decorrer do século XVII, a fim de designar o longo processo histórico iniciado na Inglaterra, em 1640, com a Revolução Puritana, seguido pela restauração monárquica de 1660 e concluído com a solução conciliadora da Revolução Gloriosa, no ano de 1688.

Por meio dessas três fases, a Revolução Inglesa trouxe consigo uma transformação sem precedentes na história da humanidade, liberando as forças modernizadoras do modo de produção capitalista das entranhas de um sistema feudal em decadência.

O processo revolucionário inglês apresenta-se, assim, como um modelo de transição ao capitalismo industrial, primeiramente de forma violenta, em 1640, logo depois, em 1688, de maneira conciliatória. Um processo que, ao término de meio século de lutas entre monarquia e Parlamento, por meio de uma solução monárquica constitucional, conseguiu criar a condição primordial para o crescimento econômico de orientação capitalista: a estabilidade política sob a nova direção de uma classe burguesa que tomou para si o poder estatal, fortalecendo-o em suas relações internas com outras classes sociais e em suas relações externas com outras nações.

Nesse contexto, realizando em termos práticos as orientações da teoria política liberal, a burguesia consolidou seus valores fazendo uso de uma monarquia limitada em seus poderes, isto é, o clássico mote do rei que reina mas não governa, pois quem dava as cartas a partir de então era a burguesia revolucionária.


Execução do rei Carlos I. Artista desconhecido.

E foi exatamente fundamentado no ideário liberal recém-nascido que os revolucionários ingleses do século XVII apresentaram ao mundo a primeira grande carta de direitos da modernidade – o Bill of Rights.

Por seu intermédio, a ideia de cidadania veio à tona, associada ao entendimento de que os indivíduos deveriam ter seus direitos garantidos e tutelados pelo Estado, sendo este responsável pela defesa e proteção das liberdades civis dos cidadãos: liberdade de pensamento e expressão, de ir e vir, religiosa, de propriedade etc.

Com isso, a Revolução Inglesa rompeu com a noção de que os indivíduos tinham apenas deveres a prestar ao soberano, inaugurando uma autêntica era dos direitos que seria devidamente ampliada em termos universalizantes com as duas outras grandes revoluções políticas que lançaram as bases da modernidade: a Francesa, de 1789, e a Americana, de 1776.


Marco Mondiani. Revolução Inglesa. In: BETING, Graziella. Coleção história de A a Z: [volume] 3: Idade Moderna. Rio de Janeiro: Duetto, 2009. p. 60-61.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A arqueologia e suas áreas de pesquisa

A arqueologia possui múltiplas origens e muitas áreas de especialização. Normalmente, distingue-se a “arqueologia dos Estados Unidos” da “arqueologia europeia”. Nos Estados Unidos do século XIX, os historiadores tratavam da civilização ocidental e euro-americana, enquanto cabia aos antropólogos o estudo das outras culturas, no presente ou no passado, em especial as ameríndias.

Seguindo essa tradição, a antropologia consolidou-se como área composta de lingüística, voltada para o estudo das línguas, da etnologia, dedicada a observar os ameríndios vivos, e da arqueologia, encarregada do estudo dos vestígios dos índios mortos. Com o decorrer do século XX, ampliaram-se os interesses da antropologia norte-americana e, por extensão, da arqueologia, que passou a tratar até mesmo da própria sociedade euro-americana, com o desenvolvimento da chamada arqueologia histórica, definida como o estudo arqueológico do “mundo moderno” (a partir do século XV).

Na Europa, a arqueologia surgiu derivada da filologia e da história, preocupada em estudar os vestígios materiais da civilização ocidental. A primeira a surgir e, em certo sentido, a mais prestigiosa, foi a arqueologia clássica, já no início do século XIX, voltada para o estudo das civilizações grega e romana da Antiguidade. O próprio nome remete às suas origens, pois surgiu como derivação dos cursos de estudos clássicos, centrados nas línguas e literaturas clássicas, grega e latina, mas englobando disciplinas como história antiga, história da arte antiga, numismática (estudo das moedas), epigrafia (estudo das inscrições) entre outras.

Uma escavação, Thomas Jones

Em seguida, surgiram as arqueologias egípcia, bíblica, mesopotâmica, voltadas para as civilizações precursoras àquelas chamadas clássicas. Essas diferentes formas de arqueologia chegaram aos Estados Unidos, mantendo-se separadas da arqueologia praticada nos cursos e trabalhos de antropologia. O século XIX foi marcado pela afirmação dos estados nacionais e pela ideologia nacionalista que buscava resgatar/criar valores para explicar e justificar as nações que surgiam ou se consolidavam. Esse nacionalismo incentivou o desenvolvimento das arqueologias que se voltavam para o estudo dos primórdios das nacionalidades, como no caso da arqueologia medieval europeia.

Ao lado dessas arqueologias históricas, o século XIX viu surgir o interesse pelo passado mais recuado, na própria Europa. Até a publicação de A Origem das espécies, de Charles Darwin, em 1859, livro que marcou época por explicar a origem do homem sem recorrer à religião, o passado da humanidade ainda estava ligado às interpretações bíblicas que atribuíam ao homem apenas alguns milhares de anos. As teorias evolucionistas deram novo alento ao estudo do passado mais remoto, baseadas na noção de evolução das espécies e, portanto, do homem, com a busca sistemática dos vestígios dos antigos seres humanos e de seus antepassados, os hominídeos.

A partir de meados do século XIX, começam a ser estudados os períodos mais recuados, em particular com o estudo dos períodos geológicos associados a artefatos feitos de pedra (ou líticos, no jargão arqueológico), criando-se os termos Paleolítico ou Idade da Pedra Antiga (antes de 8.000 a.C.) no Oriente Médio) e Neolítico ou Idade da Pedra Recente (após 8.000 a.C. no Oriente Médio), em 1865. O termo pré-história passou a ser usado, referindo-se ao período da história anterior à escrita, em um quadro de busca das origens das populações europeias e, um pouco mais adiante, da humanidade em geral. Surgiu a arqueologia pré-histórica.

As duas tradições arqueológicas, europeia e norte-americana, contudo, nunca deixaram de diferenciar-se. Na América Latina, ambas têm seus adeptos, gerando uma multiplicidade de influências, às vezes contraditórias. O influxo da arqueologia antropológica norte-americana na América Latina sempre foi muito claro, tanto pela importância política, econômica e cultural dos Estados Unidos na região como pela atração que o modelo norte-americano produziu nas elites intelectuais latinas.

Assim é compreensível a separação que frequentemente se faz em nosso continente entre a história, voltada para o período de colonização europeia, estudada com base nos documentos escritos, e a antropologia, encarregada do estudo dos indígenas, povos sem escrita e que também foram encarados como “outros”. Também a arqueologia histórica, tal como entendida nos Estados Unidos, surgida no final da década de 1970, expandiu-se muito na América Latina a partir da década de 1990.

Todavia, a influência europeia não deixou de fazer-se sentir por aqui, pois a construção das identidades nacionais latino-americanas não deixou de incluir, em diversos países, os ameríndios e, por isso, a busca das origens históricas, à maneira europeia, foi bem recebida entre nossos pensadores. Também o estudo das pinturas rupestres e dos mais antigos vestígios humanos, tão desenvolvido aqui por influência francesa, explica-se, em grande parte, pela adoção da noção de ligação estreita entre o homem moderno e seus antepassados mais recuados no tempo.


FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2010. p. 23-25.

domingo, 24 de novembro de 2013

Imhotep e a pirâmide de degraus em Sakkarah (2630 a.C.)

Ainda hoje multidões de turistas fazem peregrinações à terra dos faraós para experimentar a proximidade direta dessa antiga maravilha mundial construída com pedras.

Em todos os tempos, a grandeza monumental dos túmulos exerceu um fascínio incomum sobre as pessoas.

Aquilo que exércitos imensos de trabalhadores erigiram sobre a terra por volta de 2630 a.C. é e permanece um mistério para nós, um enigma que nos atrai magicamente com seu encanto.

O faraó Snofru (1575 a.C. – 1551 a.C.) figura como o efetivo inventor da construção de pirâmides “lisas”. Mas sem dúvida deve-se agradecer ao rei Zoser e a seu arquiteto Imhotep que, em 2630 a.C., com a mastaba em degraus em Sakkarah, tenha sido introduzida a época das pirâmides. O mestre de obras Imhotep, a propósito, é o que chamamos um gênio universal. Ele se ocupa de uma série de funções, é erudito, escriba e arquiteto.


Pirâmide em degraus em Sakkarah. 
Foto: Olaf Tausch

Até então, os reis egípcios eram sepultados em mastabas (túmulos cobertos de lajes) simples, câmaras mortuárias subterrâneas, acima das quais se erguiam salas de culto e câmaras para as oferendas do túmulo. O sepulcro de Zoser – primeira construção monumental de pedra – consiste de seis mastabas construídas umas sobre as outras e alcança a altura de 60 metros. O complexo de construções completo abrange uma área de 275 x 545 metros com instalações de templo, rodeada por um muro de dez metros de altura. A pirâmide Zoser ainda não é uma pirâmide “verdadeira”, pois ainda não dispõe as nobres superfícies planas e arestas retas como as suas famosas descendentes de Gizé. Consiste de seis degraus rústicos e por isso é denominada pirâmide de degraus.

Às pirâmides grandiosas pertencem os monumentos mortuários sobre o platô rochoso de Gizé, 13 quilômetros a oeste do Cairo, mandadas construir por volta de 2500 a.C. por Quéops, Quéfren e Miquerinos, todos eles reis egípcios da quarta dinastia. As três pirâmides, que se contam entre as mais significativas realizações arquitetônicas da humanidade, não são apenas monumentos gigantescos dos faraós, mas figuram também como trono do sol. Em seu ápice devem se reunir o deus-sol Rá e o deus-rei egípcio. Todas possuem a instalação monumental do templo dos mortos no alto, vestíbulo e templo embaixo. A pirâmide de Quéops, cobrindo uma área de 53.000 m² e uma altura original de 147 metros, é a maior do mundo.


Pirâmide de Gizé. 
Foto: Jerzy Strzelecki

Mas por que as pessoas se empenham em construir monumentos semelhantes? As imensas pirâmides de pedra sobre os túmulos dos reis devem manter seu corpo terreno inalterado por todos os tempos e garantir a inviolabilidade das múmias silenciosas nas câmaras mortuárias adjacentes. Ninguém deve perturbar a serenidade dos túmulos dos mortos, motivo pelo qual se procura ocultar aos invasores os acessos às câmaras mortuárias secretas do rei e da rainha por meio de corredores angulosos e labirintos. Entretanto, mesmo as passagens bloqueadas de vários modos com blocos de granito não conseguem impedir os violadores de túmulos de avançar até as câmaras dos sarcófagos. Os túmulos de reis e rainhas, com tesouros preciosos como oferendas do túmulo, já eram saqueados mesmo na Antiguidade.


UMA BREVE HISTÓRIA DAS DESCOBERTAS: DA ANTIGUIDADE AO SÉCULO XX. São Paulo: Escala, 2012. p. 17-19.

sábado, 23 de novembro de 2013

Corpo, objeto político

Historicamente, o termo “corpo” (do latim, corpus) era utilizado pelas ciências biomédicas e exatas para explicar organismos vivos e esquemas matemáticos. Epistemologicamente, esteve ligado às áreas da biologia e da medicina, sempre analisado do ponto de vista fisiológico e funcional. A historiografia francesa foi pioneira, na década de 1970, ao investigar o corpo como sujeito, com complexos significados. O estudo da história do corpo necessita muitas vezes do diálogo com outras disciplinas, e ela pode ser estudada em associação à religião, à sexualidade, ao Estado, à disciplina, à saúde, mas também aos gestos, ao prazer, à alimentação, às vestimentas, e assim por diante. Daí a dificuldade em criar uma definição absoluta para o termo.


Descansando, Adolf Hölzel

Já na Grécia e Roma antigas existia o culto ao corpo. Esculturas de mármore, à semelhança dos deuses, torneavam o “corpo ideal”, no qual se inspiravam homens e mulheres. Já na Idade Média, o corpo se tornou sagrado, associado à castidade e à religião. Suspenso e exposto, o corpo seminu de Cristo representou o foco de inflexão da sociedade cristã, que contrapôs ao corpo sagrado o profano, vendo-o como infiel (descrente). Isso não quer dizer que a sexualidade, por exemplo, desapareceu naquela época. A diferença é que o prazer não estava mais no corpo, mas sim na exaltação da fé religiosa e, por conseqüência, na defesa da castidade.

Em um retorno conceitual ao classicismo, os renascentistas colocaram o corpo humano no centro do universo (antropocentrismo) e tentaram entendê-lo como uma máquina. A partir da criação dos Estados nacionais, com o Iluminismo dos séculos XVII e XVIII, surgiu o corpo laico, objetivo, material. De caráter coletivo, o progresso de uma nação só poderia ser atingido com um corpo social forte, baseado em preceitos científicos e inspirados pelo cartesianismo da época. É possível dizer que a ideia do bipoder (poder sobre o corpo) nasceu nesse momento, com o crescimento das populações nos centros urbanos.

Na Era Contemporânea, com a ascensão do capitalismo e o nascimento do proletariado, a ameaça de revolta da população insatisfeita vivendo em lugares insalubres conduziu as discussões sobre o corpo para o âmbito da disciplinarização e da medicalização social. Em ambos os casos, as normas e as políticas públicas, voltaram-se para sanar as doenças sociais: loucura, alcoolismo, prostituição e as epidemias, tendo em vista controlar o corpo coletivo para a eficiência no trabalho e o fortalecimento do Estado. O corpo tornou-se então objeto de estudo da medicina, de onde não sairia mais.

Foi somente após o final da Segunda Guerra Mundial que houve uma reorientação dos paradigmas ligados ao corpo. Resultado da somatória de todas as temporalidades, a formulação de um conceito sobre corpo atualmente continua desarticulada. A todos esses entendimentos são somados os desafios impostos no tempo presente: o direito à identidade, o individualismo, a obsessão pelo corpo perfeito, as descobertas genéticas e o corpo cibernético.

O corpo, portanto, é o objeto de estudo da história cultural, e, apesar de ser entendido equivocadamente como uma faceta da vida privada, sobre ele sempre agiram – e agem – micropoderes que pontuaram relações, negociações e resistências. Dessa forma, o corpo não pode ser entendido como um objeto historicamente passivo, mas sim político. (Pietra Diwan é historiadora, mestre pela PUC-SP)


In: BETING, Graziella. Coleção história de A a Z: [volume] 4: Idade Contemporânea. Rio de Janeiro: Duetto, 2009. p. 10.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A sexualidade no mundo medieval

Sob a influência da Igreja, o termo “fornicação” designava, na Idade Média, toda forma de relação sexual fora do casamento e não mais, como em Roma, o comércio com as prostitutas. Em termos de repressão, a união consentida entre duas pessoas livres de qualquer laço (fornicação simples) era sancionada apenas em foros internos, por penitências privadas. As formas mais graves de fornicação tais como o estupro (relações, mesmo que consentidas, com uma virgem, uma freira, uma viúva ou uma doméstica), o adultério, a violação, o rapto, o bestialismo e a sodomia resultavam em penas criminais que, dependendo do caso, poderiam ser até de morte. (Jacques Poumarède)


Casal homossexual. Relevo. Église de Maillezais. 
Foto: Martial34


Em termos médicos, filosóficos e até religiosos, a antropologia cristã se baseou nos saberes antigos, e as principais ideias do corpus médico greco-latino permaneciam: o esperma era considerado um sangue puro e o orgasmo, um esforço difícil. Era importante, portanto, moderar a atividade genésica, que poderia levar à estupidez. E também conter o desejo da mulher, insaciável, se necessário acalmá-la por meio de uma gravidez. Havia uma relação entre o prazer feminino, a normalidade do coito (a penetração) e a finalidade genésica. Além disso, o prazer intenso era visto como epilético.

Médicos e filósofos acreditavam que a saúde do espírito era inversamente proporcional ao vigor genital. O desejo era a submissão do ser, uma fonte de desordem e um obstáculo à sabedoria. O sexo tinha, portanto (como no judaísmo e várias religiões antigas), uma relação perigosa com o sagrado.

Durante toda a Alta Idade Média, o modelo conjugal romano-cristão se chocava com as restrições dos clãs, e a uma poligenia generalizada em toda a aristocracia. A partir do século XI, lentamente a ordem sexual sonhada por alguns clérigos foi sendo parcialmente realizada. Mesmo se alguns “arquipélagos” de padres concubinários persistissem, o clero secular aceitou de bom grado a continência.

Os atos sodomitas heterossexuais – entre eles o coitus interruptus – eram praticados, mas a contracepção era reservada a algumas minorias (sobretudo urbanas) que desenvolveram, sem muita vergonha, a erótica do vestuário, do corpo e dos encontros carnais. Miniaturas, poemas e romances testemunham esse erotismo. (Jacques Rossiaud, professor da Universidade Lyon II)


In: BETING, Graziella. Coleção história de A a Z: [volume] 2: Idade Média. Rio de Janeiro: Duetto, 2009. p.12 e 16.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Prostituição na Idade Média

A miséria, o desenraizamento de jovens camponesas perdidas nas cidades, a rejeição das moças seduzidas e depois abandonadas, todos esses motivos empurraram para a prostituição mulheres que não escolheram vender o próprio corpo. Houve uma prostituição rural e uma prostituição urbana.

No final da Idade Média, as crises econômicas e as desordens trazidas pelas guerras aumentaram o número dessas mulheres, prostitutas profissionais ou ocasionais. O primeiro aspecto, mais particular e sem dúvida fundador de uma atitude assumida relativamente à prostituição, pode ser encontrado na postura da Igreja. É verdade que as “mocinhas” ditas “amorosas” ou “devassas” eram grandes pecadoras. Mas elas podiam ser salvas caso se arrependessem e mudassem de vida. Uma hipótese era conseguirem se casar; a partir do século XII, a Igreja decretou que desposar uma moça pecadora fazia parte dos anais de obras meritórias. Essas “mocinhas” [ou raparigas] também podiam passar o resto da vida sob a rude disciplina de uma instituição religiosa, pois desde o século XII monastérios de todo tipo, com freqüência ditos de ordem de Maria Madalena, acolhiam mulheres arrependidas.


Casa de banhos no período medieval

O segundo aspecto diz respeito às formas de organização dessas atividades. Em certos lugares, as “casas de moças”, “antros de devassidão” e outros “bordéis” mantidos e controlados pelas próprias cidades, eram instituições que contribuíam para o bom funcionamento de toda a sociedade. A prostituição oficial era vista como um dos meios de controlar os excessos e transbordamentos dos celibatários: clérigos, rapazes para quem o acesso ao casamento e às responsabilidades familiares e profissionais estava por ora fechado. Essa clientela masculina considerava poder fazer essas exigências e admitia satisfazê-las dessa forma.

Em outras cidades, a prostituição era tolerada, as matronas proxenetas e suas meninas tinham o direito de viver em algumas ruas a elas atribuídas, onde podiam exercer seu negócio, sob condição de respeitarem os limites impostos pelas regras urbanas – em particular, o uso de roupas que as distinguissem das demais mulheres e a proibição de usar o mesmo tipo de cintos e joias que as burguesas ou as senhoras da nobreza. Isso permite deduzir que uma parte dessas mulheres podia ter uma autêntica carreira, passível de culminar em um casamento, integrando-as à normalidade social e em uma forma de respeitabilidade e de honra. Também se depreende que os lucros auferidos com essa atividade, em particular os aluguéis e rendas cobrados pelas casas que as abrigavam, eram anotados nos registros censitários e livros contábeis de um capítulo eclesiástico ou abadia. Aliás, os canonistas do século XIII admitiam que os dividendos desse trabalho não eram imorais, sob certas condições (dentre as quais, o fato de as mulheres exercerem essa atividade não por prazer, mas por necessidade).

Muitas vezes, os documentos judiciais associavam a prostituição ao roubo e à vigarice, com as mulheres agindo com a ajuda de seus protetores para enganar os clientes. Constava ainda que o estupro de uma prostituta era crime, que era possível o casamento de uma mulher que já tinha se prostituído, que a justiça considerava a hipótese de um marido vender a esposa quando esta, forçada ao pecado, podia obter a separação legal. O desenvolvimento da prostituição nas cidades, no final da Idade Média, produziu uma desvalorização do trabalho feminino: as vendedoras, as trabalhadoras do setor têxtil, em especial, eram acusadas de maus costumes e seus ofícios eram vistos como uma fachada, que escondia outra atividade – desonesta. (Simone Roux, professora honorária da Universidade Paris VII Vincennes-Saint-Denis)


In: BETING, Graziella. Coleção história de A a Z: [volume] 2: Idade Média. Rio de Janeiro: Duetto, 2009. p. 15-16.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Prostituição na Antiguidade

Egito. A prostituição era praticada às margens do Nilo, mas não se sabe com que freqüência. A atividade era moralmente condenada; contudo, além das menções de favores sexuais obtidos em troca de dinheiro, encontram-se várias menções a relações sexuais coletivas em papiros ou ostraca, que não deixam dúvidas da existência de casas de prostituição.

Apesar de alguns documentos com relatos eróticos, o Egito não teve prostituição sagrada. As relações, mesmo íntimas, entre uma sacerdotisa e a divindade ocorriam no contexto da relação simbólica de um legítimo casal. (Michel Baud)

Mesopotâmia. A importância social e o papel positivo da prostituição aparecem na epopeia de Gilgamesh. Uma mulher seduz Enkidu e faz com que ele, de bruto selvagem, transforme-se em homem. Quando Enkidu está próximo da morte, amaldiçoa a prostituta que lhe tiraria a inocência. Depois, percebendo o bem que ela lhe trouxera, volta atrás. O exemplo mostra como os babilônios viam essas mulheres. A prostituição não era um setor marginalizado da sociedade mesopotâmica.

Não havia contradição entre a condição de uma prostituta ou de uma mulher dedicada aos deuses, ambas tinham escapado das regras familiares tradicionais. Assim, funcionárias de templos gerenciavam casas de prostituição, e Nanaya, deusa de Uruk, era associada ao erotismo e sexualidade. (Antoine Cavigneaux)

Mundo greco-romano. De acordo com o direito ateniense, o homem que se prostituía (em uma relação homossexual) perdia a capacidade de exercer uma função pública e de freqüentar locais públicos. A violação era punida com a morte. A razão dessas regras está no papel social desempenhado pela pederastia.

Hetaira urinando dentro de um skyphos. Cerâmica, ca. 480 a.C.

Já a prostituição feminina não era punida, pois cumpria uma função útil, a de evitar o adultério. Havia várias formas de se prostituir, e a mais depreciada era a das mulheres que se vendiam na beira das estradas e em bordéis. Aquelas que acompanhavam os homens na sociedade (fechada às mulheres honestas) e tinham certa educação (da qual as mulheres em geral eram privadas) eram chamadas “acompanhantes”. Diante de alguns templos (e em proveito deles), a prostituição sagrada era praticada, mas não há indícios disso em Atenas.

Cliente e prostituta. Cerâmica, ca. 480-470 a.C.

Pelas mesmas razões, a prostituição feminina sempre foi tolerada em Roma. Mas a prostituta era objeto de reprovação social. A prostituição masculina foi proibida por volta da metade do século III d.C. A constituição imperial de 390 d.C. estabelecia que fossem queimados vivos os homens que se prostituíssem nos bordéis da cidade. (Eva Cantarella)


In: BETING, Graziella. Coleção história de A a Z: [volume] 1: antiguidade. Rio de Janeiro: Duetto, 2009. p. 24.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Homossexualidade no mundo greco-romano

Mais do que evocar uma união homossexual, as relações entre homens estavam relacionadas ao que os gregos da época arcaica e clássica chamavam de paiderastia [amor para jovens]. A paiderastia, praticamente uma instituição nos meios abastados da sociedade ateniense, tinha suas particularidades:

1) A paiderastia implicava uma relação entre um adulto e um país, ou jovem do sexo masculino suscetível de se tornar objeto do desejo sexual de um homem adulto. O termo país designava uma faixa etária que ia da puberdade até a primeira barba, entre 12 e 18 anos, aproximadamente.
2) A aparição de uma penugem nas bochechas de um garoto representava o auge de sua atração sexual, que durava até a chegada da primeira barba. Um jovem podia ser passivo ou ativo na relação, mas com parceiros distintos. Um homem feito que continuasse a ter um papel passivo em uma relação homossexual era zombado pelos outros.
3) A paiderastia era limitada a um período de vida e não estava associada a uma inclinação por um indivíduo em particular. Esperava-se que o homem adulto, depois de uma relação homossexual, se casasse.
4) Mesmo quando as relações pederásticas eram caracterizadas por amor e afeto mútuos, uma assimetria emocional e erótica subsistia. Os gregos a distinguiam falando do Eros [amor, desejo] do amante e da philia [amizade] do amado.


Paiderastia na Grécia antiga. Detalhe de vaso, ca. 540 a.C.

Além da satisfação do desejo sexual e da busca da ternura, a paiderastia também servia para garantir a transmissão do patrimônio econômico, social e político de um homem adulto a um jovem. Supõe-se que na Atenas clássica essas relações tenham tido um papel social. O adulto teria a incumbência de facilitar a entrada desse adolescente na sociedade masculina que dirigia a cidade, no plano econômico e político. Daí decorrem todas as observações sobre a utilidade da relação homossexual que lemos em Platão, principalmente em Fedro e no Banquete.

Assim como na Grécia, a oposição entre homossexualidade e heterossexualidade não existia em Roma, pois as práticas sexuais não eram vistas como um domínio autônomo, desligado do campo social. Não havia sexualidade sem relação de dominação.

Um homem com barba fazendo sexo anal com um jovem imberbe. Lado A da Taça Warren, século I d.C.

Em Roma, entretanto, um cidadão, adulto ou adolescente, evitava ter em geral um papel passivo em uma relação. Isso estava reservado para um não cidadão. Em Controvérsias, Sêneca conta que um escravo alforriado acusado por ter realizado favores sexuais a seu mestre foi defendido por seu advogado da seguinte forma: “A passividade sexual para um homem livre é um crime; para um escravo, uma obrigação; para um alforriado, um serviço”. Vários exemplos na literatura (como o Satiricon de Petrônio) mostram que os mestres utilizavam frequentemente esse direito e a consciência social aceitava isso sem problemas. (Luc Brisson, diretor de pesquisas no CNRS)

In: BETING, Graziella. Coleção história de A a Z: [volume] 1: antiguidade. Rio de Janeiro: Duetto, 2009. p. 22.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Erotismo no mundo antigo

Texto 1: Mesopotâmia. O rico corpus de poesia erótica da Suméria remonta ao fim do terceiro milênio a.C. O amor entre o pastor Dumuzi e a deusa Inanna é um dos temas predominantes nesses textos nos quais o tom parece o da poesia cortesã, embora alguns deles pudessem ter uso litúrgico, durante cerimônias da união simbólica do rei, reencarnando Dumuzi com a deusa.

Nesses textos, a mulher expressa seu desejo e excitação, frequentemente com metáforas bastante claras. A sexualidade falocêntrica dos deuses masculinos, tal como representada no mito de Enki e Ninhursafa, ou em Enlil e Ninlil, respondia a uma série de textos nos quais transparecia o ponto de vista feminino.

Placa de argila da antiga Babilônia. Artista desconhecido. Ca. 1800 a.C. A placa mostra uma mulher bebendo em um canudo numa jarra enquanto está sendo penetrada por trás por um homem nu.

Outra categoria de textos, muito mais concretos, era usada nos rituais médico-exorcistas para problemas de impotência. Eram os textos mágicos, conhecidos como Shaziga (“interior ereto”). Um dos rituais para recuperar a potência consistia em fazer três nós em uma corda de harpa e recitar sete vezes: “Que o vento sopre, que o jardim sacuda” que as nuvens se reúnam, que a chuva despenque! Que minha ereção seja um rio transbordante, que meu pênis, estendido como uma harpa, dela não saia!”

Os acádios também tinham uma poesia erótica. Era mais adoçada, embora às vezes extremamente direta. Assim como a poesia cortesã suméria, da qual derivava, podia ser associada ao rei.

Em matéria de sexo, os mesopotâmicos parecem ter praticado de tudo. Mulheres como as naditu (“abandonadas”), devotadas a um deus, não tinham o direito de procriar, mas sua vida sexual – que, segundo diziam, era bem ativa – não seguia regras.

A sexualidade era onipresente, e sua relação com a moral e a religião não causava problemas. Assim, os cultos a Inanna/Ishtar continham diversas práticas sexuais, até com inversão dos sexos.

Provavelmente os babilônios se divertiriam bastante ao nos ver hoje, debruçados doutamente sobre sua sexualidade. Assim como o historiador grego Heródoto, que acreditou que todas as mulheres babilônicas deviam se prostituir pelo menos uma vez na vida.(Antoine Cavigneaux, professor de língua e civilização mesopotâmica na Universidade de Genebra) 


Texto 2: Egito. A representação freqüente da nudez, o uso de sinais diretos na escrita hieroglífica, de amuletos expressivos nos rituais ou a descrição das relações amorosas nos mitos mostram que a civilização egípcia teve, em relação ao sexo, uma atitude dissimuladora ou reprovadora. Excessos de vitalidade e desvios de todos os tipos eram condenados, com os limites impostos pelos códigos da mora e as proibições religiosas. Os cantos de amor do Novo Império, por mais íntimos que fossem, descreviam primeiro a troca de olhares, a ardente espera de um encontro e a perda da razão à medida que o desejo aumentava, sem deixar espaço para a realização do ato, a não ser por alusão.

Amuleto de masturbação de deus hermafrodita. Artista desconhecido. Bronze. Período ptolomaico (332-30 a.C.).

As ostraca [cerâmicas] e os papiros, de uso privado, representavam a obscenidade com poses e refinamentos dos mais diversos, na intimidade do lar ou em prostíbulos. Documentos da época nos permitem definir alguns elementos de linguagem e condutas eróticas, a designação do amante intangível, a excitação causada pelos cabelos femininos soltos.

Como o apetite sexual era considerado um elemento-chave da sobrevivência da espécie, os egípcios não deixariam de admitir, em suas concepções religiosos e funerárias, um erotismo não dissimulado e uma sexualidade às vezes desenfreada. O homem podia satisfazer seu desejo quanto quisesse, pela multiplicação de parcerias. Nos mitos cosmogônicos, deuses demiurgos como Atum, Rê, Amon ou Min, apesar de condenados à autossexualidade em sua solidão primordial, eram deuses itifálicos por excelência, com vigor permanente. Se eles fraquejassem, as deusas ou sacerdotisas, com a qualidade de “mão de deus”, tinham o dever de remediá-los estimulando a virilidade divina.

Objetos cultuais fálicos, concubinas funerárias e amuletos diversos visavam decorar, no contexto das práticas religiosas, as incertezas da reprodução humana, para favorecer a fertilidade. (Michel Baud, pesquisador associado ao Collège de France)

Texto 3: Grécia. O corpo humano era um dos temas de predileção da arte grega. O corpo masculino era geralmente representado nu. Já o corpo feminino, que conheceu algumas figurações nuas de influência oriental (como os marfins do século VIII a.C.), só foi retratado nu no século IV a.C. e na época helenística. Antes disso, já tinha sido representado com sugestivas vestes molhadas (como Calímaco, monumento das Nereidas) ou semiencoberta.

O nu, geralmente um corpo jovem, apareceu na época arcaica e no começo da época clássica. Durante a época clássica, nota-se uma tendência ao rejuvenescimento de alguns deuses (Apolo, Dioniso, Hermes) e a tendência a uma sutileza nas formas, certa androginia nas estátuas de hermafroditas. Inversamente, os nus femininos representados nos vasos tinham, no século V a.C., uma morfologia principalmente masculina, talvez pelo desconhecimento do corpo feminino, que não se mostrava em público, ao contrário do masculino.


Cena erótica entre um homem jovem e uma hetaira. Artista desconhecido. Cerâmica. Ca. 430 a.C.

A pintura de vasos também era uma fonte importante para a representação do corpo. Alguns dos vasos usados nos banquetes eram decorados com cenas de relações sexuais diversas, que podiam ser divididas em dois grupos: cenas elegantes, com trocas de olhares, e cenas cruas, nas quais se expressava uma relação de dominação entre um homem pertencente ao mundo dos senhores e um ser de estatuto servil, apresentado como simples objeto funcional. (Anne Jacquemin, professora da Universidade Marc Bloch, Estrasburgo)

In: BETING, Graziella. Coleção história de A a Z: [volume] 1: antiguidade. Rio de Janeiro: Duetto, 2009. p. 17-19.