"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 30 de junho de 2013

As Câmaras Municipais e os "homens bons"

Desde o início do processo colonizador, a coroa preocupou-se em promover a fundação de vilas e povoamentos, buscando garantir a ocupação da terra, a defesa, a exploração econômica e sua consequente arrecadação fiscal. As grandes vilas - especialmente as localizadas no litoral - acabaram transformando-se em pontos fundamentais da base administrativa metropolitana, do controle político dos senhores de engenho, além de ocupar a função social de reunir os moradores próximos em momentos considerados especiais.

Com o intuito de operacionalizar um modelo administrativo sediado nas vilas, aplicou-se no Brasil a organização municipal portuguesa, cujas raízes remontavam ao direito romano. O principal organismo do poder municipal era a Câmara Municipal (também chamada de Senado da Câmara, Câmara dos Vereadores ou ainda Conselho de Vereança) secundado pelo alcaide, este na verdade sob o controle do donatário da capitania.

Além da administração de suas próprias rendas e de seu patrimônio, podemos destacar como principais funções do órgão:

* abastecimento de gêneros comestíveis, principalmente da farinha e da carne;
* regulamentação do pequeno comércio, fiscalizando as licenças de vendedores ambulantes, quitandeiras e feirantes de uma forma geral;
* regulamentação dos preços cobrados pelos artesãos (ferreiros, carpinteiros, alfaiates e outros);
* organização das festas religiosas mais importantes;
* organização de expedições para capturar índios;
* conservação dos chafarizes, dos canos e das bicas, já que a questão da água era fundamental para os colonos;
* construção e conservação das ruas, dos caminhos e pontes;
* regulamentação dos locais para despejo de lixo;
* distribuição das terras municipais e fiscalização da construção dos edifícios.


Festa do Divino, Jean-Baptiste Debret

As câmaras eram formadas por um juiz presidente, de dois a seis vereadores (dependendo da importância) e um procurador. Quanto ao juiz presidente, este poderia ser um representante da elite local, sendo chamado então juiz ordinário, ou um representante real, sendo então chamado de juiz de fora.

A formação dos membros da câmara - quando escolhidos entre os colonos - era feita através de eleições, de que participavam como eleitores elegíveis apenas os chamados homens bons, ou seja, grandes proprietários de terras e de escravos. Segundo as Ordenações, estavam excluídos do processo eleitoral os mecânicos, operários, degredados, judeus e outros que pertenciam à classe dos peões. Para participar da câmara, impunha-se também a obrigação da pureza de sangue, discriminando - até a sexta ou sétima geração - o descendente de judeu e mouro. É claro que tal determinação valeria também para os negros.

"As Câmaras do Rio de Janeiro, São Luís do Maranhão e de São Salvador sempre impugnaram qualquer um que tivesse um vínculo, mais evidente, com a raça negra e, se mulatos eram muito raramente admitidos, fazia-se um notório esforço de estabelecer uma ascendência imaginária com índios, não discriminados pela legislação (embora considerados inferiores pelos colonos)." (LINHARES, Maria Yedda L. (org.). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1990. p. 36.)

Podemos concluir que o próprio caráter da câmara, assim como suas múltiplas funções, representavam os interesses tanto da elite local como dos representantes da coroa. Aí está a razão principal para as tensões futuras que envolveriam as câmaras e as determinações metropolitanas. Enquanto os interesses reinóis coincidiram com os interesses dos senhores de engenho não ocorreram maiores problemas nas atribuições e poderes das câmaras. Entretanto, a situação mudou quando apareceram os primeiros desencontros, quando, a partir da Restauração, a coroa apertou os cintos da elite colonial.

Podemos apontar diversos momentos em que estas tensões vieram à tona: assim foi no caso da escravidão indígena, envolvendo os colonos paulistas e as câmaras de São Paulo. No Rio de Janeiro, os vereadores voltaram-se contra o governador Salvador Correia de Sá e Benevides. No Maranhão, houve envolvimento dos vereadores na Revolta de Beckman, enquanto em Pernambuco o mesmo ocorreu na Guerra dos Mascates. Finalmente, na Bahia, ocorreu o chamado Motim do Maneta, desta vez com tendências populares - representadas através do Juiz do Povo - contra o aumento do preço do sal.

No século XVIII, a política pombalina retirou das câmaras boa parte de sua autonomia. A prática de eleições locais foi substituída, quase que integralmente, pela coroa. Entretanto, apesar do esvaziamento político, tais estruturas administrativas não desapareceram. Como afirmou Bóris Fausto, graças ao seu enraizamento na sociedade, as Câmaras Municipais foram o único órgão que sobreviveu por inteiro, e até se reforçou, após a Independência.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 182-184.

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