"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 9 de maio de 2013

A organização social da África pré-colonial

Dama branca de Auahouret. Artistas africanos. Ca. 4000 a.C.

A África pré-colonial se dividia em grandes reinos ou impérios que funcionavam com uma organização política e socioeconômica assentada em estruturas específicas, cujo núcleo de base é a família estendida. A sociedade africana tradicional era dividida em várias categorias sociais ou castas, que exerciam de forma exclusiva uma função ou uma atividade socioeconômica específica. Portanto, as sociedades da África pré-colonial eram organizadas conforme uma ordem patrimonial ou matrimonial. Porém, nessas sociedades, o poder não era necessariamente hereditário, apesar da transmissão do mesmo dentro de uma dada família. Ou seja, o herdeiro natural e direto do chefe morto, por exemplo, não necessariamente assumiria o lugar do mesmo. A base da organização da África pré-colonial era segmentada, sendo o principal ou o único motor socioeconômico a grande família patriarcal (KI-ZERBO, 2010). Nela, vários clãs ligados geralmente pela comunidade da língua formam uma etnia.


Reinos e impérios africanos

Portanto, as estruturas socioeconômicas da África pré-colonial se caracterizam por serem formações complexas, quase sempre baseadas nas diferenças, além de ter formas ou sistemas de governo próprias. Segundo Barry (2000), a organização social da África pré-colonial se caracterizava por estruturas concretas, organizadas pelo modo de produção, com as articulações ao seu redor formando um conjunto complexo de relacionamentos. A maioria dos Estados ou reinos eram organizados sob a forma de federação, cuja figura do rei assegurava a unidade. Nas províncias, o rei era representado por governadores ou por monarquias locais, o que simbolizava a descentralização do poder e da sociedade.

A unidade de base da organização social é o vilarejo. Cada vilarejo possui um chefe, representante do povo. Cabe ressaltar que a ideia de chefe aqui é diferente da concepção moderna, ou seja, alguém a ser obedecido, seguido e temido. Segundo Wade (2005), na sociedade tradicional africana a noção de chefe de vilarejo significava estritamente representação, isto é, o chefe era um delegado do povo. Nesse sentido, a sociedade africana tradicional não colocava o indivíduo acima do povo, mas sim o interligava ao grupo, tornando todos solidários em uma estrutura complexa de interdependência. Essa concepção reflete, na verdade, a importância da sociedade para o indivíduo na cultura tradicional africana.

Desse modo, a organização social da África pré-colonial, apesar de suas características complexas, tanto do ponto de vista político e cultural quanto do ponto de vista econômico, teve um papel fundamental nas relações internacionais da época. Já no século IX uma série de Estados dinásticos, incluindo os estados Haussa, expandiu-se pela savana subsaariana, das regiões ocidentais até o Sudão Central. Mais tarde, o Império Songhai tomou o controle do comércio transaariano. De fato, a organização social baseada na estrutura familiar segmentada em castas teve como função a divisão do trabalho na sociedade tradicional africana e a profissionalização dos indivíduos nas atividades econômicas. Essa divisão do trabalho propiciou, em longo prazo, a acumulação da experiência e da competência, aumentando a produtividade individual e, assim, fortalecendo a economia dos Estados tradicionais. Segundo Wade (2005), graças a esta divisão e especialização do trabalho, a estrutura econômica africana pode ser considerada como uma "economia de oferta", como foi a economia clássica até sua transformação radical pelo aparecimento da moeda.

Outro ponto importante da organização social africana se refere à questão da posse da terra. Na Idade Média, o sistema feudal derivava da posse da terra, frustrando progressivamente os habitantes, teoricamente protegidos pelo Estado, e resultando na formação de uma nobreza na Europa e em outras partes do mundo. Já na África Negra nem o rei, ou qualquer outro senhor, tinha o sentimento real da posse da terra. Portanto, a consciência do poder político derivava, principalmente, de concepções religiosas e morais. O rei, um pequeno senhor local, possuía escravos e reinava sobre toda a região, cujos limites conhecia perfeitamente. Os habitantes pagavam os impostos determinados por ele, mas não tinham a intenção de se tornar proprietários do solo, pois a terra nesta sociedade "pertence aos mortos, aos vivos e aos que vão nascer" (DIOP, 1987). Nesse sentido, a fonte de recurso do Estado tradicional africano sempre foi baseada em um sistema de taxas, extração, e dos bens provindos da guerra. Com poucos trabalhadores e muita terra (geralmente pouco fértil), o sistema se baseava na migração e no controle sobre os seres humanos, e não sobre os meios de produção.

No plano político, importa destacar que a nomeação a um determinado cargo era feita a partir do pagamento de uma taxa costumeira, a qual não era obrigatoriamente entregue ao rei. Nas sociedades tradicionais havia sempre uma pessoa encarregada de confirmar a função de cada indivíduo, inclusive a do rei. Na sociedade Mossi, por exemplo, era o chefe do solo que desempenhava essa função. Hoje, ainda, podemos encontrar funções parecidas em algumas sociedades africanas que não tiveram influência direta do islamismo ou do catolicismo, como o caso dos diola de Casamance (sul do Senegal), bem como na sociedade bantu na África Central. Conclui-se que a partir desse aspecto da estrutura social africana os bens materiais passam, na maioria das vezes, longe dos grandes chefes e dignitários em benefício dos homens de castas (como o griot), e dos trabalhadores profissionais. Ou seja, a harmonia da sociedade tradicional africana era baseada nas crenças, na moral e no respeito à divisão do trabalho por conta do sistema de castas, bem como no entendimento de que o indivíduo tem sua função dentro da comunidade e da sociedade em geral.

VISENTINI, Paulo Fagundes et alli. História da África e dos africanos. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 26-29.

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