"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 2 de março de 2012

A Nicarágua e a Revolução Sandinista

Cartaz da Revolução Sandinista

Desde a segunda metade do século XIX os Estados Unidos pretenderam abrir um canal, através da América Central, ligando o Atlântico ao Pacífico. Essa foi uma das razões que levaram os governantes norte-americanos a intervir na Nicarágua. Recorrendo à política do Big Stick (1912), os EUA estabeleceram um protetorado sobre o país centro-americano e impuseram o Tratado Bryan-Chamorro, assegurando-lhes o direito perpétuo de construir um canal e uma base naval em território nicaraguense (1916).

Embora a construção nunca fosse realizada, a ocupação militar (1912-1925) facilitou a penetração dos capitais norte-americanos, controlando ferrovias, mineração do ouro, bancos e parte da produção de café e de criação de gado.

A retirada dos marines (fuzileiros navais) não trouxe a estabilidade por muitos desejada: o país mergulhou na guerra civil em que se defrontavam liberais e conservadores. Novamente retornaram os marines e mais uma vez ocuparam a Nicarágua (1926-1933).

Foi então que se projetou Augusto César Sandino, de origem camponesa e convertido em líder da resistência popular contra a dominação estrangeira. Organizando o Exército Defensor da Soberania Nacional e adotando a guerrilha como tática de luta, Sandino acabou forçando os invasores a abandonar o país (1933).

O fim da ocupação militar coincidiu com o início da Política da Boa Vizinhança, empreendida por Franklin Roosevelt, recém-empossado como presidente dos EUA, que sofriam os efeitos da Crise de 1929. Os norte-americanos, contudo, haviam estruturado a Guarda Nacional, força militar profissional, encarregada de garantir a continuidade da aliança das oligarquias nicaraguenses com os capitais estadunidenses. Seu comandante era Anastácio Somoza Garcia, iniciador de uma das mais longas, corruptas e sangrentas ditaduras da América Latina.

Atraído a um encontro com os governantes da Nicarágua, Sandino foi preso e fuzilado por ordem de Somoza, que também mandou massacrar cerca de 300 sandinistas (1934).

Apoiado na Guarda Nacional, nas oligarquias locais e no capital norte-americano, Anastácio Somoza Garcia deu um golpe de Estado, instalando um governo que consolidou o modelo capitalista agrário exportador (1937-1956). Neste período, a repressão política manteve sufocada a oposição, ao mesmo tempo em que todos os processos foram usados para enriquecer o patrimônio da família Somoza [...].

Na década de 1950, a economia nicaraguense foi dominada por novo produto: o algodão, cuja exportação enriqueceu a família Somoza e amplos setores da oligarquia agrária. [...]

Anastácio Somoza Garcia acabou morrendo, após ser baleado por um poeta que pretendia acabar com a tirania no país.

A continuação do Somozismo foi assegurada com a designação de Luís Somoza Debayle para a Presidência (1956-1963), que conservou Anastácio Somoza Debayle no comando da Guarda Nacional. Os dois eram filhos do ditador assassinado.

Em seu governo, o segundo Somoza manteve a violência como prática usual contra a oposição, mas a vitória da Revolução Cubana estimulou a formação da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), fundada por estudantes universitários, como Carlos Fonseca Amador e Tomás Borge (1961). Tomando como princípios básicos a luta anti-imperialista, a destruição do Somozismo e a adoção da guerrilha como forma de luta, a FSLN procurou ampliar suas bases de sustentação junto ao proletariado e ao campesinato.

[...]

A ascensão ao governo de Anastácio Somoza Debayle (1967-1979) marcou o apogeu e o fim do Somozismo. Neste período, os Somoza praticamente dividiram o controle da economia nicaraguense com o capital norte-americano, o que reduziu as possibilidades de ação da burguesia da Nicarágua. A concentração de riqueza pelos Somoza intensificou-se a partir de 1972: a família não hesitou em se apoderar dos recursos internacionais enviados para ajudar a reconstrução de Manágua, arrasada por violento terremoto (1972). Além do mais, a repressão governamental contra os opositores também não poupava setores moderados da Igreja e da burguesia [...].

Cartaz da Revolução Sandinista

A conjuntura internacional igualmente contribuía para enfraquecer a ditadura Somoza: o governo Jimmy Carter (1977-1981) levantava a bandeira dos direitos humanos, defendia a democracia e condenava as ditaduras, o que resultou na redução da ajuda financeira e militar dos EUA. Além disso, inúmeros Estados enviavam auxílio à FSLN (armas, munições, medicamentos etc.), destacando-se o Panamá, Venezuela, Costa Rica, Cuba, Alemanha Ocidental, França...

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Criando um comando nacional conjunto, onde se destacava Daniel Ortega, a FSLN intensificou a insurreição revolucionária contra a Guarda Nacional. Além do mais, se fortaleceu com apoio de amplos setores da Igreja e da burguesia, reunidos no Grupo dos Doze, que consideravam ser a ação armada a única forma de acabar com o Somozismo.

Em 19 de julho de 1979, a FSLN tomou Manágua, a capital do país, dois dias após a fuga de Somoza para os EUA. Terminava a primeira etapa da Revolução Sandinista, mas a herança somozista era vultosa: o país estava arrasado, com cidades e estradas destruídas, colheitas e equipamentos perdidos, uma dívida externa atingindo um milhão e seiscentos mil dólares, cerca de 40 mil mortos.

A segunda etapa da Revolução foi empreendida pela FSLN, que organizou a Junta de Reconstrução Nacional, governo pluriclassista composto de cinco membros representantes dos empresários, dos profissionais liberais e dos sandinistas.

[...]

O governo sandinista imediatamente promoveu a desapropriação dos bens dos Somoza, a dissolução da Guarda Nacional, a criação do Exército Popular Sandinista, a nacionalização dos bancos, companhias de seguro e das minas, além da estatização da plataforma continental e da organização dos Comitês de Defesa Sandinista.

Reformas estruturais foram posteriormente empreendidas, destacando-se:

* a Cruzada Nacional de Alfabetização (1981), reduzindo a 10% o índice de analfabetismo [...];
* a Reforma Agrária (1981) [...];
* a Reforma Urbana (1982) [...];
* o desenvolvimento da saúde pública, através da melhoria da assistência médica, do combate a tradicionais epidemias [...].

A reconstrução e a reestruturação da Nicarágua foram dificultadas pela agressão dos Estados Unidos, dirigida pelo governo Reagan. O imperialismo norte-americano atuou através da realização de manobras militares e navais junto às fronteiras nicaraguenses, da colocação de minas nos portos do país (1985), do financiamento de atos de sabotagem e de atentados terroristas, a fim de desestabilizar  a sociedade sandinista [...].

Reunindo dissidentes exilados e, sobretudo, antigos membros da Guarda Nacional, os contras receberam cerca de 170 milhões de dólares dos EUA e atacaram a Nicarágua, partindo do território de Honduras. Embora não tivessem apoio da população, os contras provocaram a morte de cerca de doze mil nicaraguenses, causaram prejuízos materiais incalculáveis e protestos internacionais diversos.

O Grupo de Contadora, reunindo México, Panamá, Venezuela e Colômbia (1983), além de condenar a política norte-americana, fez esforços no sentido de restabelecer a paz na América Central, onde a Nicarágua sandinista constituía o exemplo de uma sociedade empenhada em romper as amarras do passado e de lutar no presente para construir um futuro baseado na justiça e no respeito ao homem.

A pressão norte-americana acabou comprometendo a frágil economia nicaraguense: a inflação disparou, os produtos de consumo escasseavam. O descontentamento popular se expressou na vitória eleitoral de Violeta Chamorro, candidata presidencial que teve apoio dos Estados Unidos e de 14 partidos de oposição (1990).

O novo governo logo recebeu ajuda de 300 milhões de dólares dos EUA, que também suspenderam o embargo econômico e outras medidas atentatórias à soberania nicaraguense. Contudo, teve de enfrentar a ameaça de ressurgir a guerra civil, devido às contradições e hostilidades entre antigos contras e o controle que os sandinistas exerciam sobre as Forças Armadas. A pacificação tornou-se complicada porque sem terras e sem empregos era difícil a reintegração de ex-combatentes à vida civil.

O enfraquecimento do governo ficou claro quando a Assembléia Nacional reformulou a Constituição, proibindo a reeleição presidencial e reduzindo o mandato do presidente de seis para cinco anos.

As crises se sucederam com a anulação da reforma agrária, com a destituição do general Humberto Ortega do comando do Exército Popular Sandinista, com a falta de alimentos, com a inflação e com as múltiplas pressões nacionais. Buscando uma saída, a presidenta Violeta Chamorro empreendeu a privatização de empresas estatais, indenizou ex-proprietários pelo confisco de suas terras e reconheceu os títulos de propriedade fundiária que beneficiavam cerca de 200 mil famílias camponesas.

Essas medidas contribuíram para melhorar a vida econômica e social, possibilitando a vitória de Arnoldo Alemá, da Aliança Liberal, nas eleições presidenciais de 1996.

[...]

Já em 2007, Daniel Ortega, líder da FSLN, acabou voltando à presidência em disputadas eleições no país.

Desde então, a Nicarágua integrou-se à frente antineoliberal e anti-imperialista formada pela Venezuela, Bolívia, Equador e Cuba.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. História das sociedades: das sociedades modernas às sociedades atuais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2010. p. 624-631.

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