Não entenderíamos o significado da cultura popular na sociedade medieval, se pensássemos nela como sendo uma cultura completamente separada da dos grupos dominantes, de condescendência ou de revolta. Estava, ao contrário, profundamente unida a esta, exercendo a crítica da ordem estabelecida de tal forma que ajudava a lembrar, às classes dominantes, a necessidade de respeitar as regras do jogo, contribuindo, assim, para aliviar tensões.
A tolerância das manifestações da cultura popular era a primeira condição desta convivência. A Igreja, que desconfiava profundamente do humor e que chegava a duvidar de que, a um cristão fosse lícito rir, aceitava que os templos e os mosteiros mostrassem abundantes representações esculpidas de caráter satírico, grosseiras e, inclusive, obscenas. Igualmente, aceitava uma série de paródias dos ritos religiosos como uma espécie de moderação temporal da severidade usual: a literatura dos estudantes medievais e dos carmina burana (escrita em latim macarrônico, como burla da linguagem artificial eclesiástica superior), liturgias burlescas como a dos bebedores ou a dos jogadores etc. Havia, também, por outro lado, uma literatura paródica da cavalaria que ridicularizava todos os tópicos da cultura cavalheiresca cortesã.
O elemento mais importante deste complexo era a festa, uma manifestação coletiva que unia, em uma atuação conjunta, os de "baixo" (com a tolerância e inclusive o patrocínio dos de cima), permitindo-lhes expressar seus sentimentos em momentos de triunfo da loucura, frequentemente também da violência, em que se invertiam os valores e os papéis sociais e tudo era consentido. Momentos que serviam normalmente para liberar as tensões, ainda que em algumas ocasiões conduzissem à revolta.
Muitas destas festas estavam relacionadas com a Igreja: a festa do burro, em que que vestia o animal com paramentos eclesiásticos, realizava-se todo tipo de cerimônias e recitavam-se cantos burlescos, as festas de loucos etc. A mais importante era o carnaval, que deu lugar à criação de confrarias e sociedades que organizavam a participação na festa que, ainda que tivesse um pretexto religioso (o combate entre o carnaval e a quaresma), acabaria sendo inteiramente laica (máscaras, bailes, representações). A direção da festa era um instrumento muito importante do controle social (os Médici davam apoio a grupos populares que organizavam as festas de Florença) porque esta tinha uma função essencial na manutenção da ordem: era a própria vida em um momento de liberação, a abolição provisória das relações hierárquicas e das formas de dominação que assegurava a sua continuidade ao acabar os parênteses.
Carnaval medieval: a festa funcionava como válvula de escape para os servos oprimidos pelos senhores feudais (nobreza e clero). Detalhe da obra O combate entre o carnaval e a quaresma, de Pieter Brueghel.
Um dos recursos mais importantes desta cultura cômica popular era o uso do realismo grotesco, em que o princípio material e corporal aparecia como universal, como positivo, opondo-se à separação entre os elementos materiais e os espirituais, encontrados geralmente na cultura da corte e da Igreja. Praticava, assim, a "degradação", que não significava uma sátira ou um ataque, mas a transferência ao plano corporal daquilo que outros expressavam como elevado, espiritual, abstrato. A uma proposta cortesã e eclesiástica que só falava da mente e do espírito do homem, a degradação opunha-lhe o papel do ventre e dos genitais; em um mundo de suspiros e sorrisos, a degradação destacava o peido e a evacuação. Não era a negação deste outro mundo, que aceitava, mas o ato de lembrar-lhe o reverso da moeda. O grotesco não desmerece como a sátira; mas unifica, sendo, por isso mesmo, profundamente subversivo, pois, ao mostrar que o cavalheiro também come e defeca, nega que os homens sejam diferentes por natureza, reduzindo sua situação social a um papel.
FONTANA, Josep. Introdução ao estudo da história geral. Bauru: EDUSC, 2000. p. 350-351.
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