"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

A vida cotidiana na Colônia


“Não existe pecado do lado de baixo do Equador”.
(Chico Buarque) 

A história da sociedade brasileira se fez com muito sangue, rebeliões e lutas. No início foram mairs (franceses) contra perós (portugueses), capitães donatários versus governadores gerais, brancos contra os índios e os negros escravos, senhores de engenho versus escravos, colonos versus padres, fazendeiros versus mascates, emboabas versus bandeirantes... 

Forjada por “caraíbas” – homens brancos – de diversos reinos europeus (Portugal, França, Holanda...), negros africanos de diferentes grupos étnicos (bantos, nagôs, hauçás...), povos indígenas de diversos troncos lingüísticos (aruaques, tupis, jês...), católicos, protestantes, judeus... homens e mulheres construíram a sociedade brasileira.

"A cultura popular viceja sempre. Foi no período anterior à chegada dos europeus que os índios forjaram a tradição de lendas e costumes que ainda hoje estão por aí espalhados, modificados como a história do saci-pererê ou temperados pela mão africana como as canjicas e os munguzás. E os africanos nos trouxeram, de suas distantes pátrias, o ritmo e a força que sobrevivem nas danças e nas religiões populares. Os caboclos e mulatos brasileiros, herdeiros dessa cultura, com as influências da tradição lusitana, mesclaram tudo isso nas festas de São João, nos reisados, nos maracatus, nas capoeiras, nos sambas, na macumba, na poesia popular de cordel". ALENCAR, Chico [et alii]. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 45-46.

Todavia, a colonização foi, sobretudo, obra dos portugueses. Da Colônia saía o pau-brasil – a tinta que tingia os tão apreciados tecidos pelos nobres e burgueses europeus -; o açúcar que adoçava as mesas das cortes; os couros que produziam os calçados; o algodão das vestimentas; o cacau para a produção de chocolate; o ouro e os diamantes que adornavam as igrejas e os palácios da Europa; o tabaco e a aguardente – para trocar na África por escravos para a Colônia.

“O negro entra na sociedade brasileira como cultura dominada, esmagada. E as marcas da escravidão persistem no disfarçado preconceito racial e na situação miserável da maioria dos negros em nossa sociedade. Não se pode pensar em Brasil sem levar em conta toda essa história". ALENCAR, Chico [et alii]. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 33.

Para a Colônia, a Metrópole trazia o vinho, o azeite, o bacalhau, as louças, as pratarias, os móveis, os tecidos mais finos e as armas de fogo. A Colônia foi erigida a ferro e fogo sob o predomínio do latifúndio, da monocultura, da escravização de índios e negros e pela fé católica.

A vida social colonial desenvolveu-se em torno da família patriarcal dos senhores de engenho, das estâncias gaúchas e das regiões mineradoras. A família dos senhores incluía os inúmeros afilhados, agregados e escravos. O pai exercia autoridade absoluta sobre tudo e todos, desde a escolha das profissões até aos casamentos dos filhos.

Nos engenhos de açúcar do Nordeste o centro da vida era a casa-grande de paredes espessas de taipa ou de pedra e cal, telhados sem forro e com alpendres, ao redor da qual se agrupavam as moradias dos escravos - as frias e úmidas senzalas -, a capela, os currais, os carros de boi, as lavouras de subsistência (milho, mandioca), olarias para a fabricação de telhas... e o engenho. Um mundo praticamente auto-suficiente.

O interior das casas-grandes era bastante simples: mesas, cadeiras, aparadores e arcas vinham da Europa ou eram produzidos nas oficinas dos engenhos. Camas? Eram raras. A maioria das pessoas dormia em redes, hábito aprendido com os índios.

"[...] o mundo da senzala era o da exclusão. Impedidos de constituírem família, isolados de seus laços tribais e de parentesco, os escravos acabavam por perder suas estruturas familiares e mesmo culturais. [...]" AQUINO, Rubim Santos Leão de [et alii]. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 131.

A vida social dos senhores de engenho era extremamente pacata. Quando iam às vilas e cidades era para fazer negócios relacionados à exportação do açúcar, comprar artigos importados, participar de festas religiosas ou tomar parte na política da localidade. Nas palavras do cronista Antonil “o ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos”.

As vestimentas dos senhores eram simples nos engenhos. Quando freqüentavam as vilas e cidades ostentavam roupas luxuosas. Suas mulheres viviam trancadas entre quatro paredes, geralmente sentadas no chão sobre esteiras, costurando e dando ordens aos escravos domésticos. Quando saíam da casa-grande era para assistir missa, participar de festas ou fazer visitas. Nestas ocasiões vestiam-se elegantemente e eram transportadas em redes ou cadeirinhas por escravos.

"A vida sexual era marcada por dois extremos: as mulheres brancas ensinadas a pensar o ato sexual com seus maridos não como fonte de prazer, mas sim uma obrigação matrimonial com o objetivo direto e claro de geração de filhos, enquanto as negras, fontes de uma eterna mística que lhes adjetivava atributos de sensualidade e perversão aguçadores dos desejos dos brancos, eram utilizadas como objetos de prazer para o senhor e seus filhos, dando origem a uma mentalidade permissiva à violência sexual contra as mulheres originárias das classes trabalhadoras, ainda hoje forte no Brasil." AQUINO, Rubim Santos Leão de [et alii]. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 131.

A vida urbana só tomou impulso na colônia a partir do século XVIII, quando ocorreu a descoberta das minas de ouro e diamantes. As antigas vilas e cidades ganharam impulso e novas aglomerações urbanas foram surgindo. Nas áreas mineradoras nada se plantava. Tudo era comprado de outras regiões produtoras ou importados da Europa. Isso gerou um mercado interno que impulsionou o desenvolvimento de outras áreas da Colônia.

Na área da sociedade mineradora floresceu uma vida com mais fausto e ostentação. Os sobrados – contrastando com a simplicidade das casas-grandes – eram ricamente ornamentados com pedras trabalhadas, enfeites, gradis de ferro. A mobília era toda em madeira entalhada. A vida social era intensa. Havia muitas festas civis e religiosas, espetáculos musicais e de teatro. O vestuário das pessoas da área mineradora era simples no interior das casas; nas ruas saíam luxuosamente trajados.

“A camada dos desclassificados ocupou todo o 'vácuo imenso' que se abriu entre os extremos da escala social, categorias 'nitidamente definidas e entrosadas na obra da colonização'. Ao contrário dos senhores e dos escravos, essa camada não possui estrutura social configurada, caracterizando-se pela fluidez, pela instabilidade, pelo trabalho esporádico, incerto e aleatório. Ocupou as funções que o escravo não podia desempenhar, ou por ser antieconômico desviar mão-de-obra da produção, ou por colocar em risco a condição servil: funções de supervisão (o feitor), de defesa e policiamento (capitão do mato, milícias e ordenanças), e funções complementares à produção (desmatamento, preparo do solo para o plantio)”. MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII.  Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982. p. 63.

A sociedade colonial não era formada apenas por senhores de engenhos, fazendeiros, mineradores e escravos. Em cidades portuárias como Belém, Salvador, São Luís e Rio de Janeiro, havia um grupo importante de comerciantes que compravam e vendiam os principais produtos da colônia. Nessas cidades construíram-se sobrados feitos de tijolos e granito. As pessoas ricas das cidades gostavam de ostentar sua vida folgada, seu luxo no vestuário e nos enfeites. Como transporte os homens serviam-se das sejes e dos coches; suas mulheres usavam as cadeirinhas até dentro das igrejas. Diversões? As famílias de posses iam a espetáculos, bailes e reuniões de jogo. Vida noturna não havia por falta de iluminação e pela violência.

“A violência registrada no cotidiano da vida colonial deve-se, em grande parte, à presença da escravidão em todas as atividades. Era comum os escravos serem brutalizados por seus donos e tratados como animais, podendo ser vendidos a qualquer momento ou punidos por mero capricho do senhor ou do capataz. A vida de um escravo era, quase sempre, sórdida, desumana e curta. As fugas, levantes e castigos eram freqüentes. A tensão entre senhores e escravos era permanente, sobretudo no mundo rural, que concentrava o grosso da escravaria africana ou ameríndia. Nessa situação, senhores e escravos, homens e mulheres, brancos, negros e mulatos enfrentavam o dia a dia da casa-grande e das senzalas”. MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 233.


Em fins do século XVIII, toda a sociedade colonial escravista começa a sofrer seus primeiros grandes abalos. As fugas de escravos se tornam cada vez mais freqüentes. Quilombos surgem em todos os cantos da colônia. Os índios cada vez mais acuados para o interior oferecem tenaz resistência ao colonizador. As notícias da independência das 13 colônias da América do Norte e as ideias dos filósofos iluministas aqui são discutidas atrás de portas fechadas. Movimentos são planejados, como as Inconfidências Mineira, Carioca e Baiana. O fim da dominação portuguesa estava com os dias contados.

© 2015 by Orides Maurer Jr.

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