"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

Nas trilhas das utopias

Aos trabalhadores

“Os infinitos heróis desconhecidos valem tanto quanto os maiores heróis da História”.
(Walt Whitman)


Forças de conservação x forças de transformação: do medievo às terras tupiniquins

Na História das sociedades vamos encontrar forças de conservação e forças de transformação. Por forças de conservação podemos entender todos os grupos políticos e instituições que desejam manter o ‘status quo’ vigente. São, portanto, os detentores dos poderes político-econômico-ideológico.

Já as forças de transformação são todos os grupos político-sociais excluídos do sistema vigente. São aqueles que trabalham, pagam pesados tributos e são discriminados.

No mundo do medievo europeu temos uma sociedade estamental. Os nobres – clero (oração) e nobreza (guerra) detinham os poderes político-econômico e ideológico, respectivamente. Na base da pirâmide encontramos os servos (trabalho). Ora, eram os servos – trabalhadores rurais – que pagavam pesados tributos e dízimos para as classes dirigentes. Portanto, temos uma sociedade tripartite. O poder ideológico era justificado pelo predomínio da Igreja Católica. Segundo os eclesiásticos do período medieval, Deus havia feito a sociedade assim. Entretanto, não podemos deixar de registrar que durante o período final da Idade Média, muitos camponeses se revoltaram diante das péssimas condições de trabalho em que se encontravam. Essas revoltas camponesas foram duramente sufocadas pelos cavaleiros. Um outro fato – não menos relevante – a ser considerado, é que na sociedade estamental do medievo também havia outros grupos que não se encaixavam na visão tripartite da Igreja. Estes eram todos os habitantes dos burgos, os comerciantes, os banqueiros, os judeus, os ciganos, os saltimbancos, os menestréis, os homossexuais, as prostitutas, os leprosos... Eram discriminados tanto pela nobreza guerreira como pelo clero. Infelizmente esses grupos não nos deixaram registros de sua trajetória histórica e o pouco que sabemos é através das crônicas feitas pelos detentores do poder. Portanto, a visão que temos deles é uma visão preconceituosa e estigmatizada. Alguns desses grupos só se tornarão forças de transformação a partir da segunda metade do século XVIII.

As revoluções industrial e francesa moldaram um novo tipo de sociedade. A industrialização na Europa estabelece duas classes sociais bem definidas. De um lado, temos a burguesia dona dos meios de produção e do capital. Do outro, o nascimento do proletariado, que vende sua força de trabalho. A sociedade do Antigo Regime começa a sofrer seus primeiros abalos. A antiga nobreza – que vivia em seus luxuosos castelos, em suntuosas festas regadas aos melhores vinhos, com suas taças de cristal finíssimas, suas roupas extravagantemente luxuosas e servidos por centenas de serviçais – perderá, paulatinamente, seus privilégios. Essa sociedade excluía os ricos burgueses e todos os trabalhadores do campo e das cidades. Essas novas forças – burguesia e trabalhadores -, começaram a discutir as novas ideias apregoadas pelos filósofos iluministas nos cafés e divulgados através de panfletos e livros.  Esses grupos passam a questionar a sociedade de privilégios, isto é, o Antigo Regime. Portanto, são forças de transformação.

Embalados ideologicamente pelos ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade, juntamente com a grave crise sócio-econômica em que se encontrava a França em fins do século XVIII, sans-cullottes, donas de casa, crianças e jovens, homens e mulheres do povo, burgueses tomam de assalto a fortaleza-prisão conhecida como Bastilha, símbolo da opressão do Antigo Regime. Era o início da Revolução Francesa, que durante uma década, abalaria as antigas estruturas feudais da França. São estas forças de transformação que mudarão os rumos da História não só da França, mas fazem tremer também as casas reais Europa Ocidental e com repercussões do outro lado do Atlântico. Este é um exemplo clássico de revolução burguesa.

No decorrer do século XIX surgem novos contextos históricos que levarão burgueses e proletários a se distanciarem e tornarem-se antagônicos. A burguesia pós-1789, agora ocupando os antigos postos da nobreza e do clero, tornam-se tão reacionários e conservadores quanto aos que eles combatiam. Aos camponeses e operários sobram apenas migalhas. E a Europa se industrializava a passos largos. Mais indústrias, mais operários. Crianças e mulheres trabalhavam e ganhavam menos do que os homens. A situação de miséria era evidente. O clima de insatisfação pairava no ar. Novas ideologias surgiram. Eram os anarquistas, os socialistas utópicos e os socialistas científicos. Novas revoluções. Barricadas. Outras repressões. Novas decepções.

E entramos no século XX com velhos problemas. Na Rússia, país recém-industrializado - mas com uma monarquia autocrática e uma nobreza parasitária - não ocorreu a modernização da sociedade. Enquanto os nobres viviam cercados de luxo e conforto, milhões de russos passavam fome, frio e pagavam altíssimos tributos. Tudo isso veio abaixo com a revolução socialista de 1917. Soldados, camponeses e operários, sob a liderança dos bolcheviques, tomaram o poder e instalaram a primeira república socialista da História. Novas esperanças. Vitória das forças de transformação. 

Aqui, em terras tupiniquins, ainda não tivemos uma revolução de caráter burguês, quem dirá, socialista. As críticas aos governos do PT como sendo de governos socialistas não passa de mero palavrório. Uma sociedade socialista já teria eliminado mazelas seculares. Não só as de ordem sócio-econômico. Mas, também, as de ordem ética. Ainda estamos longe de sermos um país igualitário, onde haja a distribuição de renda para todos e iguais oportunidades de trabalho, saúde e educação de qualidade, transporte público eficiente, sustentabilidade... Nossa burguesia é pobre intelectualmente (e podre!). Como dizia Cazuza: “a burguesia fede”.  Fede a dinheiro, a corrupção, a ódio, preconceitos... Pura estupidez. O Iluminismo dos revolucionários franceses de 1789 ainda não aportou por aqui. E o sonho de uma sociedade justa, humana, fraterna e solidária é uma utopia a ser trilhada por todos aqueles que desejam um país para todos.


MAURER JUNIOR, Orides. Ecos do tempo: uma viagem pela história. Joinville: Letradágua, 2015. p. 49-51.

Orides Maurer Jr. é historiador e autor do blog ϟ●• História e Sociedade •●ϟ

© 2015 by Orides Maurer Jr.

Nenhum comentário:

Postar um comentário