"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos
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segunda-feira, 6 de junho de 2016

Dos descobrimentos à colonização - Parte 6

["Não existe pecado do lado de baixo do Equador"]

Os invasores, Antônio Parreiras

"Não existe pecado do lado de baixo do Equador" - diz um verso do vibrante frevo de Chico Buarque, inspirado em um provérbio português do período quinhentista (século XVI).

Além do Equador, tudo era permitido - ou quase tudo - em nome de El-Rei!

Nossa História, para começar, não foi tão pacífica, como afirmam alguns autores. Ao contrário, ela se fez à custa de muitos e sangrentos conflitos sociais. Foi mair (francês) contra peró (português). Branco contra índio e negro. Senhor x escravo. Colono combatendo padre. Dono de terras se opondo a mascate. Donatário brigando com Governador Geral. Emboaba expulsando paulista. "Vida difícil em uma terra fértil", como previu o escrivão Caminha...

Caraíbas (homens brancos) de várias nacionalidades - portugueses, franceses, espanhóis, holandeses -, negros africanos de diversos grupos étnicos - bantos, jejes, nagôs -, indígenas de vários troncos linguísticos - tupis, aruaques, jês, caribas -, foi essa a diversificada fauna humana que fez da Terra dos Papagaios um lugar chamado Brasil.

Mas a nossa Colonização foi sobretudo obra dos portugueses.

"Dominando vasto território e suas populações, assumiram o controle e a direção de tudo, aqui atuando em forma dominadora durante três séculos, deixando-nos como herdeiros daquilo que realizaram e que constitui o nosso passado colonial."

Era do Brasil que saía a tinta que coloria os tecidos e servia para escrever; o açúcar e o cacau que a Europa consumia; o couro com que se faziam os calçados e o algodão com que os ingleses se vestiam; o ouro que adornava os palácios e igrejas; o tabaco e aguardente para a África...

E para aqui vinham o azeite, o vinho, o bacalhau, as louças e pratarias, os móveis, os tecidos finos, as armas de fogo... sobretudo estas últimas, com que os portugueses erguiam nos trópicos uma original Civilização, baseada no latifúndio, na monocultura e na escravidão - a nossa pesada herança colonial.

"Ao integrar-se no ciclo comercial, a América luso-hispana recebeu um formidável enxerto africano. A mão-de-obra indígena e a outra, de procedência africana, foram os pilares do trabalho colonial americano. América e África - destilado seu sangue pelos alquimistas do comércio internacional - foram indispensáveis ao deslumbrante florescimento do capitalismo europeu."

A História da Colônia está profundamente ligada às diretrizes do Mercantilismo. A Colônia existia para satisfazer os apetites da Metrópole, atendendo aos interesses coloniais portugueses e da política europeia. E o instrumento do Mercantilismo foi o Pacto Colonial, isto é, o direito exclusivo de comerciar com a Colônia.

"Estava, nessas circunstâncias, traçado o sentido da Colonização portuguesa no Brasil: explorar as riquezas naturais da terra recém-descoberta, apropriar-se do que ela possuía de comerciável no mundo civilizado, despojá-lo de tudo o que pudesse proporcionar lucro à metrópole. Nada mais do que isso interessava. E essa foi, com efeito, a política posta em prática durante os três séculos de domínio português no Brasil."

Assim, o pretexto de expandir a fé e o comércio, a Metrópole portuguesa subordinou e explorou durante 300 anos uma terra e seu povo. Afinal, na visão do colonizador, o centro do mundo era a Europa - o resto eram "terras d'além-mar" e gente que vivia nesse tal "lado de lá do Equador"...

AQUINO, Rubim Santos Leão de [et alli.]. Fazendo a História: As Sociedades Americanas e a Europa na Época Moderna. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1990. p. 88-9.

sábado, 25 de outubro de 2014

Poder e poderes no Brasil Colônia

O primeiro instrumento institucional de ocupação das terras americanas foi a feitoria. Através delas, faziam-se contatos com índios da terra e se explorava pau-brasil. Cabia ao feitor tentar impedir que se embarcassem, sem autorização, indígenas escravizados, sobretudo mulheres, evitar a deserção de marinheiros, além de receber produtos da terra que seriam enviados ao Reino. [...] Aos finais de 1520, acumulavam-se na mesa real pedidos de pessoas que queriam estabelecer-se aqui. A promessa de “ganhar uma terra que não tem nenhum proveito e conquistá-la” era muito utilizada. Outro argumento era o de que a instalação de algumas povoações evitaria que os índios vendessem pau-brasil a estrangeiros.

Família de botocudos em marcha, Jean-Baptiste Debret.
 [Uma cultura que foi vítima de uma guerra sem trégua]

O resultado da fórmula aplicada com sucesso nas ilhas do norte da África, Madeira e Açores fez com que D. João III optasse pela divisão das terras em capitanias. Uma vez demarcadas, com 50 léguas de costa cada, foram distribuídas entre fidalgos. Como donatários, cabia-lhes criar vilas e povoações, exercer justiça, nomear juízes e oficiais, incentivar a instalação de engenhos, marinhas de sal e moendas de água, arrendar terras do sertão. Uma série de vantagens e poderes funcionava como chamariz para os colonos. Em contrapartida recebiam um “foral dos direitos, foros, tributos e cousas que na dita terra hão de pagar”.

Uma família no Rio de Janeiro, Jean-Baptiste Debret

Povoar o Brasil fazia-se urgente, contudo, por outras razões. A concorrência no Oriente obrigava Portugal a repensar sua política colonial. O comércio com as Índias custara caro ao tesouro real, mas fizera a fortuna de muitos comerciantes capazes de aplicá-la em outros negócios que lhes parecessem rentáveis. A acintosa presença francesa no Brasil obrigava a uma tomada de posição.

O sistema malogrou, contudo, devido ao tamanho do território colonial, assim como em razão de ferozes ataques indígenas. [...] quando se fundou o Governo Geral e Tomé de Souza foi enviado para cá, apenas três, das 12 capitanias distribuídas, haviam sobrevivido. Chegado em 1549, o primeiro governador-geral ergueu a primeira vila com foros de cidade, São Salvador, e deu início a violento combate contra os tupinambás, “matando e castigando parte deles”, para dar exemplo, como registra um documento do período. Trouxe consigo os padres jesuítas e o plano para a instalação urgente de uma estrutura político-administrativa que evitasse o naufrágio completo da colonização: o Governo Geral. Na bagagem, Souza trazia ainda um Regimento – instruções para pessoas e instituições – cujas preocupações incidiam sobre questões militares e de povoamento: assentamento de colonos, distribuição de gado bovino, criação de órgãos locais de administração, as câmaras. Em 1588, outro Regimento foi aprovado. Nele, novas diretrizes apontavam para uma maior presença do Estado português na Colônia: defesa da costa, exploração de salitre para defesa da armada, prospecção de “minas de metais”, proteção contra ataques e reafirmação da escravização de indígenas por “guerra justa”, assim como instalação da Relação – ou seja, tribunal de instância superior, na Bahia -, na verdade só instituída em 1609.

Índios em uma fazenda de Minas Gerais, Rugendas

Ao longo do tempo, governadores e depois vice-reis trariam, cada qual, seus regimentos e instruções, ao sabor das diversas conjunturas. Não houve consistência nas diretrizes administrativas até meados do século XVIII. A fragilidade do sistema retardava a instalação de um governo centralizados, tal como se desejava no Reino, comprometendo, simultaneamente, os interesses fiscais, políticos e estratégicos da metrópole. Apesar disso, começava a formação de quadros burocráticos; formação, contudo, marcada pela precariedade. Num relatório datado de 1550, o corregedor Pero Borges faz menção à proliferação de funcionários metropolitanos, muitos deles degredados de “orelhas cortadas”, outros tantos “muito pobres e ignorantes”. O oitavo governador do Brasil, D. Diogo Botelho, por exemplo, encontrou um tal descalabro na figura de funcionários, que lesavam o fisco e exerciam tranqüilo contrabando, que efetuou várias demissões na capitania de Pernambuco. A incompetência judicial que, então, se instalava iria somar-se à distância física entre o centro de decisões administrativas, Lisboa e as cidades litorâneas. E entre essas e as vilas do interior. Mal se instalara, a máquina do governo começava a emperrar. O braço da lei não atingia as áreas remotas. As próprias leis eram “profusas e confusas”. Os magistrados, corruptos. A voracidade meirinhos, escrivães e juízes prevaricadores era insaciável. A administração judiciária concentrava-se em algumas cidades, deixando o resto da Colônia nas mãos da justiça privada e do mandonismo local. [...]

A Fazenda, por sua vez, era dominada pela necessidade de ampliar tributos, recursos e impostos para atender as urgências crescentes do Estado. No mais, controlava casas para a alfândega e nomeava funcionários necessários ao seu funcionamento nos portos. Composta por guarnições de Primeira, Segunda e Terceira linhas, a organização militar reunia tropas e regimentos de cavalaria, infantaria e artilharia. Foi, contudo, apenas no século XVIII, quando os conflitos com os espanhóis ao sul da Colônia se acentuaram, que tais “forças armadas” coloniais começaram a se profissionalizar.

Vista do Rio de Janeiro defronte a Igreja do Mosteiro de São Bento, Rugendas

A organização eclesiástica também se mostrou precária no século XVI. As razões? Havia dificuldade de recrutamento de sacerdotes, e a autoridade episcopal não se instalara entre nós. Quando criado na Bahia, em 1551, o primeiro bispado, a terra e os moradores eram tão pobres que não podiam arcar com as despesas de manutenção do corpo eclesiástico. Gastos com a instalação de colégios para a Companhia de Jesus faziam com que sobrassem poucas rendas, pagas pela Coroa, para o clero secular. Foram inúmeros os conflitos entre autoridades coloniais e bispos, entre membros do clero secular e as ordens religiosas, e na própria hierarquia de ordens e do clero secular. Esse se estruturou no bispado de Salvador, elevado à arquidiocese e sede da província eclesiástica do Brasil em 1676 ao mesmo tempo em que eram criadas as dioceses do Rio de Janeiro e Olinda (1676), e depois do Maranhão (1677), de Belém (1719), São Paulo e Mariana (1745). O clero regular, representado por diferentes ordens religiosas, era independente graças a doações vindas de matrizes européias, esmolas da população local e aos rendimentos de propriedades privadas. [...] O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição não se instalou jamais entre nós, malgrado [...] as visitas de seus inquisidores à Bahia, a Pernambuco e ao Pará, em busca de hereges, cristãos-novos, feiticeiros, sodomitas e outros pecadores que infringiam a moral e a fé católica.

Família de fazendeiros indo à igreja, Rugendas

[...] O familismo político vicejava nas cidades litorâneas, unindo prósperos senhores de engenho e funcionários metropolitanos. Ao longo do século XVII, os primeiros ocuparam postos de comando nas Câmaras e suas ações arbitrárias caíam sob as costas dos arrendatários, meeiros e lavradores, interferindo nos resultados dos julgamentos e das ações que corriam no foro da Relação. Os casamentos dentro de pequenos grupos de famílias permitiam que essas se revezassem em postos de prestígio. Nesses grupos era constante a manipulação de alianças de família para resolver, na esfera pública, problemas domésticos.

Tocador de berimbau, Jean-Baptiste Debret

Uma segunda camada de colonos, constituída por plebeus, lavradores, “homens de qualidades” (como se lê em algumas cartas de sesmarias), fixava-se silenciosamente com seus gados e escravos na hinterlândia. Vagava pelos ermos sertões toda uma população desajustada e apartada do trabalho regular. Era remediada, a princípio. Tais indivíduos eram considerados pelas autoridades “facínorosos e bravos”. Muitos viviam com suas famílias, isolados e solitários, nos roçados que cultivavam. Outros podiam ser ladrões de gado ou “formigueiros”, nome que se dava aos que roubavam bens de pouco valor. Não faltava quem se organizasse em bandos e quadrilhas, agindo em assaltos pelas estradas.

Porto Estrela, Rugendas

Contudo, não somente a população pobre proliferava. Por todo o sertão surgiram régulos abastados, que haviam criado fortuna e zonas de poder local e pessoal. Tais potentados não hesitavam em medir forças com autoridades e vizinhos. Confrontos sanguinários lavavam a honra de famílias inteiras e seus agregados durante gerações. Os donos de tais terras, apoiados em escravos e dependentes, sentiam-se impunes dentro de seus domínios e mesmo de uma região. Tinham por aliados parentes e amigos voluntários. Impensável contrariá-los. Só que o vizinho pensava da mesma maneira. Assim, nunca carecia motivo para desavenças, “bastando”, como explicava o padre Antonil em 1711, “um pau que se tire ou um boi que entre no canavial por descuido para declarar o ódio escondido e para armar demandas e pendências mortais”. Os dias de festa religiosa, momento em que a comunidade se juntava, eram os preferidos para acertos de contas: tiroteios dentro das igrejas, emboscadas durante a procissão, troca de punhaladas nas casas onde se vendia bebida. [...] A impunidade grassava e contaminava populações de vilas e vilarejos. [...] Poucas autoridades metropolitanas ousavam interferir nos “negócios do sertão”. [...]


DEL PRIORE, Mary; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 50-56.

NOTA: O texto "Poder e poderes no Brasil Colônia" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.