O sistema grego inevitavelmente abarcava vários pontos de vista. Mesmo dentro da Grécia havia uma variedade. Os líderes atenienses com frequência criticavam os espartanos por darem muita liberdade às mulheres. Os gregos também comerciavam muito com regiões do Mediterrâneo e Mar Negro, o que os expunha a muitas culturas diferentes. Em geral, formas alternativas de agir e fazer eram acolhidas com um misto de zombaria - os gregos chamavam outros povos de "bárbaros" - e tolerância. Não havia a postura de acolher o novo como sendo útil aos próprios costumes. Ao mesmo tempo, considerável ignorância do mundo externo e complacência sobre os padrões gregos, somadas a algumas tensões no que diz respeito às mulheres, podiam se combinar para que os relacionamentos homem-mulher em outras sociedades fossem vistos com exageros curiosos.
O historiador grego Heródoto
Ἡροδότου Ἁλικαρνησσέος ἱστορίης ἀπόδεξις ἥδε, ὡς μήτε τὰ
γενόμενα ἐξ ἀνθρώπων τῷ χρόνῳ ἐξίτηλα γένηται, μήτε ἔργα μεγάλα τε καὶ θωμαστά,
τὰ μὲν Ἕλλησι τὰ δὲ βαρβάροισι ἀποδεχθέντα.
Heródoto 1.1
Tradução: Este é o relato das investigações efetuadas por Heródoto de
Halicarnasso, para que os feitos dos homens não se percam com o tempo e nem as
grandes e admiráveis obras dos helenos e dos bárbaros fiquem sem glória.
Heródoto, o primeiro historiador grego autor de relato de viagens, nasceu por volta de 484 a.e.c. Estudou em Atenas e viajou por grande parte do Império Persa, isto é, por quase todo o Oriente Médio, assim como Egito e partes vizinhas do norte da África, incluindo a Líbia. Também viajou para o norte do Danúbio na Europa e para o Mar Negro. Nessas viagens, muito extensas para a época, ele coletou histórias sobre sociedades, algumas sem chegar a entender direito. Escreveu sobre o mundo que descobriu em sua obra História, que focalizou livremente as guerras entre Grécia e Pérsia, ocorridas entre 499 e 479 a.e.c.
Heródoto era um observador cuidadoso, ávido para separar o fato da ficção. Era também muito interessado e tolerante para com os costumes que diferiam de sua Grécia natal. No entanto, aceitou e reproduziu inúmeras distorções. Foi ingênuo no que diz respeito a animais bizarros e incorporou sem críticas histórias de sociedades em que as pessoas teriam o hábito de comer os pais idosos. Além do mais, acatou variações dramáticas no tratamento das mulheres.
Ao descrever o povo lídio, por exemplo, afirmou que
As filhas de todas as famílias de classe baixa da Lídia são prostitutas para que possam acumular um dote que lhes permita casar, e elas arrumam seus próprios casamentos... Afora essa prática de terem suas filhas trabalhando como prostitutas, os costumes na Lídia não são diferentes dos da Grécia.
Como observador tolerante e encantado com a variedade da vida humana, Heródoto aceitou uma implausível generalização, focada em hábitos sexuais extremados. No caso dos agartisianos, do norte do Mar Negro, ele afirma que
qualquer mulher está disponível para qualquer homem para fazer sexo, para assegurar que os homens são todos irmãos e que eles estão em termos amigáveis uns com os outros, uma vez que são todos parentes. Em outros aspectos, seu tipo de vida é semelhante ao dos trácios [um grupo do norte da Grécia].
Descrevendo os líbios, do norte da África, diz que "Outro costume raro deles é que quando suas mulheres jovens estão para se casarem, postam-se perante o rei e as que lhe agradarem são defloradas por ele." De outro grupo líbio, escreveu:
É costume que cada homem tenha certo número de esposas, mas [...] qualquer mulher está acessível para qualquer homem para sexo; um pessoal postado em frente de uma casa indica que está havendo uma relação sexual lá dentro. Quando um homem nasmoniano se casa, primeiro é costume a noiva ter sexo com todos os convidados, um depois do outro em sua noite de núpcias; cada homem que tem sexo com ela lhe dá um presente que trouxe de casa.
Outras histórias destacam mais a violência do que sexo. Uma tribo influenciada pelos gregos morando no Egito, os ausees,
celebram o festival em homenagem a Atena [uma deusa grega] uma vez por ano quando as moças solteiras da tribo dividem-se em dois grupos e lutam entre si com pedras e paus; as mulheres dizem que essa é a maneira pela qual pagam as dívidas de seus ancestrais para os deuses... Elas dizem que as mulheres que morrem nessas disputas não eram verdadeiramente virgens. Antes de deixarem-nas lutar, elas se unem para vestir a mais bela da geração seguinte de moças com um elmo coríntio e uma armadura grega.
Aqui, se é verdade, havia um fascinante caso de sincretismo, com a parafernália grega emprestada para um ritual que não era de forma alguma grego. Heródoto termina esse texto novamente com sexo.
Eles tinham relações sexuais com mulheres de forma promíscua; em vez de viverem em casais, sua vida sexual é a de verdadeiros animais. Quando o bebê de uma mulher cresce, na altura do terceiro mês, todos os homens se reúnem e a criança passa a ser filho do homem com o qual mais se parece.
Heródoto dedicou considerável atenção às amazonas, grupo de mulheres guerreiras que em geral agiam sem os homens, e supostamente viveram na Ásia Central. Aqui, ele elaborou uma crença já disseminada na Grécia. Os gregos afirmavam ter lutado contra as amazonas, que viciosamente matavam todos os homens que podiam. Num relato em que as amazonas se misturavam com outros povos para pelo menos se casarem e se reproduzirem, uma garota amazona tinha de matar um homem antes de se casar. Outra história via as amazonas se misturarem com outra tribo chamada scitianos cujos homens conseguiram ter relações com as guerreiras. Os scitianos convidaram as amazonas para viver em sua terra, mas as amazonas responderam:
Será para nós impossível viver com suas mulheres, porque nossas práticas são completamente diferentes das de vocês. Não aprendemos trabalhos de mulheres. Nós lançamos flechas, manejamos dardos, montamos cavalos - coisas com que suas mulheres não sabem lidar. Elas só ficam em seus lugares e fazem trabalhos de mulheres; elas nunca vão caçar ou a qualquer outro lugar.
E os jovens concordaram, e daí em diante as mulheres passaram a guerrear e a caçar com seus maridos, "usando as mesmas vestimentas dos homens".
Várias questões relativas a gênero emergem desse relato de viagem. Em primeiro lugar, Heródoto com frequência considera os comportamentos das mulheres muito mais estranhos do que qualquer coisa que tenha encontrado, provavelmente uma decorrência natural de vir de uma organização fortemente patriarcal que tornava fácil rotular e exagerar as diferenças. Em segundo lugar, ele raramente condena - e nisso é como outros observadores mais tarde na história mundial, ávido por acolher e embelezar a variedade humana. Pela mesma razão, contudo, não considera nada digno de admiração: não viu nada que os gregos pudessem incorporar para aprimorar os relacionamentos entre homens e mulheres. Outros povos sim poderiam copiar os gregos. Ele nota que os persas, por exemplo, emprestaram o hábito dos homens de ter sexo com garotos jovens. Os próprios gregos, no entanto, não tinham nada para aprimorar.
Por fim, existe o óbvio fascínio com sexo e violência. Embora não fosse uma sociedade repressiva, a Grécia desencorajava a promiscuidade; nesse contexto, não seria surpreendente que um homem aceitasse ingenuamente histórias de estrangeiros devassos. Certamente, isso era um tema comum nos relatos de viajantes: um uso dos "outros" para estimular fantasias sexuais e/ou despertar desdém moral em casa. As preocupações com mulheres agressivas misturaram um elemento de realidade com alguns medos mais amplos. À medida que os gregos foram tendo contato com grupos nômades, viram-se diante de povos que davam às mulheres papéis maiores do que eles próprios - inclusive papéis de luta. Isso é perfeitamente registrado nos relatos sobre povos do norte do Mar Negro, mas aconteceram exageros, como testemunha a credulidade sobre as amazonas. A ideia de mulheres mais liberais era intrigante, mas também assustadora, ao mesmo tempo que contrastava com a obediência e domesticidade requeridas na terra natal. Aqui, o exagero reflete tensões e ansiedades, advertindo que qualquer relaxamento nos controles patriarcais levaria ao caos. Viagens, nesse sentido, geravam tanto percepções sobre assuntos domésticos como sobre os comportamentos estrangeiros - mas a tendência era de preservar o que tinham, não de utilizar contatos como fonte de inovação.
STEARNS, Peter N. História das relações de gênero. São Paulo: Contexto, 2012. p. 50-54.
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