A moda e a indumentária podem ser uma fonte rica de pesquisa para o historiador e dar uma importante contribuição para o entendimento da formação da sociedade brasileira. Ao longo dos séculos, o modo de vestir revela significativas diferenças regionais e sociais no interior do país, resultado da interação de diversas culturas que alteraram substancialmente o modelo europeu e "branco" transplantado para a colônia.
Em uma terra onde os nativos andavam nus, os europeus trouxeram uma cultura em que os trajes tinham a função de identificar classes sociais e demarcar as origens de cada um, formando uma intrincada e complexa dinâmica social. Relatos de religiosos, viajantes europeus e governantes portugueses nos trazem informações preciosas sobre o modo de vestir dos habitantes da colônia. A parcela mais abastada da sociedade passou a utilizar a indumentária como forma de marcar a distância em relação à grande massa de habitantes pobres e de escravos. Já os moralistas da Igreja e do Estado, as pessoas que se preocupavam com o chamado "bem público", condenavam o luxo, a vaidade e a ostentação.
Funcionário do governo saindo a passeio, Jean Baptiste Debret. Família sai à rua ostentando roupas elegantes e escravos bem-vestidos, importantes sinais de prestígio no Brasil do século XIX.
A Igreja e a Coroa portuguesa estavam atentas a tudo que pudesse desestabilizar o modelo idealizado de sociedade, fortemente hierarquizado, não havendo espaço para a quebra das regras preestabelecidas de comportamento. [...]
Nessa época, "estar na moda" era estar em sintonia com o que era uado pela alta nobreza. Rainhas, reis, príncipes e princesas eram em quem todos gostariam de se espelhar. Mais do que elegância, vestir-se como os poderosos mostrava status, origem, classe social. Antes de tudo, era sinal de pertencer a um grupo muito seleto de pessoas que se diferenciavam do restante da população. As cortes mais importantes se alternavam como grandes referências do que se devia ou não vestir. Portugal nunca ocupou esse lugar de honra entre as nações europeias. Espanha, Inglaterra, Veneza, Florença e, principalmente, França ditavam moda.
Negro e negra do Brasil, Rugendas. Muitos negros cativos e libertos compravam roupas com o dinheiro que recebiam trabalhando nas ruas das cidades. Esse luxo da "população de cor" incomodou as elites por criar uma "promiscuidade de classe".
* Luxos coloniais. Um jesuíta ilustre, o português Antônio Vieira, chamou a atenção para o tema da ostentação e do luxo na indumentária colonial em uma de suas famosas pregações. [...] Uma elite formada por senhores de engenho, grandes proprietários de terra e traficantes de escravos, buscava se destacar na colônia, aguardando ansiosamente os navios que vinham da Europa com novos produtos e notícias sobre a moda vigente nas cortes europeias.
Existem diversos relatos de época contendo informações sobre o luxo do vestuário dos brasileiros. A maioria demonstra certo espanto com as roupas e os modos dos membros da elite, que quase sempre pecavam pelo excesso. No Brasil, os títulos de nobreza eram raros, pelo menos até a chegada da família portuguesa, em 1808, quando D. João VI começou a distribuir honrarias. Formou-se uma casta de fidalgos, geralmente sem título, mas com posses, disposta a provar a todo custo seu caráter nobre.
[...] A exibição de uma árvore genealógica sem mácula (mesmo que falsa), ter amizades influentes, praticar o ócio, exibir títulos (muitos de procedência duvidosa) eram as formas preferidas de demonstrar distinção social. Para ser reconhecido como fidalgo e ter os privilégios que isso proporcionava, não era suficiente possuir terras e grande número de escravos. Era necessário deixar bem visíveis os sinais que exteriorizavam essa condição. O ser e o parecer se confundiam nesta sociedade.
Os tecidos eram artigos muito valorizados no período colonial, já que eram todos importados via Portugal e comercializados a preços altíssimos pelos mercadores, que os traziam de navio ao Brasil. [...]
* Sociedade de contrastes. Na colônia, os hábitos ligados ao vestuário eram caracterizados por alguns paradoxos. Um dos mais interessantes é o contraste entre as roupas de sair às ruas e as adotadas dentro de casa. Até o século XIX, as mulheres fidalgas que viviam no Brasil pouco podiam sair, a não ser para ir às igrejas, em comemorações de datas religiosas, procissões, ou nas festas do Estado. Quando o faziam, sempre acompanhadas de parentes do sexo masculino (pais, irmãos ou maridos) e de suas mucamas, as damas costumavam vestir uma capa ou mantilha (de renda, sarja ou mesmo lã) que lhes cobria todo o corpo e deixava apenas os olhos de fora. Por baixo de tanto recato, vestiam-se à moda francesa, com tecidos de boa qualidade e muitas jóias [...].
Já para ficar em casa e até receber as visitas, as mulheres adotavam um traje bem simples e bem mais liberal: um tipo de camisolão ou camisa de mangas curtas, de tecido leve e transparente, decotado. [...] Algumas vestiam uma saia leve sobre essa camisola. As finas senhoras quase não usavam meias ou sapatos, apenas chinelas, ou permaneciam mesmo descalças. Nada de espartilhos ou corpetes. O peito ficava descoberto, sem pudores; os cabelos, soltos. Os homens também se tornavam desleixados na intimidade: dispensavam as meias ou as usavam caídas, a camisa branca ficava fora dos calções, sem coletes, casacas ou capas. No máximo, uma jaqueta fina ou gibão (casaco curto). Os mais despojados vestiam apenas ceroulas e camisa. Sapatos eram substituídos por chinelos.
No caso dos escravos, a responsabilidade de mantê-los decentemente vestidos era dos senhores. Em geral, estes não se preocupavam em oferecer trajes adequados para os servos. Apenas os escravos "de dentro" ganhavam roupas mais luxuosas, principalmente quando saíam à rua, pois era sinal de prestígio exibir escravos bem vestidos acompanhando seus senhores e senhoras em passeios pela cidade. Os outros costumavam andar seminus, apenas com uma camisa ou calça de tecido grosseiro (que logo viravam trapos).
Os escravos das incipientes cidades gozavam de relativa liberdade para seus negócios. Muitos deles eram "de ganho" ou aluguel, já que realizavam serviços em troca de pagamento. [...]
A prostituição foi uma das alternativas de ganho para as mulheres cativas e libertas. Com isso, não fica difícil deduzir que muitas escravas podiam adquirir mercadorias, como roupas e jóias. Os escravos alforriados representaram um papel importante na sociedade da época, principalmente com a descoberta do ouro e dos diamantes nas Minas Gerais do século XVIII. As mulatas forras, como a famosa Chica da Silva, escandalizaram as elites com seu luxo e ostentação [...].
O luxo da "população de cor" incomodava os "homens bons" e os religiosos da colônia e da metrópole, sendo criadas leis para evitar que "negras, negros e mulatos" usassem tecidos finos, jóias, brocados e adereços de ouro. Tais iniciativas mostram preocupação com a quebra da hierarquia e a "promiscuidade de classes" que o costume, tão difundido, causava aos olhos dos governantes. [...]
* Mudanças e modernidades. Em 1808, com a chegada da família real e a abertura dos portos às "nações amigas", o Brasil foi inundado por produtos importados, sobretudo da Inglaterra. A moda masculina passou a ser dominada pelos comerciantes ingleses, enquanto as mulheres adotavam a moda francesa. Os brasileiros mais ricos adquiriam o hábito de fazer compras nas ruas chics do Rio de Janeiro, como a rua do Ouvidor e a Direita. Muitos escravos e forros foram trabalhar nesse comércio do luxo e aprenderam novos ofícios, abrindo posteriormente seus próprios negócios.
A corte de D. Pedro II era austera e pouco dada a grandes eventos sociais, a exemplo do próprio imperador. A elite da época, no entanto, esforçava-se em mostrar-se elegante e opulenta. As mulheres caprichavam nos vestidos de tecidos nobres, jóias, luvas e chapéus; os homens circulavam trajando calças e casacas escuras, cartolas, lenços, luvas, relógios e bengalas.
Com a proclamação da República em 1889 e as mudanças do século XX, os brasileiros passaram a adotar roupas mais leves e práticas. O chapéu-panamá virou moda entre os homens modernos [...]. As mulheres começaram a ter certa liberdade e a trabalhar fora, não apenas nos serviços domésticos como era costume entre as mais pobres. As roupas refletiram tais novidades: saias mais curtas e sem armações, decotes e botinhas até os tornozelos. Chapéus e luvas eram obrigatórios para todas as classes sociais, assim como os terríveis espartilhos. [...]
Márcia Pinna Raspanti. Dize-me o que vestes e te direi quem és. In: Revista História Viva. Ano IX, n. 99. p. 68-73.
[...] A exibição de uma árvore genealógica sem mácula (mesmo que falsa), ter amizades influentes, praticar o ócio, exibir títulos (muitos de procedência duvidosa) eram as formas preferidas de demonstrar distinção social. Para ser reconhecido como fidalgo e ter os privilégios que isso proporcionava, não era suficiente possuir terras e grande número de escravos. Era necessário deixar bem visíveis os sinais que exteriorizavam essa condição. O ser e o parecer se confundiam nesta sociedade.
Os tecidos eram artigos muito valorizados no período colonial, já que eram todos importados via Portugal e comercializados a preços altíssimos pelos mercadores, que os traziam de navio ao Brasil. [...]
* Sociedade de contrastes. Na colônia, os hábitos ligados ao vestuário eram caracterizados por alguns paradoxos. Um dos mais interessantes é o contraste entre as roupas de sair às ruas e as adotadas dentro de casa. Até o século XIX, as mulheres fidalgas que viviam no Brasil pouco podiam sair, a não ser para ir às igrejas, em comemorações de datas religiosas, procissões, ou nas festas do Estado. Quando o faziam, sempre acompanhadas de parentes do sexo masculino (pais, irmãos ou maridos) e de suas mucamas, as damas costumavam vestir uma capa ou mantilha (de renda, sarja ou mesmo lã) que lhes cobria todo o corpo e deixava apenas os olhos de fora. Por baixo de tanto recato, vestiam-se à moda francesa, com tecidos de boa qualidade e muitas jóias [...].
Já para ficar em casa e até receber as visitas, as mulheres adotavam um traje bem simples e bem mais liberal: um tipo de camisolão ou camisa de mangas curtas, de tecido leve e transparente, decotado. [...] Algumas vestiam uma saia leve sobre essa camisola. As finas senhoras quase não usavam meias ou sapatos, apenas chinelas, ou permaneciam mesmo descalças. Nada de espartilhos ou corpetes. O peito ficava descoberto, sem pudores; os cabelos, soltos. Os homens também se tornavam desleixados na intimidade: dispensavam as meias ou as usavam caídas, a camisa branca ficava fora dos calções, sem coletes, casacas ou capas. No máximo, uma jaqueta fina ou gibão (casaco curto). Os mais despojados vestiam apenas ceroulas e camisa. Sapatos eram substituídos por chinelos.
No caso dos escravos, a responsabilidade de mantê-los decentemente vestidos era dos senhores. Em geral, estes não se preocupavam em oferecer trajes adequados para os servos. Apenas os escravos "de dentro" ganhavam roupas mais luxuosas, principalmente quando saíam à rua, pois era sinal de prestígio exibir escravos bem vestidos acompanhando seus senhores e senhoras em passeios pela cidade. Os outros costumavam andar seminus, apenas com uma camisa ou calça de tecido grosseiro (que logo viravam trapos).
Os escravos das incipientes cidades gozavam de relativa liberdade para seus negócios. Muitos deles eram "de ganho" ou aluguel, já que realizavam serviços em troca de pagamento. [...]
A prostituição foi uma das alternativas de ganho para as mulheres cativas e libertas. Com isso, não fica difícil deduzir que muitas escravas podiam adquirir mercadorias, como roupas e jóias. Os escravos alforriados representaram um papel importante na sociedade da época, principalmente com a descoberta do ouro e dos diamantes nas Minas Gerais do século XVIII. As mulatas forras, como a famosa Chica da Silva, escandalizaram as elites com seu luxo e ostentação [...].
O luxo da "população de cor" incomodava os "homens bons" e os religiosos da colônia e da metrópole, sendo criadas leis para evitar que "negras, negros e mulatos" usassem tecidos finos, jóias, brocados e adereços de ouro. Tais iniciativas mostram preocupação com a quebra da hierarquia e a "promiscuidade de classes" que o costume, tão difundido, causava aos olhos dos governantes. [...]
* Mudanças e modernidades. Em 1808, com a chegada da família real e a abertura dos portos às "nações amigas", o Brasil foi inundado por produtos importados, sobretudo da Inglaterra. A moda masculina passou a ser dominada pelos comerciantes ingleses, enquanto as mulheres adotavam a moda francesa. Os brasileiros mais ricos adquiriam o hábito de fazer compras nas ruas chics do Rio de Janeiro, como a rua do Ouvidor e a Direita. Muitos escravos e forros foram trabalhar nesse comércio do luxo e aprenderam novos ofícios, abrindo posteriormente seus próprios negócios.
A corte de D. Pedro II era austera e pouco dada a grandes eventos sociais, a exemplo do próprio imperador. A elite da época, no entanto, esforçava-se em mostrar-se elegante e opulenta. As mulheres caprichavam nos vestidos de tecidos nobres, jóias, luvas e chapéus; os homens circulavam trajando calças e casacas escuras, cartolas, lenços, luvas, relógios e bengalas.
Com a proclamação da República em 1889 e as mudanças do século XX, os brasileiros passaram a adotar roupas mais leves e práticas. O chapéu-panamá virou moda entre os homens modernos [...]. As mulheres começaram a ter certa liberdade e a trabalhar fora, não apenas nos serviços domésticos como era costume entre as mais pobres. As roupas refletiram tais novidades: saias mais curtas e sem armações, decotes e botinhas até os tornozelos. Chapéus e luvas eram obrigatórios para todas as classes sociais, assim como os terríveis espartilhos. [...]
Márcia Pinna Raspanti. Dize-me o que vestes e te direi quem és. In: Revista História Viva. Ano IX, n. 99. p. 68-73.
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