"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O sexo das mulheres: desejo e homossexualidade (Parte 4)

O sono, Gustave Courbet

A descoberta do prazer feminino é antiga. Os cavaleiros da Idade Média temem o leito e a mulher insaciável que não estão certos de poder satisfazer, segundo Georges Duby. O Renascimento favorece esse reconhecimento do desejo. Os médicos detectam um líquido feminino, que seria sinal de gozo e que ajuda a reprodução. A corte dos Valois era propícia às experiências de todos os tipos e mesmo às palavras para dizê-los.

O desejo das mulheres se expressa em certos textos da Idade Média e mais ainda do Renascimento, como as poesias eróticas de Pernette du Guillet. As mulheres galantes, cuja vida é evocada por Brantôme, sabem gozar do sexo. Segundo Pierre Camporesi, Catherine Sforza vangloriava-se de tomar posições favoráveis ao orgasmo, palavra não utilizada, embora não se ignorasse a coisa, que é preciso buscar no eufemismo e nas expressões da linguagem poética.

O século XVII da Contrarreforma e do jansenismo é cheio de pudores. A libertinagem do século XVIII é sobretudo masculina, como o erotismo do século XIX. [...]

Fala-se ainda menos da homossexualidade feminina, em razão dos tabus que a dissimulam. A tal ponto que Marie-Jo Bonnet, uma de suas primeiras historiadoras, quase renunciou à tarefa de estudá-la, tendo encontrado tão somente raros testemunhos literários (como Lélia de George Sand, que causou escândalo ao ser publicado), recorrendo mais tarde à imagem para decifrá-la. As meninas, entretanto, não ignoram a excitação do coração e do corpo, sobretudo nos pensionatos ingleses, mais livres, que foram estudados por Caroll Smith-Rosenberg.

O beijo, Henri de Toulose-Lautrec

Tudo muda por volta de 1900. "Naquele tempo, Safo ressucitou em Paris", escreve Arsêne Houssaye. As "Amazonas de Paris" - Natalie Clifford Barney, Renée Vivien, Colette e muitas outras - reencontram os caminhos de Lesbos e animam, na rive gauche, círculos literários livres e refinados. É o tempo das "raparigas em flor", que atormentam o narrador proustiano.

A guerra separa e fere os casais. Ela autoriza inúmeras descobertas sexuais, não raro dramáticas. Radclyfe Hall evoca esses sofrimentos identitários em The Well of Loneliness (1928). Os "Anos Loucos" marcam, nas grandes capitais europeias, a explosão de uma homossexualidade muito mais alegre e liberada, na qual as lésbicas estão muito presentes. Virgínia Woolf, Violette Trefusis e seus amigos do grupo de Bloomsburry, Gertrude Stein, Romaine Brooks, Adrienne Monnier e Sylvia Beach são as personalidades mais conhecidas. Sabemos que elas se amavam, que tinham prazer em estar juntas, que aliavam gozo e criação. Não muito mais que isso.

Na cama, Henri de Toulose-Lautrec

A expressão de um erotismo feminino, ou mesmo de uma pornografia, é, em suma, um fenômeno recente, que atingiu o romance (Virginie Despentes, Catherine Millet) e principalmente o cinema (Catherine Breillat).

Rosa ou negro, rosa e negro, o continente da sexualidade feminina continua uma terra desconhecida, um universo por explorar.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2013. p. 67-8.

sábado, 29 de outubro de 2016

O sexo das mulheres: mistério e prazer (Parte 3)

A banhista, Ingres 

A sexualidade das mulheres: um mistério, e considerado como tal.

Misteriosa, a sexualidade feminina atemoriza. Desconhecida, ignorada, sua representação oscila entre dois polos contrários: a avidez e a frigidez. No limite da histeria.

Avidez: o sexo das mulheres é um poço sem fundo, onde o homem se esgota, perde suas forças e sua vida beira a impotência. É por isso que para o soldado, o atleta, que precisam de todas as suas forças para vencer, há a necessidade de se afastarem das mulheres. Segundo Kierkegaard, "a mulher inspira o homem enquanto ele não a possui". Essa posse o aniquila. Esse medo da sexualidade da mulher que não se pode jamais satisfazer é a origem do fiasco, temor constante de Stendhal.

Frigidez: a ideia segundo a qual as mulheres não sentem prazer, não desejam o ato sexual, uma canseira para elas, é bastante difundida. Balzac, em La Physiologie du mariage, texto alusivo e preciso ao mesmo tempo, mostra mulheres que alegam estar com enxaqueca para furtar-se ao dever conjugal, o qual, no entanto, é prescrito por seus confessores.

Daí surge, para os homens, a necessidade, a justificativa de procurar o prazer em outro lugar: amantes, prostitutas, mulheres sedutoras das casas de má fama, em plena expansão no século XIX, são encarregadas de remediar essa "miséria sexual".

Os homens sonham, cobiçam, imaginam o sexo das mulheres. É a fonte do erotismo, da pornografia, do sadomasoquismo. E provavelmente da excisão das meninas, prática largamente difundida ainda hoje na África muçulmana, e mesmo na Europa, em consequência das migrações. O prazer feminino é tolerável?

As mulheres cuja sexualidade não tem freios são perigosas. Maléficas, assemelham-se a feiticeiras, dotadas de "vulvas insaciáveis". Mesmo quando ficam velhas, fora da idade permitida para o amor, as feiticeiras têm a reputação de cavalgar os homens, de tomá-los por trás, o que, na cristandade, é contrário à posição dita natural: em suma, têm a reputação de fazer amor como não se deve fazer. Diana figura a sexualidade liberada. A feiticeira alimenta a escuridão das noites de sabá.

A histérica é a mulher doente de seu sexo, sujeita a furores uterinos que a tornam quase louca, objeto da clínica dos psiquiatras. Charcot, nas segundas-feiras do hospital de Salpêtrière, perscruta seus movimentos convulsivos, que explodem, por vezes, em manifestações coletivas de internatos ou de fábricas no século XIX. Novas feiticeiras, as convulsionárias assemelham-se às possuídas de Loudun que Urbain Grandier tentava exorcizar. Mas é o seu útero, e não o diabo que é incriminado. A histeria abre o caminho para o caminho para as "doenças das mulheres" e para a psiquiatrização e psicanálise dessas doenças.

A toalete matutina, Christoffer Wilhelm Eckersberg

No século XIX, a histérica sofre uma metamorfose, produzindo-se um duplo movimento, identificado por Nicole Edelman: 1) a histeria "remonta" do útero ao cérebro; ela atinge os nervos, doentes. A mulher torna-se "nervosa"; 2) com isso, nota-se uma extensão ao outro sexo. A histeria atinge os homens. "Estou histérico", escreve Flaubert a Sand. Charcot confirma. A guerra acentuará o diagnóstico da bissexualidade da histeria.

A sexualidade consentida, e mesmo exigida, é conjugal. Mas não sabemos muita coisa sobre ela. Altar da sexualidade, o leito conjugal escapa aos olhares. Até a Igreja recomenda discrição aos confessores, apesar de sua reprovação ao pecado de Onan. Não há, entretanto, outro meio de evitar a concepção, e o coito interrompido, numa França que restringe seus nascimentos desde o século XVII, é bastante praticado. "Engana-se a natureza até mesmo nas aldeias", escreve Moheau em Recherches et considérations sur la population de la France (1778). Cada vez mais preocupadas em limitar a dimensão de sua família e prevenir a gravidez não desejada, as mulheres apreciavam os maridos "atentos" e elas próprias sabiam se furtar. Não era sempre que repudiavam as carícias conjugais, longe disso, e queixavam-se da negligência e mesmo da impotência de seus companheiros.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2013. p. 65-7.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

O sexo das mulheres: a virgindade (Parte 2)

Fantasia, Antônio Parreiras 

O sexo das mulheres deve ser protegido, fechado e possuído. Daí a importância atribuída ao hímen e à virgindade. Principalmente pelo cristianismo, que faz da castidade e do celibato um estado superior. Para os Pais da Igreja, a carne é fraca. O pecado da carne é o mais terrível dos pecados. [...]

A virgindade é um valor supremo para as mulheres e principalmente para as moças. A Virgem Maria, em oposição a Maria Madalena, é seu modelo e protetora. Ela é, ao mesmo tempo, concebida sem pecado (dogma da Imaculada Conceição, Pio IX, em 1854) e concebe sem o homem, "pela intervenção do Espírito Santo". A Virgem, entretanto, é mãe em toda plenitude; ela carrega seu filho no ventre, o alimenta, o segue em suas predicações, o sustenta em sua paixão, o assiste em sua morte: a mãe perfeita, mas somente mãe. A Virgem é rainha e mãe da Igreja medieval, mediadora, protetora. "No século XIII, Deus mudou de sexo", escreve Michelet. As virgens das catedrais e das igrejas transmitem essa presença pacificadora, mas também obsedante, de Maria, rainha dos conventos, patrona das moças.

A fonte, Ingres

Filhas de Maria, elas são sujeitas à pureza. O pudor é o seu ornamento. A virgindade no casamento é seu capital mais precioso. Elas devem se defender da sedução e do estupro, que, entretanto, é praticado por bandos de jovens em busca de iniciação. Moças sozinhas à noite precisam ter cuidado. Não estão mais protegidas do que as mulheres na cidade noturna moderna. O corpo das mulheres está em perigo.

A virgindade das moças pertence aos homens que a cobiçam. Mais mito do que realidade, o direito do senhor feudal de deflorar a mulher do servo não deixa de ser rico de significações. O direito do esposo é mais real, pois se apodera de sua mulher na noite de núpcias, verdadeiro rito de tomada de posse. Ritual que, por muito tempo, era público (a verificação do lençol manchado que sobrevive na África do Norte), tornou-se cada vez mais íntimo. Principalmente a partir dos séculos XVIII e XIX, como o mostra a prática da viagem de núpcias.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2013. p. 64-5.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

O sexo das mulheres: a genitália (Parte 1)

O grande nu, Amedeo Modigliani


Como pano de fundo: a tela de Courbet, L'Origine du monde, hoje no Museu d'Orsay. Essa tela foi pintada para um colecionador de telas eróticas, Kalil Bey, ex-embaixador turco, que a guardava secretamente sob uma cortina, como um tesouro escandaloso; e escandalosa era ela, com efeito; nunca ninguém ousara representar a vulva entreaberta de uma mulher. O quadro, mais tarde, pertenceu ao psicanalista Jacques Lacan.


 A Origem do mundo, Gustave Courbet

O sexo é "a pequena diferença" anatômica que inscreve os recém-nascidos num ou noutro sexo, que faz com que sejam classificados como homem ou mulher. A indiferenciação é um drama. Michel Foucault publicou em 1978 as recordações de Herculine Barbin dite Alexia B., único título de uma coleção que ele havia lançado, intitulada "Les vies parallèles". Conta o drama de um hermafrodita, considerado mulher, que se sentia um homem, obteve o reconhecimento de que o era, mas acabou por se suicidar por causa da dificuldade em viver tal situação. A transexualidade é hoje reconhecida, sem que, no entanto, seja mais fácil conviver com ela.

Na maior parte das vezes, as pessoas se inscrevem na dualidade, no arranjo entre os sexos, para retomar a expressão de Erving Goffman, através do qual a sociedade organiza a diferença. Os trabalhos pioneiros vêm dos antropólogos: como Margaret Mead (1935), que inspirou Simone de Beauvoir, no Le Deuxième sexe (1949). "Não nascemos mulher. Tornamo-nos mulher": a fórmula famosa rompe com o naturalismo e convida à desconstrução das definições tradicionais. As relações do sexo (biológico) e do gênero (social, cultural) são o cerne da reflexão feminista contemporânea, que hesita a respeito desse recorte: o sexo é a determinação primeira? Ele não pertenceria ao gênero, num corpo cuja historicidade seria prioritária?

[...]

[...] De Aristóteles a Freud, o sexo feminino é visto como uma carência, um defeito, uma fraqueza da natureza. Para Aristóteles, a mulher é um homem mal-acabado, um ser incompleto, uma forma malcozida. Freud faz da "inveja do pênis" o núcleo obsedante da sexualidade feminina. A mulher é um ser em concavidade, esburacado, marcado para a possessão, para a passividade. Por sua anatomia. Mas também por sua biologia. Seus humores - a água, o sangue (o sangue impuro), o leite - não têm o mesmo poder criador que o esperma, elas são apenas nutrizes. Na geração, a mulher não é mais que um receptáculo, um vaso do qual se pode apenas esperar que seja calmo e quente. Só se descobrirá o mecanismo da ovulação no século XVIII e é somente em meados do século XIX que se reconhecerá sua importância. Inferior, a mulher o é, de início, por causa de seu seco, de sua genitália.

A importância atribuída ao sexo não é a mesma ao longo das épocas. Algumas a minimizam. Assim ocorre na Idade Média, quando se considera que os sexos são variedades de um mesmo gênero. O Renascimento [...] distingue o "alto" e o "baixo" do corpo, exalta o alto, nobre sede da beleza, e deprecia o "baixo", animal.

O século XVIII, das ciências naturais e médicas, descobre a parte de "baixo", como a do prazer e da vida. Ele "inventa" a sexualidade, com uma insaciável "vontade de saber" o sexo, fundamento da identidade e da história dos seres. Sexualiza os indivíduos, em especial as mulheres, como mostrou, seguindo a linha de Foucault, Thomas Laqueur. A mulher é identificada com o seu sexo, que a absorve e a impregna completamente. "Não há nenhuma paridade entre os dois sexos quanto à consequência do sexo, escreve Rousseau (Émile). O macho é macho apenas em certos momentos, a fêmea é mulher ao longo de sua vida ou, pelo menos, ao longo de toda a sua juventude; tudo a liga constantemente a seu sexo, e, para o bom cumprimento de suas funções, é-lhe necessário ter uma constituição que o propicie": cuidados, repouso, "vida suave e sedentária". Ela precisa da proteção da família, da sombra da casa, da paz do lar. A mulher se confunde com seu sexo e se reduz a ele, que marca sua função na família e seu lugar na sociedade.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2013. p. 62-4.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O eterno par de Alexandre Magno: amigos para sempre (Parte 3)

Funeral de Alexandre. Artista desconhecido

Nenhum destes episódios, nem outros que se sucederam durante os onze anos que durou a epopeia de Alexandre, conseguiram separar aqueles dois homens que tinham crescido e brincado juntos no palácio real da Macedônia. Heféstion continuou sempre a acompanhar o seu amigo, foi padrinho do casamento com Roxana, aconselhou-o o melhor que pôde e participou nas gloriosas batalhas, mas sempre vigiado por um chefe mais capaz. Esta posição de privilégio provocou muitas vezes a inveja e o ressentimento de pessoas próximas de Alexandre, como era o caso do excelente general Crátero, com quem Heféstion partilhou funções sem nunca chegarem ao entendimento. De acordo com algumas fontes, a diferença consistia em que Crátero era um philobasileus, ou seja, amante do rei e Heféstion um philoalexandrus, ou seja, amante de Alexandre.

Pouco depois, Alexandre nomeou o seu amigo como vizir, alto cargo dos reinos persas que equivalia a algo como primeiro-ministro. Seguindo a tradição da corte aquemênida, Heféstion passou a usar, a partir daquele dia, o báculo engastado de pedras preciosas para admiração da soldadesca e inveja do secretário imperial, Êumenes, cuja birra de zelo teve de ser firmemente reprimida por Magno.

Heféstion e Alexandre cavalgaram juntos, pela última vez, no Verão de 324, num passeio pacífico pelo Elão e pelo Sul da Babilônia para explorar os grandes rios da Mesopotâmia. O itinerário terminou em Ecbátana, capital da satrapia de Média. O sátrapa Atropates ofereceu aos ilustres visitantes um colossal banquete de boas-vindas, em consequência do qual Heféstion ficou gravemente doente. O vizir das argolas de ouro morreu em Outubro desse ano, proporcionando a inconsolável imagem de Alexandre e Dripetis, que choraram abraçados a sua perda. Êumenes, que procurava agradar ao imperador, propôs que o malogrado herói macedônio fosse homenageado como um deus (deve-se dizer que os Gregos nunca tiveram muito clara a ténue linha que separa os homens dos deuses). Comivido, Alexandre aceitou a ideia - quem sabe também a pensar na sua divinização - e Heféstion recebeu as honras sagradas bum funeral solene na Babilônia, até ao seu sumptuoso túmulo protegido por um enorme leão de pedra. O cadáver foi colocado no sarcófago, com o seu precioso báculo e os seus brincos de ouro e o cargo de vizir jamais voltou a ser ocupado por ordem de Alexandre.

A morte de Heféstion provocou mudanças no carácter de Alexandre, acentuando os seus devaneios de melómano e a sua instabilidade emocional. Comparou-se publicamente a Dioniso e a Héracles e exigiu aos seus vassalos o reconhecimento de sua divindade. [...]

"Plutarco escreveu que Alexandre tinha declarado uma vez que, sem Heféstion, nunca teria sido nada, E é verdade. Heféstion era um guerreiro competente, mas carecia do brilho de outros generais como Parménion ou Crátero. Apesar de tudo, ele estava mais próximo do coração do rei, o que tornou a sua vida difícil: todos os oficiais da corte o invejavam, E isso fez dele um homem solitário e completamente dependente do soberano. Por outro lado, Alexandre podia confiar totalmente em Heféstion." (Jona Lendering. Hephastion)

O imperador adoptou a austeridade espartana e nesse mesmo Inverno dirigiu ferozes expedições de castigo contra os rebeldes das montanhas de Luristão. Depois exigiu que todos os reinos, cidades e satrapias do seu império enviassem embaixadores a prestar-lhe vassalagem como divindade. Continuou a enviar tropas de reconhecimento com o objectivo de continuar a expandir o seu império até a Índia e a outras regiões do Oriente. Para estimular os seus generais e cortesãos, em Junho de 323, ofereceu um prolongado e esplêndido banquete na Babilônia, na sequência do qual ficou muito doente com um presumível delirium tremens alcoólico. Faleceu no dia 13 daquele mês, depois de dez dias de agonia profunda, aos trinta e três anos de idade e doze do glorioso reinado.

É interessante assinalar que, como só sucede em casamentos duradouros, Alexandre não sobreviveu muito tempo a Heféstion. Morreu oito meses mais tarde, de uma causa semelhante e em condições muito análogas às do companheiro de toda a sua vida. E se bem que Heféstion não teria sido ninguém sem ele, também é provável que, sem o afecto e a lealdade de Heféstion, Alexandre tivesse sido menos Magno.

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Estampa, 2006. p. 49-52.

sábado, 22 de outubro de 2016

O eterno par de Alexandre Magno: o amante desprezado (Parte 2)

Busto de Alexandre Magno. Escultura helenística. Artista desconhecido

Ambos os amigos já tinham passado dos vinte anos, o que, segundo os costumes gregos, extinguia a licença para brincar com o mesmo sexo. Estava na hora de assentar e procurar esposa. Alexandre, para ganhar tempo, ligou-se a uma amante persa chamada Bactrina. Heféstion passou discretamente a segundo plano não só na alcova do amigo, mas também pelas inócuas tarefas diplomáticas que este lhe atribuiu para o manter afastado.

Alguns autores registram um eventual ressentimento de Heféstion por essa indiferença do seu chefe e amante, que o teria levado a protagonizar um acto suspeito de deslealdade. O seu erro consistiu em receber um enviado de Demóstenes quando Alexandre se encontrava no Egipto. O político ateniense, entre outros assuntos, era um declarado inimigo de Alexandre e forte crítico do imperialismo macedônio, que provavelmente estava ao corrente do afastamento de Heféstion. A sua intenção não podia ser outra senão convencê-lo a revoltar-se contra Alexandre, obedecendo a um plano que Demóstenes urdia com outros chefes descontentes. Pelo menos foi o que disse mais tarde o mensageiro, embora não exista qualquer registro de que Heféstion tivesse aceitado juntar-se à conspiração, nem de que Demóstenes estivesse envolvido com a verdadeira conspiração que aconteceu em 330 a.C.

Nesse ano, um grupo de oficiais revoltou-se, mas foi rapidamente reprimido pelos chefes leais a Alexandre. Contudo, dois chefes das falanges da infantaria, Crátero e Ceno, acusaram Filotas, comandante-geral da cavalaria, de conhecer as intenções dos rebeldes e de não o ter revelado ao imperador. Numa primeira fase, Alexandre não deu importância ao assunto, mas Heféstion uniu-se aos denunciantes para exigir que o acusado fosse interrogado sob tortura. E Alexandre, que não quis infligir nova humilhação ao seu velho amigo, aceitou contrariado essa exigência. O tal Filotas, filho de outro brilhante general macedônio chamado Parmênion, era o comandante mais aguerrido e a sua cavalaria tivera um papel decisivo nos combates que proporcionaram a glória e o poder a Alexandre. Não era de estranhar, por isso, que os dois comandantes de infantaria e um amante desprezado o quisessem ver humilhado, torturado e, se possível, condenado à morte.

Os cronistas não descrevem o tipo de tortura a que foi submetido Filotas, mas o pobre homem acabou por confessar que ele e o seu pai tinham organizado a revolta para ocupar o trono e o comando supremo, no lugar do imperador. O tribunal militar montado por Alexandre sentenciou a execução imediata do réu e Parmênion foi também assassinado após a sua captura pelos homens enviados para o perseguir. Independentemente da verdade desta história, o imperador decidiu que era melhor não alimentar as ambições dos seus subordinados com demasiado poder. E, por via das dúvidas, dividiu a prestigiosa cavalaria em duas partes. Uma ficou sobre o comando do eficiente general Clito e entregou a outra como prêmio a Heféstion, totalmente inexperiente no comando deste tipo de tropa.

Durante os três anos seguintes, batalhou-se pela conquista da Bactriana e da Sogdiana, onde os cavaleiros desempenharam um papel fundamental. Os correspondentes de guerra da época elogiam Clito repetidamente, mas não citam Heféstion uma única vez. Segundo parece, porque Alexandre, que nunca confiou nas aptidões guerreiras do seu amigo, entregou a outro chefe o comando efectivo dos combatentes cavaleiros. E, por fim, a sorte favoreceu Heféstion, porque durante um festim o imperador matou Clito sem qualquer motivo numa discussão de bêbados e ele acabou por comandar a cavalaria.

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Estampa, 2006. p. 47-8.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

O eterno par de Alexandre Magno: um amor na Macedônia (Parte 1)

Alexandre e Heféstion, Andrea Camassei

Alexandre III da Macedônia, apelidado de Magno (o Grande), exemplo insuperável do herói militar da Antiguidade clássica e protótipo da beleza masculina na arte de todos os tempos, foi também um perfeito exemplo de guerreiro bissexual. Os historiadores tradicionais apresentam-no como um guerreiro incansável, obcecado pela conquista do seu império. Os mais ousados chegaram a sugerir que mal tinha tempo para pensar em sexo e que os seus casamentos com várias princesas orientais obedeceram a interesses políticos. Todos são unânimes em afirmar que ele rapidamente se desembaraçava delas para partir para as suas campanhas e raramente voltava a visitá-las. A mais afortunada foi talvez Roxana, filha de um sátrapa de Sogdiana, de quem teve o único filho que se conhece.

Paralelamente a esta imagem de conquistador omnipresente, férreo e um tanto misógino, subsistiu uma discreta e interminável polêmica sobre as verdadeiras tendências sexuais de Alexandre Magno. Se bem que o cerne da questão surgisse da ambígua relação de Alexandre com o seu amigo íntimo e colaborador Heféstion, há quem acredite que também se ligou com outro camarada de armas ou que, em caso de urgência, recorria aos prisioneiros e aos escravos que estavam ao seu serviço. Se, por um lado, parecia que as ocupações da guerra afastavam o jovem imperador das mulheres, por outro, deixaram-no muito unido aos seus homens.

Alexandre nasceu em 356 a.C., em Pela, a antiga capital da Macedônia. Era filho do rei Filipe II, que também teve as suas histórias, e da bela e dominadora Olímpia, princesa do Epiro. O pai andava sempre em guerra, um pouco por todo o lado, para unificar e expandir o seu reino e, por isso, a criança foi criada numa relação muito estreita com a sua sufocante mãe, que o amava com um fervor edipiano. Olímpia, entre beijos e abraços, não podia ter tido melhor ideia do que arranjar-lhe Aristóteles como preceptor, homem tão sábio como disposto a instruir os seus discípulos na diversidade que a vida oferece. O filósofo educou o pequeno Alexandre entre os treze e os dezesseis anos, idade certamente delicada para um jovem que já então tinha como companheiro de estudos e de brincadeiras o seu inseparável Heféstion.

Segundo Anábase, história das campanhas de Alexandre escrita por Arriano, Heféstion pertencia a uma família grega nobre, radicada na Macedônia. O pai, Amintor, fazia parte da colônia de gregos cultos contratados ao serviço do rei Filipe. Estes forasteiros notáveis recebiam tratamento de excepção, o que permitiu a Heféstion, apenas um ano mais novo do que Alexandre, ser educado com ele no palácio real. Filipe morreu em 336 a.C., depois de ter reinado durante duas décadas, e Alexandre sucedeu-lhe no trono com apenas dezanove anos. Incentivado pela sua impetuosa ambição, lançou-se numa vertiginosa campanha para submeter as cidades gregas, o que o obrigou a arrasar a emblemática Tebas. No ano seguinte, influenciados por tão impressionante exemplo, os chefes da Liga de Corinto concordaram em designá-lo comandante e estratego dos seus exércitos. Alexandre deixou como regente da Macedônia o maduro general Antípatro, que tinha sido lugar-tenente de seu pai, e empreendeu uma expedição para Oriente com o objectivo de se apoderar de tudo o que encontrasse pelo caminho.

Não existe notícia histórica de qual foi o papel de Heféstion nessa etapa, mas os cronistas voltam a mencioná-lo na Primavera de 334, quando Alexandre conquista a cidade de Tróia. Apenas o seu nome é citado, como se os contemporâneos já soubessem que era amigo de infância do rei da Macedônia, na época um de seus generais e, por assim dizer, o mais íntimo dos seus camaradas. Dizem as crônicas que Alexandre respeitou a lendária cidade homérica e que ofereceu um sacrifício no túmulo de Aquiles, enquanto Heféstion oferecia o seu próprio no de Pátrocles. Estas homenagens tiveram um curioso simbolismo, pois Homero já sugeria na Ilíada que os heróis troianos tinham sido amantes.

O nome de Heféstion volta a perder-se, enquanto a história registra o avanço de Alexandre na conquista das cidades costeiras da Ásia Menor, e reaparece na decisiva batalha de Issos, em Novembro de 333.

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Estampa, 2006. p. 43-44 e 46.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Harém: a vida entre prazeres e intrigas (Parte 3)

A pérola do mercador, Alfredo Valenzuela Puelma 

Em uma sociedade na qual a origem étnica tinha pouco significado (a diversidade das origens das mulheres o comprovava), na qual o nascimento se desvanecia diante do mérito (os sultões preferiam as escravas às princesas), o harém funcionava como um instrumento de promoção social. Chamar a atenção do senhor, compartilhar seu leito e dar-lhe um herdeiro garantia à feliz eleita um destino excepcional. Assim, não era surpreendente que, por vezes, as famílias oferecessem suas filhas ao grão-turco, na esperança de que elas vivessem "entre diamantes e esplendores", como era a ideia corrente no Cáucaso. Apesar da abolição da escravatura, proclamada no Império Otomano na segunda metade do século XIX, caucasianas continuaram a ingressar por sua própria vontade no harém.

O ponto mais alto dessa pirâmide, apoiada sobre a multidão anônima de escravos do sexo feminino, era ocupado pela sultana valide, a mãe do sultão reinante, título ambicionado entre todos. Ela era a verdadeira senhora do harém. Ela administrava com a ajuda dos eunucos negros, cuidava de suas finanças, organizava festas e cerimônias, enfim, ordenava toda a vida social da instituição.


Kisler Aga, chefe dos eunucos negros e primeiro detentor do Serraglio, Francis Smith

Suntuosamente sustentada por seu filho, ela possuía um patrimônio considerável, que não parava de crescer graças aos presentes oferecidos pelo alto pessoal político do império e também pelos embaixadores estrangeiros. O primeiro ritual que acompanhava a ascensão ao poder do novo sultão consistia em acolher a sua mãe no pátio do palácio e em saudá-la respeitosamente. Tal cerimônia evidenciava a importância da sua posição. Mais ainda, enquanto durasse o reinado de seu filho, a sultana valide via-se tentada a fazer crescer sua autoridade ao se atribuir um importante papel político.

Lugar de prazeres e centro de uma vida cortesã refinada, o harém podia ser também, de acordo com a personalidade ou a idade do monarca, um ninho de intrigas e de tráfico de influência e até mesmo o cenário de dramas sangrentos. A concorrência era brutal entre as mulheres que disputavam os últimos favores do senhor. [...]

A pouca idade ou a mediocridade dos sultões autorizaram as sultanas mães a controlar os assuntos do Estado, à imagem de Kösen Valide, que exerceu o poder de fato durante 30 anos, sob os reinados de seus dois filhos e de seu neto, antes de, por sua vez, vitimada pelas intrigas palacianas, ser estrangulada em 1651 [...]. Clientelismo, luta de clãs, disputas entre os grão-vizires, traições e assassinatos foram algumas das ignomínias que apimentaram a vida no harém,

Por muito tempo esse foi um mundo fechado. Contudo. no início do século XIX, durante o reinado do sultão reformador Mahmud II (1784-1839), concubinas e favoritas obtiveram a autorização de passear pela cidade ou pelos campos próximos para se distrair, desde que devidamente cobertas e acompanhadas por eunucos vigilantes.

Enquanto a evolução dos costumes dificultava a poligamia entre as elites otomanas - apenas uma ínfima minoria dos homens casados de Istambul tinha mais de uma esposa - o harém imperial contava ainda com 370 mulheres reunidas em torno do último grande sultão, Abdulhamid II (1842-1909), em seu novo palácio de Yildiz, às margens do Bósforo.

A revolução dos Jovens Turcos, que eclodiu em 1909, assinalou o fim do harém e a dispersão de suas pensionistas. Algumas ficaram encantadas de imediato com a liberdade reencontrada, enquanto outras, aterrorizadas pelo mundo exterior, do qual haviam estado separadas por tanto tempo, guardaram a nostalgia de um universo protegido.

Jean-François Solnon. Harém, a vida entre prazeres e intrigas. In: Revista História Viva. Ano XI / Nº 123 / p. 49-51.

domingo, 16 de outubro de 2016

Harém: a vida entre prazeres e intrigas (Parte 2)

Odalisca reclinada, Hermann Fenner-Behmer


A aprendizagem da etiqueta da corte, do savoir-faire mais refinado, o aperfeiçoamento nos domínios da música, da dança, da poesia lapidavam aquela que até então tinha apenas a beleza como atributo. Sua formação era contínua, assegurada pelo pessoal feminino do harém. Cada jovem era encaminhada a um serviço particular pelo mordomo do harém - servir à mesa, cuidar da roupa branca ou dos banhos - e recebia por aquela tarefa um salário diário. Ali se decidia o seu destino. Ao ter um desempenho superior em sua função, a mais bela, a mais inteligente, a mais hábil conseguia fazer-se notar. Assim nasciam rivalidades que formavam o pano de fundo da vida cotidiana do serralho.

A mais estrita hierarquia reinava entre as escravas. O escalão mais baixo era ocupado pelas cariye (pronuncia-se djanê), as iniciantes, das quais algumas poderiam vir a atrair a atenção do sultão. Nesse caso, eram chamadas de gözde (literalmente, "no olho"), companhias passageiras. O senhor conservava entre elas aquelas que dominavam as mais refinadas artes da atração - e as artes eróticas não eram as menos importantes.


No harém, Adolphe Yvon

Essas damas de companhia que o vestiam, o banhavam, serviam suas refeições e seu café, cuidavam de suas vestimentas, entre outras atribuições, eram chamadas de odalik - as famosas odaliscas -, termo vindo de oda, que significa "para o quarto".

A fortuna começava a sorrir àquelas que partilhavam mais regularmente a cama do sultão. Essas ikbâl, ou concubinas, dispunham no palácio de apartamentos privados e de servidores. A atribuição de um número de ordem (favorita nº 1, nº 2...) as hierarquizava. Mas todos os favores recaíam sobre aquela que dava à luz um filho. Ela tornava-se cadine (mulher nobre) e obtinha o status de esposa. O número dessas privilegiadas oscilava entre quatro e oito, a mais honrada sendo aquela que havia gerado o primeiro filho do sultão. Suntuosos aposentos lhe eram atribuídos, bem como rendimentos substanciais que lhe permitiam financiar hospitais, mesquitas, fontes ou banhos públicos em Istambul ou nas províncias.

Os efetivos femininos do harém variaram ao infinito, segundo a época e os desejos de cada senhor. Quase 200 no tempo de Solimão, o Magnífico, mais de 900 em meados do século XVII, entre 400 e 800 no século seguinte, 809 em 1870. Por ocasião da morte de um sultão, suas favoritas em geral eram encaminhadas ao Velho Palácio, situado no centro da capital, um "palácio das lágrimas", onde as mais idosas e as que haviam caído em desgraça definhavam aos poucos. No entanto, o costume permitia a algumas contrair novas núpcias com altos dignitários, com a concordância do novo soberano. Aquelas que jamais haviam merecido as atenções do sultão podiam, depois de nove anos de serviços, deixar o palácio e se casar; sua educação esmerada fazia delas parceiras cobiçadas.

Jean-François Solnon. Harém, a vida entre prazeres e intrigas. In: Revista História Viva. Ano XI / Nº 123 / p. 48-49.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Harém: a vida entre prazeres e intrigas (Parte 1)

Uma piscina no harém, Jean-Léon Gérôme 

No século XV, o palácio de Topkapi, construído no século precedente, foi ampliado. Seu harém pôde então abrigar até 1.500 mulheres. Uma cidade proibida, onde o amor e a política conviviam intimamente.

Na história do mundo, poucas instituições intrigaram tanto os ocidentais quanto os haréns dos sultões, que têm nos domínios do imperador otomano, em Istambul, o seu exemplo maior. Ele inspiraria as mais pródigas fantasias do mundo da cristandade, chegando ao carnaval do Brasil do século XXI. Gigantesco lupanar, sede incomparável de desvario sexual, o harém do grão-turco suscitava curiosidade, inveja ou repulsa, mas não deixava ninguém indiferente. Era possível imaginar belas ocidentais arrancadas de suas famílias para se tornarem as prisioneiras de um monarca libidinoso, submetidas a seus caprichos, joguetes de todas as suas fantasias, antes de serem lançadas no Bósforo quando não lhe agradavam mais.

Vinha também ao espírito o clichê dessas mulheres, condenadas a uma vida reclusa, ocupando seus dias ociosos a se enfeitar à espera de um simples olhar de seu senhor, ou a tecer intrigas destinadas a se vingar de uma rival. Os pintores ocidentais, frequentemente, nos mostraram as mulheres do harém despidas - como o fez Ingres com a sua Grande odalisca -, quando o clima de Istambul absolutamente não se harmoniza com uma nudez constante. Os escritores viajantes se dedicaram a descrever a vida cotidiana do harém, ainda que nenhum deles tivesse chegado algum dia a transpor os seus portões, enquanto outros pintavam o gineceu otomano como o teatro de sangrentas tragédias - ou, ao contrário, o jardim do Éden.


Harém, Théodore Chassériau

O harém era um local secreto. Muitos falaram dele, poucos o conheceram. Além disso, esse lugar misterioso era propício aos voos da imaginação. A palavra vem do árabe haram, que designa um lugar protegido por regras, proibido, sagrado. Em um sentido mais comum, o harém correspondia à parte secreta de uma casa, uma parte na qual mulheres, crianças e empregados domésticos viviam em isolamento completo: um espaço vedado aos homens.

Uma residência muçulmana compreendia os aposentos dos homens (o selamlik) e os das mulheres (o haremlik). Da mesma maneira, no palácio imperial, o harém era a parte mais secreta do enderûn, espaço interno da residência do sultão e seu domínio privado, em oposição ao birûn, espaço externo consagrado à vida na corte e ao Estado.

A vocação do harém imperial não se limitava a satisfazer os prazeres carnais do sultão, mesmo quando alguns entre eles - como Murad III (1546-1595), de quem se diz que "rendia homenagens" a duas ou três mulheres a cada noite - se mostravam insaciáveis em seu apetite sexual. Sua função essencial era assegurar a perenidade da dinastia, sua sobrevivência biológica, graças a uma abundante descendência masculina destinada a fazer contraponto à elevada mortalidade infantil e às frequentes mortes violentas. O grande número de parceiras femininas do sultão era a melhor garantia disso. Assim os "filhos de Osman", criador no século XIII da dinastia que foi chamada de otomana, reinaram ininterruptamente sobre o império até a supressão do sultanato por Mustafá Kemal, em 1922. Mais ainda, ao contrário das monarquias europeias, a Sublime Porta jamais conheceu uma guerra de sucessão.

A concentração de mulheres devotadas a gerar descendentes não deveria suscitar dificuldades políticas com suas famílias. Para eliminar esse risco, eram escolhidas esposas privadas de laços familiares. Toda ameaça de conspiração e até mesmo de levante ou de revolta, fomentada por parentes excessivamente ambiciosos, era desse modo descartada. Se os primeiros sultões desposaram princesas da Anatólia, bizantinas, búlgaras ou sérvias, seus sucessores, desde o fim do século XV preferiram as escravas. Mais ainda, para evitar com certeza os pretendentes externos, as filhas do sultão quase nunca se uniam a príncipes estrangeiros, e sim a notáveis e altos dignitários do império.

Onde encontrar, então, concubinas sem família destinadas ao palácio imperial? Nenhuma turca nem muçulmana de origem podiam ser mantidas nessa situação, pois o Islã proíbe reduzir uma fiel do Profeta à escravidão. Eram, portanto, mulheres cristãs que povoavam o harém - tomadas como presas de guerra, compradas nos mercados de escravos ou oferecidas ao sultão por dignitários zelosos.

Essas virgens eram geralmente originárias da Geórgia ou da Circássia, ambas no Cáucaso - região reputada pela beleza das mulheres -, o que não excluía as jovens de Veneza ou da Grécia, capturadas no Mediterrâneo. O sultão as preferia de carnes generosas, tez clara, com a pele leitosa, o rosto redondo, os cabelos louros ou de um negro aveludado e os olhos azuis.

Ser admitida no harém do grão-turco exigia ultrapassar uma série de obstáculos. A beleza era, sem dúvida, necessária, mas não suficiente. A futura concubina, que não devia esconder nenhuma imperfeição ou defeito físico, era minuciosamente examinada por um médico ou uma parteira. Depois dessa prova, ela era apresentada à mãe do sultão, que a acolhia. Ela recebia então um nome - de flor, de pássaro ou que lembrasse um traço de seu caráter -, era iniciada no Islã pela leitura e escrita do Corão, convertia-se e iniciava a aprendizagem da língua turca. Mas restava o essencial.

Jean-François Solnon. Harém, a vida entre prazeres e intrigas. In: Revista História Viva. Ano XI / Nº 123 / p. 46-48.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Francisco de Bourbon: noivo com rendas (Parte 3)

Parte 3: Final cor-de-rosa

Depois deste episódio, a influência política do padre Claret aumentou consideravelmente, acompanhado por dois pitorescos agentes do Vaticano: Soror Maria dos Patrocínios, "a freira das chagas", que tinha inventado um falso milagre infligindo a si própria os estigmas de Cristo, e uma estrambólica personagem chamada padre Fulgêncio. Sob o conselho deste trio de religiosos fundamentalistas, Isabel começou a tomar medidas cada vez mais reacionárias, desde que as suas escapadelas adúlteras não chegassem aos ouvidos do papa. O povo começou a expressar abertamente a sua rejeição e os liberais dedicaram-se a plantar conjuras para destronar a rainha. Francisco, que se limitava a fazer a sua vida com os amigos e amantes sem intervir nos assuntos do reino, viu chegada a hora do divórcio. Participou abertamente nas conspirações opositoras, às quais ofereceu apoio institucional e celebrou alvoroçado a revolução de 1868, que obrigou Isabel II a exilar-se em França, embora também tenha seguido o mesmo caminho. Dois anos mais tarde, Isabel abdicou em Paris a favor de Afonso XII, enquanto Francisco, feliz e contente, se dedicou a desfrutar a vida e as suas alegrias durante longos anos. Morreu, já octogenário, nas sua quinta como uma personagem secundária, mas sem lhe negar o mérito de ter sido, desde os tempos do infante dom Jaime, o primeiro a ostentar sem sentimento de culpa a sua condição de gay.

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Estampa, 2006. p. 210.

Galeria de imagens: "Los borbones em pelota", aquarelas atribuídas a Valeriano Domínguez Bécquer & Gustavo Adolfo Bécquer, século XIX.

A la izquierda: Francisco de Asís sosteniendo una pelela; Isabel II en la cama siendo fornicada por el Padre Antonio María Claret; a la derecha, Carlos Marfori. Texto: ¡Oh viejo que estás jodiendo! / al infierno vas cayendo!

Francisco de Asis de Borbon. Texto: "El rey consorte, primer pajillero de la Corte."


Carlos Marfori con una botella de vino; Sor Patrocinio recibiendo el galanteo de González Bravo; Francisco de Asís requiriendo a González Bravo mientras es sodomizado por el Padre Antonio María Claret; en el suelo, dos perritos copulando (no se puede apreciar de qué sexo son los dichos perritos)


Isabel II con su intendente Carlos Marfori. Fco de Asís. A la derecha espera un batallón de guardia.
Leyenda de la acuarela:
Isabel —Espérate a que acabe mi intendente.
Paquita —¡Aguardemos la vez, como en la fuente!


Isabel II fornicando con Carlos Marfori. Texto: "¡Carlos, Carlos, yo lo espero / de tu hidalgo corazón / mételo sin dilación / que ya por joder me muero!"


Viñeta de la saga satírica Los Borbones en Pelota con el pareado "Sentada está en su poltrona, con cetro, chulo y corona"


(Reproducción o ilustración del álbum de láminas satíricas "Los Borbones en pelota")

domingo, 9 de outubro de 2016

Francisco de Bourbon: noivo com rendas (Parte 2)

Parte 2: A rainha dissoluta e o seu marido gay


Retrato do rei Francisco de Bourbon, rei consorte de Espanha por seu matrimônio com a rainha Isabel II de Espanha. Artista desconhecido 

A cerimônia nupcial celebrou-se com grande pompa e circunstância no dia 10 de Outubro de 1846, com Francisco de Assis adornado e enfeitado com as suas melhores vestes e a rainha resplandecendo, vaidosa, nos seus corpulentos dezasseis anos acabados de completar, ambos com um ar de resignação no olhar húmido. O povo de Madrid celebrou como convinha o primeiro casamento de uma rainha desde o de Isabel com Fernando, em 1496, que, para cúmulo, se tinha celebrado em segredo. Nessa noite, depois de terminados os festejos, ouvia-se pelas ruas uma cantoria desafinada e jocosa que descrevia assim o casal real: "Isabelona, tão frescalhona e dom Paquito, tão 'mariquito'".

Dentro do palácio, os protagonistas confirmavam a cançoneta. Francisco de Assis apresentou-se na alcova real com uma camisa tão carregada de bordados e rendas, que provocou o sarcástico comentário que abre a Parte 1. A noite não deu para muito mais e, na manhã seguinte, saíram ambos com forçados sorrisos de circunstância. O passar das semanas, que se transformou em meses, não trouxe qualquer novidade ao ventre da rainha e pela corte começou a correr o rumor que Francisco, para além das suas particulares tendências, também era impotente. Uma criada de quarto ventilou a confidência de o real esposo não ter força no seu... e que o tinha visto a urinar sentado na sanita. O engenho popular não tardou a inventar uma nova rima a esse respeito:

"Paquito adocicado,
De creme parece ser;
Até urina sentado
Tal como uma mulher..."

Apesar de continuar a enfeitar-se, Francisco de Assis tentou manter uma atitude prudente e formal no desempenho do papel de marido real. Também é provável que, de vez em quando, tentasse uma cópula, cujo fruto teria contentado a corte, o povo e talvez a própria interessada. Mas Isabel não tinha nascido para piloto de ensaios e as suas hormonas, em pleno desenvolvimento, pediam-lhe outro tipo de guerra. Lançou-se numa vida cada vez mais libertina, oferecendo o seu corpo adolescente e robusto às alegrias que não encontrava com Francisco. Talvez ele tivesse suportado com alívio esta situação se a rainha tivesse mantido a compostura em público. Contudo, Isabel não só não dissimulava a sua conduta adúltera, como também se permitia censurar o marido, gozando com os seus cornos, a sua impotência e os seus gostos afectados.

Alguns meses depois do casamento, Isabel II tomou por amante o general Francisco Serrano, duque da Torre, ministro da Guerra e herói da guerra carlista. Numa recepção do palácio, Serrano soltou um comentário ofensivo sobre a situação conjugal de Francisco, que não perdoou a Isabel tê-lo aplaudido ruidosamente. A partir deste incidente, quebrou-se a trégua entre ambos, que passaram a ocupar quartos separados. A rainha aproveitou a ocasião para aumentar escandalosamente a lista de amantes, incluindo o seu professor de canto, o compositor de zarzuelas Emilio Arrieta; o sedutor profissional Emilio Marfiori, a quem nomeou conselheiro do reino e ministro do Ultramar; o aristocrático duque de Bedmar e, entre muitos outros, o oficial de engenharia catalão Puig i Moltó, presumível pai de Afonso XII.

A conduta libertina de Isabel trouxe-lhe inevitavelmente problemas com o Vaticano, que chegou a ameaçá-la veladamente com a excomunhão. O assunto sanou-se graças aos bons ofícios do padre Antonio María Claret, confessor da rainha e futuro santo, que utilizou toda a sua influência junto de Pio IX. Isabel  prometeu emendar-se e devolveu à Igreja uma série de propriedades e prerrogativas perdidas com os governos liberais. A Santa Sé estabeleceu uma concordata com Espanha, em 1851, e diz-se que, quando um cardeal recordou ao pontífice a fama da rainha, este concordou sorridente e suspirou enquanto assinava. "Si, puttana; má pia".

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Estampa, 2006. p. 208-9.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Francisco de Bourbon: noivo com rendas (Parte 1)

Parte 1: Matrimônio por impotência

Por amor de Deus, Francisco, usas mais rendas que eu!
(Isabel II, na sua noite de núpcias)

 Retrato de Francisco de Assis Bourbon, Federico de Madrazo y Kuntz

Francisco de Assis de Bourbon era o secundogénito desta nobre casa, que teve a sorte de se casar com uma rainha e o azar de esta ser sua prima Isabel II de Espanha. Muito mulher, em todos os sentidos, para que um marido homossexual e bastante efeminado pudesse levar com alguma dignidade um matrimônio de aparência por razões de Estado. O pobre Francisco, Paquito como todos lhes chamavam, tentou honestamente no início, mas sem conseguir dissimular de todo os seus adornos. Mas Isabel também não perdeu tempo. Pouco depois do casamento, lançou-se numa vida imprópria de qualquer senhora e muito menos de uma rainha. Os seus coquetismos públicos, a sua enorme colecção de amantes, as suas piadas cortantes sobre o seu efeminado marido, que o faziam corar de vergonha e o indignavam ao mesmo tempo, deterioravam tanto a sua imagem pública como a paciência do forçado cônjuge. O confronto levou a uma ruptura, nem se dando ao trabalho de manterem as aparências, e Francisco começou a tramar uma elaborada vingança.

Quando, em 1822, Francisco de Assis de Bourbon nasceu no palácio de Aranjuez, foi para fazer parte de uma família complicada.

O pai, o infante Francisco de Paula, tinha sido oficialmente o herdeiro da coroa, embora nunca tivesse chegado a reinar. A revolta de Aranjuez de 1808, que motivou a abdicação de Carlos IV, destituiu o seu primogénito a favor do irmão mais novo, que subiu ao trono como Fernando VII. A razão evocada pelos amotinados e referendada pelas Cortes de Cádis foi a de Francisco de Paula não ser, na verdade, filho de Carlos IV, mas do odiado favorito Godoy e da rainha Maria Luísa. O presumido bastardo ficou na incómoda posição de infante despeitado e ressentido, com o título de consolação de duque de Cádis. Francisco cresceu nesse ambiente paterno de rancor surdo, refugiado no amor e nos excessivos mimos de sua mãe, Luísa Carlota de Nápoles. Ao chegar à puberdade, era um menino muito bonito, baixo e gordo, de maneiras efeminadas e uma constante obsessão pela roupa requintada, pelos perfumes e adornos extravagantes. Algum tempo depois, os mexericos da corte já lhe atribuíam o seu primeiro amante na figura do duque de Baños, com quem Francisco exibia a sua afetada elegância em locais de diversão frequentados pela aristocracia e pela nova classe política.

Entretanto, sobreveio a restauração de Fernando VII, que não honrou o seu cognome de O Desejado ao derrogar a constituição liberal de 1812 (a famosa "Pepa") e provocar com isso uma série de revoltas que o obrigaram a estabelecê-la e a admitir um governo liberal. O triénio progressista terminou abruptamente com a invasão dos "Cem mil filhos de São Luís", uma tropa francesa enviada pela Santa Aliança para repor o regime absolutista. Em 1829, Fernando VII casava-se com Maria Cristina de Bourbon, que lhe deu uma filha chamada Isabel. Para que ela pudesse herdar o trono, o rei aboliu a tradicional Lei Sálica, que excluía as mulheres da sucessão, o que causou a indignação dos sectores conservadores ultracatólicos, que começaram a plantar a candidatura do infante Carlos, irmão de Fernando e, até então, legítimo herdeiro. O soberano faleceu em 1833 e Maria Cristina apressou-se a coroar a filha e a assumir a regência.

Isabel II tinha três anos de idade quando foi proclamada rainha de Espanha, com o desacordo dos ultramontanos que desencadearam a chamada primeira guerra carlista. Em 1840, as tropas reais obtém uma difícil vitória, comandadas pelo hábil e ambicioso general Baldomero Fernández Espartero. A rainha-mãe cede-lhe então a regência, que termina três anos depois com a declaração da maioridade de Isabel. Por volta dos treze anos, a rainha era uma menina gorda e caprichosa e, ao mesmo tempo, um tentador partido político para todos os grupos internos e numerosos governos europeus. Todos começaram a procurar-lhe um noivo, atendendo aos vários interesses em causa.

Entre os aspirantes com mais possibilidades estavam Leopoldo de Saxe-Coburgo, favorito da rainha-mãe; Carlos Luís Bourbon, conde de Montemolín, proposto pelos franceses, e Pedro de Bragança, filho do rei de Portugal, que na altura teria apenas oito anos. Mas os reinos patrocinadores vêem os seus candidatos recusados uns atrás dos outros. Surge então a ideia de organizar o duplo matrimónio de Isabel II e de sua irmã, a infanta Maria Luísa, com dois noivos que compensassem as diferenças políticas e dinásticas no teatro europeu. O rei de França, Luís Filipe de Orleães, aproveita e monta um maquiavélico plano. Os seus agentes em Espanha asseguraram-lhe que Francisco de Assis era homossexual e diz-se que a própria Luísa Carlota confirmou em segredo esta condição do seu filho, com a esperança de o rapaz se esforçar e lhe dar um neto que pudesse reinar. Luís Filipe, mais céptico, acredita ser pouco provável que isso ocorra e concretiza a sua proposta: Isabel casar-se-á com Francisco, que é um Bourbon, e a infanta Maria Luísa, com António de Orléans. Se, como era de esperar, a rainha e o seu cônjuge não tivessem descendência, a Casa de Orléans passaria a deter a coroa de Espanha.

Maria Cristina aceitou esta opção para consolidar as suas delicadas relações com a França e o matrimônio recebeu a aprovação do governo e das cortes. A única que se opôs frontalmente ao casamento foi a própria noiva que, de acordo com as crónicas, caiu num histérico ataque de choro e ameaçou abdicar, gritando: "Com Paquito não! Com Paquito não!".

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Estampa, 2006. p. 204-8.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Peregrinação a Kiev e bailes de máscaras em Moscou (Parte 3)

Catarina II da Rússia, Dmitry Grigoryevich Levitsky

Naquele outono, porém, Catarina viu e sentiu o lado negro da personalidade de Elizabeth. A vaidade da imperatriz exigia que ela fosse não somente a mais poderosa mulher do império, mas também a mais bela. Não tolerava ouvir elogios à beleza de outra mulher. Os triunfos de Catarina não lhe passaram despercebidos, e sua irritação encontrou um escape. Numa noite, na Ópera, a imperatriz estava com Lestocq no camarote real, oposto ao camarote de Catarina, Joana e Pedro. No intervalo, a imperatriz notou Catarina conversando alegremente com Pedro. Como poderia essa jovem, a radiante saúde e confiança em pessoa, agora tão popular na corte, ser a mesma menina tímida que chegara à Rússia um ano antes? De repente, o ciúme da imperatriz flamejou. Olhando para a mulher mais jovem, ela pegou o primeiro agravo que lhe veio à mente. Como se o assunto não pudesse esperar, despachou Lestocq para o camarote de Catarina para lhe dizer que a imperatriz estava furiosa com ela porque tinha contraído débitos inaceitáveis. Elizabeth lhe dera 30 mil rublos para onde tinham ido? Ao dar o recado, Lestocq fez questão de que Pedro e todos à volta pudessem ouvir. As lágrimas jorraram dos olhos de Catarina e, mesmo chorando, recebeu nova humilhação. Pedro, em vez de consolá-la, disse que concordava com a tia e achava apropriado que a noiva fosse repreendida, Joana então declarou que, como Catarina não mais a consultava sobre como sua filha deveria se comportar, "lavava as mãos" daquela história.

A queda foi súbita, abrupta. O que tinha acontecido? Que crime tinha cometido a menina de 15 anos, que só pensava em agradar a todo mundo, especialmente à imperatriz? Catarina foi verificar e viu que tinha um débito de 2 mil rublos. A quantia era irrisória em vista da extravagância e generosidade da própria Elizabeth, e a reprimenda era obviamente uma desculpa para encobrir outra queixa. É verdade que Catarina gastava sem restrições. Tinha mandado dinheiro para o pai pagar as despesas de seu irmão. Tinha gastado consigo mesma. Ao chegar à Rússia com apenas quatro vestidos e uma dúzia de roupas de baixo em seu baú, e assumindo seu lugar numa corte em que as mulheres trocavam de roupa três vezes por dia, ela usou parte de sua mesada para montar um guarda-roupa. Mas a maior parte havia sido gasta em numerosos presentes para sua mãe, suas damas de companhia e para o próprio Pedro. Ela descobrira que o meio mais eficaz de pacificar o temperamento da mãe e parar com as constantes implicâncias entre Joana e Pedro era dar presentes para ambos. Percebeu que, naquela corte, presentes conquistavam amizades. Percebeu também que a maioria das pessoas a sua volta não fazia objeção a receber presentes. Portanto, ansiosa por conquistar boa vontade, não viu motivo para desprezar esse método simples e poderoso. Em poucos meses, tinha aprendido não só a língua, mas também os costumes da Rússia.

Era difícil entender e aceitar esse repentino ataque da imperatriz. Revelava as duas faces de Elizabeth, uma mulher que, alternadamente e sem aviso, encantava e intimidava. Depois, quando Catarina se lembrava da lição aprendida ao lidar com um ego inflado como o de Elizabeth, todas as mulheres da corte deviam evitar ter muito sucesso. Ela se esforçou para se reintegrar com sua protetora. E Elizabeth, quando o ataque de ciúmes cedeu, se abrandou e acabou por esquecer o incidente.

MASSIE, Robert K. Catarina, a grande: retrato de uma mulher. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. p. 87-88.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Peregrinação a Kiev e bailes de máscaras em Moscou (Parte 2)

Catarina II da Rússia, Fyodor Rokotov

"Sabendo como minha mãe se exaltava facilmente e que seu primeiro impulso era sempre muito violento, temi que ela me desse um tapa se eu discordasse dela. Sem querer mentir para ela nem ofender o grão-duque, fiquei calada. Contudo, acabei dizendo a minha mãe que eu não achava que o grão-duque tinha feito de propósito."

Joana então se voltou contra Catarina.

Quando minha mãe estava com raiva, tinha de achar alguém com quem brigar. Permaneci em silêncio e depois explodi em lágrimas. A princípio, meu silêncio enraiveceu a ambos. Então o grão-duque, vendo que toda a raiva de minha mãe se dirigiu para mim porque eu tinha tomado o partido dele e que eu estava chorando, acusou minha mãe de ser uma megera arrogante e injusta. Ela contra-atacou, dizendo que ele era "um menininho mal-educado". Seria impossível brigar com mais violência sem chegar aos tapas.

A partir de então, o grão-duque tomou grande antipatia por minha mãe e nunca esqueceu aquela briga. Minha mãe, por sua vez, guardou por ele um irremediável rancor. Aquele relacionamento tenso se tornou cada vez mais cheio de amargor e suspeita, passível de azedar a qualquer momento. Nenhum dos dois conseguia esconder de mim seus sentimentos. E por mais que me esforçasse para obedecer a uma e agradar ao outro - e de algum modo promover a reconciliação -, conseguia isso apenas por curtos períodos. Cada um tinha sempre uma farpa de sarcasmo ou malícia pronta a ser arremessada. Minha posição ficava mais difícil a cada dia.

Catarina estava angustiada, mas o mau gênio da mãe e a simpatia de catarina pelo grão-duque surtiram um efeito: "Na verdade, naquela época, o grão-duque abriu seu coração para mim mais que para qualquer outra pessoa. Ele via que minha mãe sempre me atacava e me repreendia quando não conseguia encontrar alguma falta nele. Isso me colocou numa alta posição em sua estima; ele acreditava poder confiar em mim."

No clímax da peregrinação, a imperatriz e a corte passaram dez dias em Kiev. catarina teve uma visão inicial panorâmica da magnífica cidade, com seus domos dourados se erguendo de uma encosta na margem oeste do rio Dnieper. Elizabeth, Pedro e Catarina entraram a pé na cidade, andando com uma multidão de padres e monges atrás de uma grande cruz. Em toda parte da mais sagrada de todas as cidades russas, numa época em que a Igreja era imensamente rica e o povo devotamente piedoso, a imperatriz foi recebida com uma pompa extravagante. Na famosa igreja de Assunção no monastério Pecharsky, Catarina ficou admirada com o fausto das procissões, a beleza das cerimônias religiosas, o incomparável esplendor das próprias igrejas. "Nunca, em toda a minha vida", ela escreveu mais tarde, "algo me deixou tão impressionada quanto a extraordinária magnificência daquela igreja. Todos os ícones eram recobertos de ouro maciço, prata, pérolas e incrustados de pedras preciosas."

Embora tão impressionada por esse espetáculo visual, nunca em sua vida Catarina foi muito devotada à religião. Nem a austera crença luterana de seu pai, nem a apaixonada fé ortodoxa da imperatriz Elizabeth jamais tomaram posse de sua mente. O que ela via e admirava na igreja russa era a majestade da arquitetura, da arte e da música, mescladas numa esplêndida unidade de inspirada - embora feita pela mão do homem - beleza.

Tão logo Elizabeth e a corte retornassem de Kiev, começou nova temporada de óperas, festas e bailes de máscaras em Moscou. Cada noite Catarina aparecia com um vestido novo e lhe diziam que estava muito bonita. Ela era astuta o bastante para reconhecer que a lisonja era o óleo lubrificante da vida na corte, e estava também ciente de que algumas pessoas ainda a desaprovavam. Bestuzhev e seus seguidores, damas ciumentas que invejavam a estrela em ascensão, parasitas que mantinham minuciosa contabilidade da distribuição de favores. Catarina tentava de todas as maneiras desarmar seus críticos. "Eu tinha medo de não ser querida e fazia tudo em meu poder para conquistar aqueles com quem iria passar minha vida", ela escreveu mais tarde. Acima de tudo, ela nunca esqueceu a quem devia maior lealdade. "Meu respeito pela imperatriz e minha gratidão a ela eram extremos", ela disse. "E ela costumava dizer que me amava tanto ou mais que ao grão-duque."

Um modo certo de agradar a imperatriz era dançar. Para Catarina era fácil: assim como Elizabeth, ela gostava apaixonadamente de dançar. Diariamente, às sete horas da manhã, monsieur Lande, o mestre francês de balé na corte, chegava com seu violino e, durante duas horas, ensinava-lhe os passos da última moda em Paris. De quatro a seis da tarde, ele voltava para outra aula. E assim, à noite, Catarina impressionava a corte com sua dança graciosa.

Alguns desses bailes noturnos eram bizarros. Toda terça-feira, por decreto da imperatriz, os homens vinham vestidos de mulher e as mulheres vestidas de homem. Catarina, aos 15 anos, se deliciava com essa mudança de trajes. "Devo dizer que não havia nada mais horrendo e ao mesmo tempo mais cômico do que ver quase todos os homens vestidos desse jeito e nada mais triste do que ver as mulheres em roupas de homem." A grande maioria da corte detestava profundamente essas noites, mas Elizabeth tinha um motivo para esse capricho: ela ficava esplêndida em roupas de homem. Embora longe de ser esguia, sua silhueta de busto farto ficava realçada pelo par de pernas esbeltas, maravilhosamente bem torneadas. Sua vaidade exigia que aquelas pernas elegantes não permanecessem escondidas, e a única maneira de exibi-las era em calças justas masculinas.

Catarina descreveu o perigo com que se defrontou numa dessas noites:

Monsieur Sievers, muito alto, usando um vestido com ampla anágua armada que a imperatriz lhe emprestara, estava dançando uma polonaise comigo. A condessa Hendrikova, que dançava atrás de mim, tropeçou na anágua armada de monsieur Sievers no momento em que ela dava um rodopio segurando minha mão. Ao cair, ela esbarrou em mim com tanta força que caí debaixo da anágua, que tinha saltado como uma mola bem ao meu lado. Sievers, por sua vez, se embaraçou nas próprias saias longas, que estavam em grande desordem, e acabamos nós três estatelados no chão, eu inteiramente coberta pela anágua dele. Eu estava morrendo de rir, tentando me levantar, mas foi preciso que viessem nos ajudar porque estávamos tão embrulhados na roupa de monsieur Sievers que nenhum dos três conseguia se levantar sem fazer com que os outros dois tornassem a cair.

MASSIE, Robert K. Catarina, a grande: retrato de uma mulher. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. p. 84-87.