As ideias do coronel Chico Heráclio, o Leão das Varjadas [O coronel foi entrevistado na varanda de sua casa, pelo repórter José Hamilton Ribeiro, a serviço da Revista Realidade, em 1966. Entrevista adaptada]
Família do coronel Chico Heráclio
P - O Sr. é rico, coronel?
R - Meu filho, você viu a minha casa. Tem geladeira? Televisão? Até o rádio anda enguiçado... O que tenho construí com meu trabalho aqui na fazenda, pois nunca fui dado às letras. Comecei a estudar no Recife, mas uma epidemia me trouxe de volta, ainda menino.
P - Não concluiu nem o primário?
R - Já tive inimigo querendo cassar meu título de eleitor por analfabetismo, ora veja! Mas, minha pouca ilustração não me atrapalhou no governo das nossas 13 fazendas e dois engenhos.
P - Sua família é muito grande, coronel?
R - Sou viúvo três vezes. Aquela mocinha que você viu lá dentro, bulindo comigo, não é esposa não! É minha afilhada e arrumadeira. Tenho quatro filhos, o menor é esse ximbute de 13 anos. Mas filho meu só é de maior quando eu morrer. Ninguém fuma nem bebe na minha frente. Nem o Francisco e o Heraclinho, que são deputados. Aliás, esse é o único diploma que dei para eles, o de deputado. O José não tem porque não quer.
P - Desculpe, coronel Chico, mas corre por aí que o Sr. tem mais de 40 filhos naturais...
R - Calúnia dos adversários, meu filho. Devo ter só uns 20 ou 30. E não desamparo nenhum. Aqui na Fazenda das Varjadas eu faço de tudo: dou injeção, distribui pílulas, empresto dinheiro, até já casei e batizei, no tempo em que existia união em Limoeiro e todos viviam bem.
P - Mas afilhados são muitos, não?
R - Mais de dez mil, menino. E compadres e comadres muito fiéis. Graças a eles nunca perdi eleição para prefeito, desde 1922.
P - Então o Sr. é muito querido...
R - Olha, a maior riqueza do mundo são as amizades, e nisso eu estou bem servido, graças a Deus. A Maria das Flores, que eu lhe apresentei há pouco, trabalha demais nas eleições. Não sei se você viu, mas ela me trouxe uma lista de 1.500 novos eleitores. Quer maior prova de amizade? Teve até um caso engraçado: ela alistou duas irmãs, de 16 e 17 anos, aumentando a idade das moças pra 18. Quer dizer, a Maria fez as duas irmãs ficar gêmeas...
Com a palavra Volta-Seca, ex-cangaceiro do bando de Lampião [A entrevista com o ex-cangaceiro foi feita em 1974, pelo jornal Pasquim, em sua casa na zona rural do Rio de Janeiro. Texto adaptado]
Bando de Lampião. Volta-Seca, ainda menino, é o primeiro da direita para a esquerda, na fila da frente
P - Quando você entrou para o cangaço?
R - Saí de casa aos nove anos, não aturava minha madrasta. Vendi doces pra poder comer, vendi água num animal, saí pelo mundo sem destino, sem ninguém por mim, só Deus.
P - Aí você virou cangaceiro?
R - Um sujeito abusou da minha irmã e eu fui lá saber. Reclamei com o juiz, ele não fez nada, aí eu pensei: "a justiça aqui quem faz sou eu mesmo". Enterrei a faca no umbigo dele. E me joguei no mundo. Sozinho, sem bando ainda.
P - Com nove anos?
R - É. Um cara que queria ser meu cunhado veio em meu encalço, ele era soldado, matei ele também. Pensei: quem tá perdido pelo caminho não vai pra casa. Eu num tenho mais liberdade na vida, num tenho mais sorte na vida. A minha vida é essa mesmo. No mundo: Bom Conselho, Antas, Jair Mulato, Santa Brisa...
P - Sozinho o tempo todo?
R - Em Goloso, Lampião chegou com uns nove companheiros e me pediu pra dar banho nos cavalos deles. Com sabão eucalói, vidro de loção! Até eu tomei banho, uai! O capitão gostou de mim, mas eu não queria ir. "Você quer ir ou quer morrer? Escolhe um dos dois". "Eu vou, capitão!" Tinha 11 anos.
P - Como você foi recebido no grupo?
R - Muito bem. O capitão disse: "olha esses homens que você tá vendo aqui, é todos por um e um por todos. Se você tomar um tiro ali, eles estão aqui pra lhe acudir; se um tomar também, você tá aí pra acudir. Então num tem ás nem reis. Eu sou o chefe. Mas, aqui, também vocês tudo manda".
P - E os choques com a polícia, com as volantes do governo?
R - Eles eram 500, 600; nós 90, 100, mas sempre a gente vencia. Teve caso dos "macacos" se pegarem entre eles mesmos, de tão apavorados. Iam atirando, sem saber em quem. E depois que eles tinha gastado bem a munição a gente encostava.
P - E como vocês faziam com os feridos?
R - Quando não tinha socorro em sítio ou fazenda perto, a gente mesmo se curava. Com a tesoura, a frio, nóis extraía as balas.
P - Muito inimigo foi morto depois de preso?
R - Quando alguns se entregavam, o capitão mandava dar água e depois matava, que era pro cabra não morrer com sede... Chamava o prisioneiro e gritava, com a espingarda na mão: "arrepare o que vai sair daqui de dentro!"
P - Então o homem era mau mesmo...
R - Ele explicava. Dizia: "se prende nóis, mata aos pouquinhos. Foi o que fizeram com meu pai, com a minha mãe. Então eu faço com eles também. Eu queria viver na paz com todo mundo. Agora, tem uma coisa: morro mas num me entrego!"
P - O que você achava do Lampião?
R - Briguei com ele, saí do bando, mas sempre achei ele um boa praça, um homem atencioso, respeitador. Matou dois do grupo que tinham tentado violar uma moça.
Chico Heráclio e Volta-Seca, o coronel e o cangaceiro. Os dois viveram no mesmo mundo rural do sertão: Limoeiro, Santa brisa, Goloso... O Nordeste produziu tipos tão diferentes!
Diferentes mesmo? Ou apenas duas faces da mesma moeda?
Essas vidas carregavam muitas mortes. O coronel mandava, o cangaceiro também. O coronel era temido, o cangaceiro também. Mas um tinha a proteção das autoridades, era a própria "autoridade"! O outro era perseguido... Os coronéis duraram muitos anos - ainda há muitos hoje modernizados - e existiram em todo o país [...].
ALENCAR, Chico et alli. Brasil Vivo 2: a República. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 11-13.
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