"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Art rock made in África

"Arte rupestre da África é a herança comum de todos os africanos, mas é mais do que isso. É patrimônio comum da humanidade. "

Nelson Mandela


A pintura rupestre do continente africano constitui um valioso testemunho da mentalidade mágica dos povos pré-históricos. Suas representações transcendiam objetivos artísticos, cumprindo, primordialmente, um conjunto de funções mágicas de finalidade pragmática: a perpetuação da existência de caça abundante, o alcance do êxito nas guerras e a preservação da capacidade de reprodução da espécie humana. Seu estudo permitiu a reconstituição histórica da vida de povos caçadores, pastores e de civilizações que já haviam adotado a utilização da roda.

As sociedades africanas tradicionais assentavam-se sobre categorias de sexo, idade, relações de parentesco. As divisões baseadas no sexo abrangiam as tarefas e funções de grupo social, manifestando-se já no ritual de iniciação dos jovens e na participação em sociedades distintas e exclusivas. Em geral, cabia às mulheres a tarefa de cultivar a terra, o que as tornava responsáveis pela sobrevivência do grupo, tanto ao nível de subsistência imediata - assegurando a alimentação - como a longo prazo, pela reprodução da espécie. Aos homens pertencia o monopólio das relações com o sagrado e, portanto, a exclusividade das decisões que diziam respeito à coletividade.

Outro elemento regulador da sociedade africana tradicional foi a idade. As gerações apresentavam relações de dominação/subordinação, com preeminência dos mais velhos. Os anciãos possuíam grande prestígio. Existiam também classes de idade: a dos meninos, formada a cada sete anos na época da iniciação sexual; outra reunia os guerreiros solteiros, que só poderiam se casar quando atingissem a terceira classe de idade, por volta dos trinta anos. Todos esses grupos rigidamente estruturados, asseguravam o cumprimento das funções sociais mais significativas segundo as categorias de idade. A passagem de uma classe para outra exigia uma formação complementar, coroada pela realização de um cerimonial específico.

Quando o exercício do poder político é regulado por cerimônias e ritos, o fato geralmente provoca uma ativa criação artística. Tal pressuposto encontra confirmação na África, onde os mais importantes centros de manifestação artística desenvolveram-se junto aos grandes grupos tribais e reinos mais importantes: África ocidental e África central. O domínio do sagrado constitui também ambiente propício às manifestações artísticas. As representações dos ancestrais, os objetos e as máscaras utilizadas pelos membros de associações o atestam. A vida religiosa, assim como as práticas mágicas, é particularmente rica em símbolos materiais e rituais que estabelecem a relação com o sagrado.

Entre os povos primitivos é praticamente inexistente a distância entre o mundo da objetividade e o da subjetividade. Inserido em um ambiente do qual depende de maneira absoluta, o homem primitivo atribui à natureza uma força muito maior do que a sua. As doenças, a morte, os insucessos na caça ou na agricultura, a fome, a seca são acontecimentos que, a um tempo, o desafiam e o submetem. Ser pensante, o homem busca explicar, em termos religiosos, essa força que o domina. Nesse processo de adaptação entre o homem e a natureza, a realidade e a fantasia são fundidas, resultando no aparecimento dos elementos mais conhecidos das religiões primitivas: o culto aos antepassados, as práticas mágicas, o mundo dos espíritos, o animismo e o totemismo.

HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 31-35. Volume III.

Galeria de imagens:

Homem com arco e flecha e cão. Argélia

Gatos em combate. Líbia

Girafa e homens. Namíbia

Figura com atributos masculinos e femininos. África do Sul

Homens e girafas. Zimbábue

Cavalo e homem armado. Mauritânia

Guerreiro e girafas. Argélia

Tchitundu Hulu. Angola

Detalhe de duas pessoas copulando. Argélia

Mulher e cão. Malawi

Inscrição geométrica. Uganda

Homem lançando lança. Argélia

Figuras brancas com as mãos nos quadris. Tanzânia

Antílope. Marrocos

Homens e animais. Zimbábue

Rinocerontes. Botswana

Homem com arco. Argélia

Quatro homens correndo com equipamentos sobre os ombros. África do Sul

Vaca e animal simbólico. Somália

Camelo. Sudão

Crocodilo. Líbia

Dois homens nus com o pênis ereto. África do Sul

Guerreiro montado em cavalo. Chade

Leão, dois guerreiros com lanças e montados em cavalos. Abaixo, cães, uma mulher e um guerreiro. Nigéria

Arte rupestre. Mali

Homem sentado com as pernas cruzadas. Argélia

Camelo branco montado por guerreiro. Chade

Homem e vaca. Egito

Inscrição rupestre. Gabão

Vacas e bezerros. Etiópia

Elefante, homens e girafas. Quênia

Guerreiro. Nigéria

NOTA: O texto "Art rock made in África" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico/antropológico.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Guerra da Coréia (1950-1953)

Em junho de 1950, eclodiu a guerra da Coréia, país que em 1945 se dividira entre um regime comunista pró-soviético, no norte, e um regime favorável aos Estados Unidos, no sul. Ansiosa para restaurar a unidade nacional coreana e supondo, equivocadamente, que os norte-americanos não interviriam, a Coréia do Norte invadiu a Coréia do Sul, possivelmente com a aprovação de Stalin. Os Estados Unidos imediatamente adotaram medidas defensivas, obtendo o apoio das Nações Unidas para uma guerra contra a Coréia do Norte. Sob o comando do general Douglas McArthur, as tropas norte-americanas e sul-coreanas, auxiliadas por uma pequena força adicional enviada pelos outros membros das Nações Unidas, abriram caminho para o norte em direção à fronteira da China. Temendo por sua própria segurança, Mao Tsé-tung enviou "voluntários" chineses para rechaçar o inimigo que se aproximava num ataque-surpresa. Forçadas a recuar, as tropas do general McArthur finalmente se retiraram da Coréia do Norte. A paz foi restabelecida em 1953, com a reafirmação da divisão do país. A Coréia do Sul tornou-se um posto avançado do poder norte-americano.


Massacre na Coréia, Pablo Picasso

O medo da ambição global soviética fortaleceu a decisão de Washington de conter o poder soviético. Sob o governo de Eisenhower (1952-1960), os Estados Unidos estenderam suas alianças aos países da Ásia central e oriental pelas razões que o presidente declarou ao assumir o cargo: "A liberdade que estimamos e defendemos na Europa e na América não é diferente da liberdade que se encontra em perigo na Ásia." Ainda mais próximo de casa, no hemisfério ocidental, os Estados Unidos asseguraram - mediante pressões econômicas, subversão ou intervenção militar, se necessário - que não se estabelecesse nenhum regime pró-soviético nem marxista.

PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 637-638.

NOTA: O texto "Guerra da Coreía (1950-1953)" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sábado, 26 de abril de 2014

Os progressos tecnológicos na Europa medieval

Apesar da aparente estagnação da Europa medieval, o processo de evolução de sua sociedade não parou, criando-se novas soluções para os problemas que a afligiam, embora em ritmo bastante lento. Nos séculos XI e XII, por exemplo, a Europa conheceu um relativo desenvolvimento econômico, graças ao aumento populacional ocorrido em suas diferentes regiões. Embora a idéia de renovação contrariasse a mentalidade da época, era necessário criar meios para alimentar, vestir e abrigar a população que crescia.

Por volta do ano 1000, já fora introduzido um sistema de atrelagem que permitiu um melhor aproveitamento da tração animal, aumentando o rendimento do trabalho. Tal inovação, que compreendia novos sistemas de arreios e a atrelagem de vários animais, em linha, tornou possível também a utilização do cavalo, mais veloz do que o boi, como animal de tração, para o transporte e nas atividades agrícolas.


Mês de fevereiro. Abel Grimmer

Os progressos tecnológicos mais importantes do período medieval foram o moinho d’água e o arado, difundidos a partir do século XI. O moinho d’água já era conhecido na Ilíria desde o século II a.C., mas escassamente utilizado. No Império Romano, por exemplo, a mó era acionada por escravos ou animais. Também o arado de rodas já era empregado no século I a.C., mas seu uso só foi aperfeiçoado durante a Idade Média, ao longo de um lento processo.


Velha mulher que leva um saco de trigo ao moinho. Atribuído a  Barthélémy d'Eyck e/ou Jean Colombe

Ao Ocidente medieval deve-se ainda a difusão e o aperfeiçoamento de uma série de mecanismos, tais como o parafuso, a roda, a catraca, a engrenagem e a polia. Por outro lado, a construção de igrejas e castelos permitiu o desenvolvimento de alguns aparelhos, como roldanas e certos tipos de guindastes rudimentares, que já eram conhecidos desde a Antiguidade. A nobreza feudal, permanentemente voltada para atividades guerreiras, favoreceu o desenvolvimento de novas técnicas na metalurgia, na balística e outros setores ligados à produção de artefatos bélicos.

As populações medievais não incluíam a tecnologia entre os valores de sua cultura. No entanto, as vantagens oferecidas pelos engenhos mecânicos como poupadores de trabalho é mencionada em alguns textos da época. No século XIII, um monge de Clairvaux chegou a escrever um verdadeiro hino de louvor ao maquinismo. Acerca do moinho d’água do mosteiro, dizia ele: “O rio não contradiz nem recusa nada do que se lhe pede. Levanta ou abaixa, alternadamente, os enormes pilões, poupando ao homem uma grande fadiga... Ele combina seus esforços com os nossos, e depois de haver suportado o penoso calor do dia, espera apenas uma recompensa por seu labor: a permissão de ir embora livre, depois de haver cuidadosamente cumprido tudo que lhe pedimos...”

A madeira retirada dos bosques era a principal matéria-prima utilizada na confecção dos artigos manufaturados medievais. Além de sua importante função como combustível, servia para fazer vigas de construção, tábuas para os telhados, mastros de navio, instrumentos artesanais e agrícolas, calçados e toda espécie de utensílios. Os grandes troncos eram muito raros e ansiosamente procurados. A madeira tornara-se tão preciosa, que passou a ser encarada como símbolo dos bens terrestres, constituindo um dos principais produtos de exportação do Ocidente para o mundo muçulmano. Sua importância só se igualava à da pedra, que também era largamente empregada, formando ambas o par de matérias-primas imprescindíveis às técnicas de construção conhecidas na época.

Os arquitetos medievais costumavam ser ao mesmo tempo carpinteiros e pedreiros, e os homens que erguiam as construções eram qualificados como “trabalhadores em madeira e pedra”. A partir do século XI, verificou-se uma progressiva substituição da madeira pela pedra na edificação de igrejas, pontes e residências. Possuir uma casa de pedra era sinal de riqueza e de poder; e, no final da Idade Média, o largo emprego da pedra na arquitetura acompanhou a ascensão da burguesia.

O ferro, ao contrário da madeira e da pedra, quase nunca era utilizado. Na verdade, tratava-se de material bastante escasso, chegando mesmo a ser mencionado em documentos com o respeito devido aos metais preciosos. A maior parte da produção medieval de ferro destinava-se à fabricação de armamentos, o que era feito com o emprego de técnicas helenísticas aperfeiçoadas pelos romanos. Entre outras armas, fabricavam-se espadas de requintado acabamento, que passaram até a ser exportadas para o Oriente. Em menor escala, eram produzidos alguns instrumentos agrícolas, tais como foices, relhas de arado e pás.


HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 176-178. Volume II.

NOTA: O texto "Os progressos tecnológicos na Europa medieval" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

As epopeias do Ramayana e do Mahabharata रामायण और महाभारत के महाकाव्य

रामायण और महाभारत के महाकाव्य

Rama sentado com Sita , abanado por Lakshmana, enquanto Hanumam faz reverência. Artista desconhecido

Composta entre 400 a.C. e 400 d.C., as duas epopeias se tornaram rapidamente os relatos literários mais populares da Índia, e isso apesar de sua extensão monumental: o Ramayana (As Gestas de Rama), conta com 24 mil versículos, enquanto o Mahabharata (A Grande Gesta de Bharata), é, com quase 100 mil versículos, a maior epopeia de todas as literaturas. As condições de elaboração desses gigantescos poemas não gozam sempre de unanimidade entre os indianistas: para alguns, elas devem ser atribuídas a um único autor, para outros resultam de adições e remanejamentos sucessivos. Seja como for, sua transmissão, pela recitação, pela canção, pelo teatro ou pela dança, nunca foi interrompida até nossos dias.


Krishna e Arjun na carruagem. Artista desconhecido

Pela riqueza de seu conteúdo, de inspiração religiosa e filosófica, essa literatura se dirige a todos. As crianças se entusiasmam com as façanhas maravilhosas do "deus macaco", Hanumam, que ajuda o príncipe Rama a libertar a bela Sita. Os letrados encontram no Bhagavad Gita (Canto do Senhor), que constitui o episódio mais famoso do Mahabharata, do que alimentar sua reflexão sobre os deveres das diferentes castas e a conformidade necessária de sua ação com o Dharma, a ordem cósmica.

Se as duas epopeias são inesgotáveis em matéria de mitologia, é difícil extrair delas fatos de valor histórico. Ainda que certos especialistas tenham visto no Mahabharata  um reflexo dos enfrentamentos que ocorreram entre os árias (ou arianos) e as populações autóctones, no 2º milênio a.C., o significado histórico dessa obra reside sobretudo no fato de que é uma resposta - ou, melhor, uma réplica - dos brâmanes diante da expansão do budismo.

SALLES, Catherine (dir.). Larousse das civilizações antigas 3: das Bacanais a Ravena. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 251.

NOTA: O texto "As epopéias do Ramayana e do Mahabharata रामायण और महाभारत के महाकाव्य" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Investigações paleontológicas e arqueológicas no século XIX

Na primeira metade do século XIX, a febre da arqueologia leva a escavações que desenterraram pirâmides, tumbas e cidades inteiras, como Nínive ou Troia. Antigas linguagens são decifradas, nomes como os de Lepsius ou Champollion tornam-se populares no meio científico internacional. Simultaneamente, pesquisas paleontológicas alcançam resultados inesperados: gigantescos répteis do Jurássico dão as caras como fósseis e os seres humanos descobrem terem tido uma autêntica pré-história, repartida em Idades, até Darwin dar o golpe de misericórdia com as suas teorias.


Viagem do HMS Beagle nas costas da América do Sul, Conrad Martens. Darwin teorizou sobre a geologia e a extinção de mamíferos gigantes

Há ainda alguém que pense que somos o centro do universo?  

Datas
Paleontólogos e arqueólogos

1818
A entrada da pirâmide de Quéfren, no Egito, é encontrada por Giovanni Battista Bolzoni, explorador e arqueólogo italiano, que nos anos anteriores redescobriria, sob as areias do deserto, tumbas, templos e cidades do Antigo Egito.

1822
O britânico Gideon Mantell encontra na floresta Tilgate, no sul da Inglaterra, dentes fossilizados de um enorme réptil herbívoro, que batizará de Iguanodonte (dente de iguana) três anos depois. Era o primeiro dinossauro identificado.

1824
* Outro pesquisador britânico, o geólogo William Buckland, identifica um fóssil de maxilar de réptil carnívoro extinto, e denomina o animal de Megalosaurus.

* Fragmento de uma estela maior, a assim chamada “Pedra de Roseta (do nome do sítio arqueológico egípcio onde foi encontrada 25 anos antes) é decifrada pelo linguista e egiptólogo francês Jean-François Champollion. A interpretação de seus dizeres (um decreto do rei Ptolomeu V, do século II a.C., sobre o culto divino do soberano) abre as portas para a compreensão dos caracteres hieroglíficos do Antigo Egito.

1830
Combatendo o catastrofismo, que ligava as modificações terrestres a repetidas catástrofes acontecidas no espaço de uma história da Terra relativamente breve, segundo uma cronologia derivada da Bíblia, o geólogo escocês Charles Lyell sustenta a teoria do uniformitarismo, pela qual os eventos geológicos resultaram, e resultam, de processos lentos e graduais, a partir de leis naturais constantes. As ciências começam assim a superar os estreitos limites da cronologia bíblica.

1836
São publicados os resultados de anos de estudos sobre artefatos humanos pré-históricos realizados pelo arqueólogo Christian Jürgensen Thomsen, diretor do Museu Nacional de Dinamarca. A ele se deve a proposta do sistema das três idades (Idade da Pedra, do Bronze e do Ferro) para a sua classificação.

1838
O orientalista britânico Henry Rawlinson interpreta e traduz a inscrição de Behistun, em persa antigo. A inscrição, de 15 metros de altura por 25 de largura, e posta a 100 metros de altura numa antiga estrada do atual Irã, traz uma declaração do rei Dario I da Pérsia, do século VI a.C. Pendurado no penhasco, foi o próprio Rawlinson quem transcreveu, três anos antes, o texto, cuja decifração será um marco na interpretação dos caracteres cuneiformes.

1842
Richard Owen, paleontólogo inglês, é o primeiro a usar o termo genérico dinossauro para a identificação destes enormes répteis pré-históricos.

1843
Cônsul em Mossul, no Império Otomano, o francês Paul Émile Botta começa a realizar escavações que lhe permitirão em breve a identificação da antiga cidade de Nínive, capital do Império assírio.

1844
A descoberta, no vale do rio Somme, na França, de utensílios em pedra no mesmo local em que se encontravam restos de animais extintos leva a aceitação definitiva da existência de seres humanos “primitivos”. A autoria do achado é do francês Jacques Boucher de Crèvecouer de Perthes.

1845
Regressa a Europa, após três anos de explorações e escavações no Egito, o lingüista e arqueólogo alemão Karl Lepsius. Os 15 mil artefatos que levou para Berlim lhe permitiram escrever uma obra em 12 volumes sobre sua viagem.

1859
O naturalista britânico Charles Darwin publica em Londres sua obra A origem das espécies: suas teorias sobre a evolução e a seleção natural oferecem uma releitura da história do homem e da natureza sem a tradicional ênfase antropocêntrica.

1873
Após anos de buscas e estudos, o arqueólogo alemão Heinrich Schliemann identifica, em suas escavações na região da Anatólia, a mítica cidade de Troia, celebrizada pela literatura de Homero. Entre outros vestígios, encontra também o que acredita ser o famoso tesouro do Rei Príamo.

SCORRONE, Marcello. No tempo de Peter Lund... paleontólogos e arqueólogos investigando o planeta. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 9 / nº 99 / Dezembro 2013. p. 68-69.

NOTA: O texto "Investigações paleontológicas e arqueológicas no século XIX" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

domingo, 20 de abril de 2014

A revolta de Boadiceia, rainha dos icenos

Boadiceia. Esta rainha que ousou revoltar-se contra a ocupação romana é um exemplo da participação das mulheres celtas nos combates. Litografia do século XIX.

Em meados do século I de nossa era, na Bretanha (atual Grã-Bretanha), ocupada em parte pelos romanos, restam ainda reinos vassalos, como o dos icenos (Norfolk e Suffolk). Seu rei Prasutagus, à sua morte (por volta do ano 60), deixa um testamento instituindo como herdeiros suas duas filhas e o imperador Nero. Espera assim pôr seu reino ao abrigo dos ataques romanos. O que se produz é o contrário: os centuriões romanos devastam o país, despojam os nobres icenos de seus bens e reduzem à escravidão os parentes do rei. A rainha Boadiceia (ou Budica) é açoitada e suas duas filhas violentadas.



Esses ultrajes impelem os icenos à revolta, logo apoiados por outros povos celtas do Suffolk e do Essex. Aproveitando-se do fato de o governador da Bretanha, Suetônio Paulino, estar ocupado em subjugar a Ilha Mona (Anglesey), os bretões, comandados por Boadiceia, se apoderam de Camulodunum (Colchester), de Londinium (Londres) e de Verulamium (Saint Albans). Os habitantes dessas cidades são atrozmente torturados e mortos. Mais de 70 mil indivíduos são assim massacrados. Voltando às pressas ao saber da revolta dos bretões, Suetônio Paulino encontra o exército dos insurgentes a noroeste do país. No comando de 230 mil bretões, entre os quais muitas mulheres, Boadiceia, montada num carro de combate com suas duas filhas, dirige as operações. Sua aparência física tem do que surpreender os legionários: "forte e alta, assustadora até com seu olhar penetrante e sua voz rouca. Uma cabeleira volumosa de um vermelho ardente descia até a parte inferior de suas costas. Com o pescoço cingido com um pesado colar de ouro, estava vestida com uma túnica de todas as cores e um grande manto preso por um broche" (Dion Cássio). Apesar de superioridade numérica, os bretões, que combatem em desordem, não podem fazer frente à estratégia romana. Vencida, Boadiceia se envenena para não cair viva nas mãos de seus inimigos. Tal foi o fim da primeira heroína da Grã-Bretanha.

SALLES, Catherine (dir.). Larousse das civilizações antigas 3: das Bacanais a Ravena. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 264-265.

NOTA: O texto "A revolta de Boadiceia, rainha dos icenos" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sábado, 19 de abril de 2014

19 de abril: Dia do Índio

Moema, Pedro Américo

Leia neste blog:

Pindorama – Os donos da terra

A vida comunitária tupi-guarani: alimentação, guerra, rituais e arte

Ser índio

O masculino e o feminino nas sociedades indígenas

As artes nas sociedades indígenas

Estranhamente o homem branco chegou

O legado cultural indígena na sociedade brasileira
http://oridesmjr.blogspot.com.br/2011/11/o-legado-cultural-indigena-na-sociedade.html

NOTA: Os textos citados acima não representam, necessariamente, o pensamento deste blog. Foram publicados com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

O grande incêndio de Roma

O incêndio de Roma, 18 de julho de 64, Hubert Robert

Na noite de 18 de julho de 64, um incêndio atiçado por um vento violento surge perto do Circo Máximo em Roma e se propaga em direção ao Palatino, ao Fórum, ao Quirinal e ao Esquilino. Acordados bruscamente de seu sono, os romanos transtornados se espalham pelas ruas e obstruem o trabalho dos vigias (bombeiros) que se esforçam em vão para deter o sinistro. Ausente de Roma, Nero retorna a toda pressa e, sem tardar, toma medidas de urgência, abrindo seus jardins do Vaticano para abrigar os sinistrados. No fim de sete dias, o incêndio é detido aos pés do Esquilino. Mas, imediatamente, novos fogos surgem em outros locais. Depois de nove dias, o fogo é finalmente dominado, após ter devastado 10 dos 14 bairros da cidade.

O incêndio destruiu várias centenas de casas particulares, 10 mil imóveis de aluguel, venerandos monumentos, coleções inestimáveis de obras de arte e manuscritos. Vinte mil romanos estão desabrigados, mas ignora-se o número de mortos e feridos. Rapidamente todos se perguntam sobre o responsável dessa catástrofe e um nome surge com insistência: o do próprio imperador. Para alguns, Nero teria querido destruir uma parte da cidade para reconstruir uma nova Roma mais bela. Para outros, ele teria buscado a inspiração para compor um poema sobre a tomada de Troia. Ficando com medo, Nero designa como bode expiatório a seita dos cristãos, acusando-a de ter, por sua impiedade, provocado a ira divina. Cerca de 200 cristãos são condenados, crucificados e transformados em tochas vivas nos jardins do Vaticano.

É praticamente certo que o imperador não é o responsável pela catástrofe de 64. O fogo surgiu sem dúvida acidentalmente no bairro dos armazéns que estoca óleo, trigo e madeira, e se propagou por causa do vento. Além disso, em pleno verão, as reservas de água eram reduzidas. Entretanto, a lenda do imperador piromaníaco não vai desaparecer tão cedo!

SALLES, Catherine (dir.). Larousse das civilizações antigas 3: das Bacanais a Ravena. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 265.

NOTA: O texto "O grande incêndio de Roma" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

A Espanha e a escravidão

Quando Colombo descobre o que a Europa chamará primeiramente Índias Ocidentais, a escravidão está legalizada na Espanha e regulada pelas Sete Partidas, codificação castelhana do século XIII. Em fins do século XV, há na Andaluzia numerosos escravos negros, vindos da Guiné em naves castelhanas, e a partir de 1479 (tratado de Alcaçovas), comprados nos mercados portugueses. São empregados como serviçais domésticos e ornamentam as comitivas dos senhores. A nobreza os considera trabalhadores e alegres. Mas, possuem-nos para realçar a posição social dos proprietários. A própria Coroa tem escravos. Os enviados à América, geralmente utilizados nas obras públicas, são conhecidos como os "negros do rei".


Contrato escravagista. Lima, Peru, 13/10/1794

A escravidão ibérica (compreendendo Portugal) não tem significado econômico; sua função equivale à propriedade de magníficos palácios, exuberantes tapetes persas, sedas da China e espadas de Damasco. Em outras palavras: um objeto exótico que distingue ainda mais a quem o possui. Mas nas ilhas atlânticas da Madeira, São Tomé e Canárias nasce uma escravidão vinculada às plantações tropicais, e mais particularmente às de açúcar. Este fenômeno é novo em relação ao anterior, porque trata-se de uma estrutura produtiva baseada totalmente no trabalho escravo, cujo produto tem como destino a exportação para a Europa continental. Nem a escravidão e nem as plantações surgem repentinamente: prolongam estruturas similares instaladas durante a Idade Média na Palestina e Síria, na Sicília, Chipre e outras regiões mediterrâneas. Elas antecipam a plantação tropical americana; são seus modelos.

A Coroa espanhola exige - pelo menos no começo - que os escravos enviados à América sejam cristãos: não deviam dar mau exemplo aos índios. Mas quando o governador Ovando informa que na ilha Espanhola (São Domingos), esses cristãos escravizados não são um modelo de mansidão - costumam fugir! - determina-se que da[i em diante entrem nas colônias somente os chamados "negros boçais" (negro recém-chegado, inexperiente, simplório), ou importados da África e obviamente "pagãos" ou "hereges" (os muçulmanos fazem parte desta categoria).

O trabalho negro é testado na extração do ouro e nas plantações, e revela bons resultados. Os africanos - opinam os colonos - são mais dóceis que os índios, mais resistentes e mais capacitados ao trabalho. Os 17 negros que o rei Fernando envia à Espanha, em 1505, cumprem bem as tarefas exigidas. Cinco anos depois, o soberano encarrega a Casa de Contratação de Sevilha de enviar mais duzentos.

Frei Bartolomeu de Las Casas [...] argumentava a favor da escravidão negra; prova que 20 negros conseguem extrair mais ouro que o dobro de índios. Para organizar uma colonização camponesa nas costas de Paria (Venezuela), o ilustre frade pede uma autorização para si e para cada um dos cinquenta emigrantes para conduzir três escravos negros. E depois, é lógico, todos aqueles que o trabalho requeria.

As polêmicas sobre a legitimidade da escravidão são intermináveis [...]. Porém, digamos somente que, em 1789, o ano da Revolução Francesa (quando resta pouco tempo de vida ao império espanhol), uma Real Cédula proclama que a religião, a humanidade e o bem público são compatíveis com a escravidão.

POMER, León. História da América hispano-indígena. São Paulo: Global, 1983. p. 117-8.

NOTA: O texto "A Espanha e a escravidão" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

O Partenon, Atenas, 447-432 a.C.

Partenon
Foto: Thermos

Obra-prima da ordem dórica, o grande templo dedicado a Atena, a deusa virgem protetora da cidade, foi construído graças aos esforços de Péricles. A estátua de culto e as esculturas em relevo abaixo do teto foram projetadas por Fídias, um dos mais destacados escultores da época. No período pós-helenístico, o templo tornou-se uma igreja cristã e, mais tarde, uma mesquita islâmica, até ser destruído por uma explosão em 1687. Entre 1801-1812, os relevos em mármore foram retirados pelo lorde inglês Elgin e encontram-se hoje no British Museum, Londres. [PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 60.]

Partenon

Friso das Esgastinas, Partenon
Foto: Jastrow

NOTA: O texto "O Partenon, Atenas, 447-432 a.C." não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sábado, 12 de abril de 2014

Cativos, sim; escravos, não: o trabalho no Egito antigo

Israel no Egito (detalhe), Edward Poynter 

Diante dos grandes monumentos, como as pirâmides, só nos resta imaginar as massas de indivíduos curvados sob fardos muito pesados e sob as ordens de contramestres sádicos. E se trabalhar para o faraó constituísse de fato uma forma de recompensa?

É um dos temas que despertam mais paixão nos egiptólogos, mas também o fundamentalismo – a palavra não é forte demais – tanto daqueles que negam ferozmente o fato quanto daqueles que afirmam o contrário com veemência, como se a vida de uns e de outros dependesse da resposta. Como se também fosse possível resolver de forma simples um problema envolvendo noções tão complexas quanto as que dizem respeito à liberdade humana.

O Egito não conheceu a escravidão no sentido greco-romano, designando um indivíduo privado de sua liberdade, vivendo sob a autoridade absoluta de um mestre, seja devido ao nascimento – sendo ele mesmo filho de escravo –, seja após ter sido capturado (no decorrer de uma guerra), vendido ou condenado. Considerado como um bem material, ele se torna – para sempre – a propriedade explorável e negociável de outra pessoa. Ao longo do Vale do Nilo, essa forma de escravidão não ocorreu antes da época ptolomaica (século IV antes da nossa era), data em que os gregos se tornaram soberanos do país, levando com eles algumas de suas tradições, em particular a escravidão. Na sociedade egípcia, existiam múltiplos níveis de dependência que ligavam os homens entre si. Alguns podiam ser identificados como uma forma de escravidão, mesmo que estivessem longe de responder aos critérios impostos pela definição jurídica.

O funcionamento da realeza egípcia baseava-se em um elemento essencial – que aproxima muito o estado de espírito dos trabalhadores egípcios ao dos construtores de catedrais na Idade Média: filho dos deuses e seu representante na Terra, o faraó, no ápice da pirâmide social, garantia a vida e assegurava a cada um sua subsistência. Em troca desses benefícios, ele estava no direito de exigir dos súditos seu trabalho, de modo que cada um participava da grande obra coletiva.

Ainda por cima, por mais árduo que fosse o trabalho, contribuir para a edificação dos monumentos destinados ao futuro solar do rei ou à manutenção do equilíbrio cósmico permitia se apropriar de uma parcela das prerrogativas habitualmente reservadas ao personagem real. Enfim, fato sem dúvida revelador do sucesso do sistema faraônico, a coesão social passava pelo pertencimento a um Estado cuja organização quase militar era centrada na acumulação de riquezas, produzidas por uma mão de obra particularmente móvel com status sociais extremamente diversos.

Em um estudo especialmente instrutivo intitulado “Les noms de l’esclave en egyptien” (Os nomes de escravos em egípcio), o egiptólogo Jules Baillet elaborou uma lista dos vocábulos utilizados nos textos faraônicos para expressar a ideia de escravidão. Eis o que ele constatou: na língua egípcia, não existem palavras para designar o escravo no sentido estrito e, embora muitos termos expressem a sujeição, “nenhum corresponde exatamente à ideia de servidão”, tal como definida na Grécia ou em Roma. Daí sua pergunta: “O que é um estado social se nenhuma palavra o designa?”

Evidentemente, se a palavra não existe, o mesmo ocorre com o status. Entre os muitos termos enumerados por Baillet, dois são mais comumente traduzidos por “escravo” entre os autores favoráveis à tese da existência da escravidão no Egito: hem ebak, duas palavras que parecem totalmente sinônimas na língua egípcia e que se pode, de maneira menos categórica, interpretar por “servo”, e mesmo “dependente”. Em egípcio, o sacerdote é um hem netjer, um “servo de deus”, e, como observa Bernadette Menu, grande especialista nas questões de direito no Egito antigo, um vizir se consideraria o bak do faraó, seu “devoto” de alguma maneira. Segundo Bernadette, a noção de escravidão não responde a uma necessidade egípcia. À luz dos textos jurídicos, parece claramente que o indivíduo hem ou bak era um homem livre, perfeitamente integrado à sociedade, dispondo de um estado civil, titular de direitos e devedor de obrigações idênticas às do resto da população: embora pudesse se casar, ter posses, vender, contratar ou entrar na Justiça, ele não podia escapar do pagamento de impostos e ao regime de corveia (trabalho gratuito).

Paralelamente, estão conservados vestígios nos arquivos, sobretudo da Época Baixa (por volta do século VI antes da nossa era), de contratos relativos à venda ou à locação de indivíduos dependentes, tema muito controverso entre os egiptólogos: trata-se do que chamamos comumente “escravidão por dívida”, cuja negociação se referia a serviços temporários, avaliados e quantificados previamente pelos interessados.

Um homem endividado se colocava a serviço de um mestre para saldar sua dívida, até que a soma fosse integralmente reembolsada. Depois, os dois homens podiam se entender, por meio de um contrato escrito, validado juridicamente e aceito pelas duas partes. Foi o caso de um indivíduo chamado Peftouâoukhonsou, cultivador por conta própria, que entrou para o serviço de Nessemteu para pagar despesas médicas. Uma vez paga a dívida, ele decidiu continuar trabalhando, mas dessa vez remunerado, o que foi objeto de um novo contrato, renovado na sequência.

Trabalhos agrícolas e canteiros de construção monopolizavam cotidianamente uma parte da mão de obra egípcia, fosse ela estrangeira ou recrutada entre a população local, no seio das classes trabalhadoras – em primeiro lugar, os camponeses. Em troca de rações diárias e de um salário mensal – as fontes dissociam bem essas duas remunerações complementares –, os contratados deveriam fornecer determinada quantidade de trabalho. Salário e tarefa eram negociados antecipadamente e por tempo determinado. Era o regime do trabalho obrigatório, o da corveia: o indivíduo não escolhia sua tarefa, mas era pago regularmente pelo trabalho efetuado. É o que revela um documento muito interessante, o papiro Reisner I, datado do reino de Sesóstris I (em torno de 1970-1928 antes da nossa era), no início da XIIª dinastia, durante o Médio Império.

Referindo-se aos trabalhos de construção do reino, o papiro apresenta dados cifrados sobre as rações, os recrutados, as equipes e os trabalhos realizados. Para a maioria, os homens – oriundos da mão de obra das terras agrícolas pertencentes ao Estado – eram trabalhadores destinados às tarefas mais árduas: transporte dos blocos e fabricação de tijolos crus. Reagrupados em equipes de dez trabalhadores dirigidos por um capitão, eles recebiam diariamente um quilo de pão – que constituía a moeda de troca – e alguns extras por ordem real. As listas apresentam alguns artesãos especializados, mais bem remunerados, e contramestres que executavam as ordens dadas pelo vizir, responsável pelos trabalhos de construção perante o faraó. O documento revela o caráter muito regulamentado dessa organização e a extrema mobilidade da mão de Obra sujeita à corveia, que não cessava de se deslocar de um canteiro para outro, dependendo da necessidade.

A partir do Novo Império, além do Estado, qualquer pessoa podia, pagando uma remuneração, alugar os serviços de um terceiro por dia, ou em frações: meio dia, um quarto de dia, uma hora se necessário. Foi o caso do vaqueiro Messouia, que, sob os reinos de Amenófis III e de Akhenaton (XVIIIª dinastia, de 1550 a 1292 antes da nossa era), alugava mulheres para fabricar tecidos. Os contratos – cujo termo hieroglífico pode ser traduzido por “troca a título oneroso” – engajavam essas trabalhadoras por períodos que variavam entre dois até muitos dias, com tarifa diária de dois shâtis.

No papiro Harris I, Ramsés III (que reinou por volta de 1198 a 1168 antes da era cristã) explica como ele “reduziu a pó” os beduínos da Ásia, pilhando seu acampamento, levando seu gado, bens e prisioneiros, e os oferecendo aos deuses “para serem utilizados como servos de seu domínio”. Bem mais cedo, sob o Antigo Império, a Pedra de Palermo (sobre a qual foram gravados os anais reais) revela listas impressionantes de butins de guerra: sob a IVª dinastia, Snefru (em torno de 2700 a.C.) trouxe da Núbia 200 mil cabeças de gado e 7 mil cativos, imediatamente empregados nas explorações agrícolas. Exemplos desse tipo são muito numerosos nas fontes egípcias, em particular no Novo Império, onde o Egito conquistador submete seus vizinhos à força, no espírito de trazer butim e prisioneiros. Estes últimos eram destinados a engrossar os efetivos do exército e os domínios divinos ou reais para executar trabalhos agrícolas, artesanais e domésticos.

Desde essa época, a política egípcia visava integrar esses cativos à sociedade, oferecendo-lhes uma educação que recebiam no seio das fortalezas reais. Rompidos com seu meio de origem, os prisioneiros adotavam um nome egípcio e se lançavam no aprendizado do “falar como aqueles que seguem o rei, de modo que abandonem sua língua e andem no bom caminho sem olhar para trás”, antes de serem destinados a um templo ou a um domínio real onde fariam um trabalho remunerado. Tratava-se de uma acumulação de homens condenados a servir nas engrenagens das estruturas econômicas egípcias. Os cativos de origem principesca se uniam geralmente ao círculo real, onde às vezes exerciam altas funções.

Esses homens, chamados, no momento de sua captura, de hâqou ou seqerou-anhkou – palavras que se aplicavam aos cativos, aos prisioneiros –, se tornavam, após uma egipcianização bem-sucedida, hemou ou bakou, o que nos leva a pensar que não recebiam um status de escravo. Embora a onipresença da iconografia real mostrasse o faraó em toda a sua majestade esmagando os inimigos, em uma visão de mundo em que os países estrangeiros eram seus vassalos e os adversários rebeldes, destinados a morrer, o estrangeiro, a partir do momento que estivesse integrado à sociedade egípcia, era tratado exatamente como um egípcio. Isso era particularmente verdadeiro para os cativos que entravam como servos na casa de um particular graças a um presente do rei a um homem merecedor. Muitas vezes acolhidos com família e filhos, esses dependentes rapidamente faziam parte da casa, na qual permaneciam em geral por toda a vida. Encontra-se também essa integração no domínio militar.

Além dos soldados de carreira, os contingentes eram compostos por corpos de mercenários constituídos “pelos melhores entre os cativos que Sua Majestade fez nos campos de batalha”. Um documento que remonta aos primeiros anos do reino de Ramsés II (de 1300 a 1235 antes da nossa era), atribuído a um escriba encarregado de efetuar a repartição dos víveres entre os soldados de uma mesma unidade quando de uma campanha militar na Síria, mostra que os efetivos contavam com 62%de estrangeiros contra apenas 38% de egípcios.

A partir do reino de Tutmés III (de 1504 a 1450 antes da nossa era), as legiões estrangeiras reuniam essencialmente núbios, asiáticos, líbios, hititas e os habitantes dos países banhados pelo mar Egeu. Esses soldados eram reunidos em unidades e dirigidos pelos responsáveis pelas tropas estrangeiras ou mesmo por nativos. Os textos confirmam que, tendo provado sua lealdade ao faraó após sua chegada ao Egito, eles gozavam do status de homens livres.

O papiro Wilbor, datado do ano 4 do reinado de Ramsés V (1145 antes da nossa era), é um documento fiscal que contém um levantamento das terras com cultivo de trigo entre Minieh e o Fayum e traz também preciosas informações sobre os mercenários estrangeiros. Ele explica que, sob as XIXª e XXª dinastias, por ordem do rei, os prisioneiros de guerra se instalaram com suas famílias nas colônias militares. Reagrupados por etnias, eles gozavam das mesmas vantagens que os soldados egípcios e, como estes, pagavam impostos e possuíam terras que exploravam por conta própria. Nesses campos moravam os téhérou – piratas do mar Egeu –, núbios e sardanas da Ásia Menor, estes últimos constituindo uma tropa de elite destinada à guarda do soberano a partir de Ramsés II. Esses exemplos demonstram como a questão da escravidão no Egito faraônico é complexa. Somente um estudo sistemático das fontes jurídicas à nossa disposição permitirá esclarecer melhor os diferentes níveis de dependência que estruturavam a sociedade egípcia – que eram particularmente numerosos, embora nenhum deles possa ser comparado à escravidão segundo a acepção greco-romana do termo.


Aude Gros de Beler. Cativos, sim; escravos, não. In: Revista História Viva. Grandes Temas. Nº 46. p. 46-51.

NOTA: O texto "Cativos, sim, escravos, não: o trabalho no Egito antigo" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Neoclassicismo: febre romana

Mais ou menos a partir de 1780 até 1820, a arte neoclássica refletiu, nas palavras de Edgar Allan Poe, “a glória que foi a Grécia / E a grandeza que foi Roma”. Esse reviver do austero Classicismo na pintura, na escultura, na arquitetura e no mobiliário constituiu uma clara reação contra o enfeitado estilo rococó. O século XVIII tinha sido a Idade das Luzes, quando os filósofos pregavam o evangelho da razão e da lógica. Essa fé na lógica levou à ordem e às virtudes “enobrecedoras” da arte neoclássica.

O iniciador da tendência foi Jacques-Louis David (1748-1825), pintor e democrata francês que imitava a arte grega e romana para inspirar a nova república francesa. Como assinalou o escritor Goethe, “agora se quer heroísmo e virtudes cívicas”. A arte “politicamente correta” era séria, ilustrando temas da história antiga ou da mitologia, em vez das frívolas cenas de festa rococó. Como se a sociedade tivesse tomado uma dose excessiva de doce, o princípio substituiu o prazer e a pintura deu apoio à mensagem moral de patriotismo.


"Juramento dos Horácios", David. 

Em 1738, a mania da arqueologia varreu a Europa, à medida que as escavações de Pompéia e Herculano ofereciam a primeira visão da arte antiga bem preservada. A insistência da moda nos modelos gregos e romanos às vezes se tornava ridícula, como aconteceu quando seguidores de David, os “primitivos”, levaram literalmente a sério a idéia de viver à maneira grega. Não só andavam de túnica curta, como se banhavam nus no Sena, imaginando-se atletas gregos. Quando o romancista Stendhal viu os guerreiros “romanos” nus na pintura de David “Intervenção das Sabinas”, foi cético. “O mais ordinário senso comum”, escreveu ele, “nos diz que as pernas daqueles soldados logo estariam cobertas de sangue e que seria um absurdo ir nu à batalha em qualquer época da história”.

A estatuária em frisas de mármore que lorde Elgin trouxe do Partenon de Atenas para Londres aguçou ainda mais o apetite público pelo mundo antigo. “Glórias ao cérebro” e “grandeza grega” – foi assim que o poeta John Keats descreveu os mármores. Os líderes das escolas de arte e das academias reais francesa e britânica davam todo o seu apoio ao movimento neoclássico e pregavam que a razão, não a emoção, devia ditar a arte. Enfatizavam o desenho e a linha, que tinham apelo para o intelecto, em vez da cor, que excitava os sentidos.


"Morte de Marat", David

A linha mestra do estilo neoclássico eram figuras severas, desenhadas com exatidão, que apareciam em primeiro plano, sem a ilusão de profundidade dos relevos romanos. A pincelada era suave, de modo que a superfície da pintura parecia polida e as composições eram simples, para evitar o melodrama do rococó. Os fundos, em geral, incluíam toques romanos, como arcos ou colunas, e a simetria e as linhas retas substituíam as curvas irregulares. O movimento era diferente do classicismo de Poussin, de um século antes, pelo fato de que as figuras neoclássicas não se pareciam tanto com as figuras de cera, mais se assemelhando a figuras dançando balé, mais naturalistas e sólidas.

As antigas ruínas também inspiraram a arquitetura. Clones dos templos gregos e romanos se multiplicaram da Rússia à América. O pórtico do Panteon de Paris, com colunas e cúpula coríntias, copiava exatamente o estilo romano. Em Berlim, o portão de Brandenburg era uma réplica da entrada da Acrópole de Atenas, com uma carruagem romana no alto. E Thomas Jefferson, quando servia na França como embaixador, admirou o templo romano Maison Carrée em Nimes “como um amante olha para a amada.” Depois redecorou sua casa, Monticello, no estilo neoclássico.


STRICKLAND, Carol. Arte comentada: da pré-história ao pós-moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 68.

NOTA: O texto "Neoclassicismo: febre romana" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.