"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos
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sábado, 29 de março de 2014

No, as origens do teatro japonês 能


O movimento artístico que se desenvolveu durante o predomínio dos Ashikaga foi fruto, sobretudo, do mecenato dos xoguns e da forte influência exercida pelos mosteiros zen na cultura japonesa da época. Além da pintura à maneira dos grandes paisagistas Song, da arte da jardinagem, dos arranjos florais e do ritual da cerimônia do chá – todos elementos fundamentais da cultura clássica japonesa – esse período destacou-se, no século XII, pelo surgimento do No, uma forma de drama lírico bastante apreciado pela aristocracia e que serviria de modelo ao teatro nacional japonês.


Nogaku zue, Kōgyo Tsukioka

Denominado drama musical, drama poético ou drama dançado, o No constituiria uma das mais importantes contribuições do Japão à arte mundial. Bastante estilizadas, suas peças possuem uma alta qualidade literária, muito superior à do Kabuki, teatro popular que seria desenvolvido mais tarde, a partir do século XVII.

Atribui-se a origem do No a primitivas formas de espetáculo, relacionadas às danças e pantomimas que faziam parte dos ritos celebrados para se obter boas colheitas e, também, ao repertório de fantasias inspiradas no xintoísmo. Antes de se converter no passatempo preferido da nobreza, o No era encenado nos templos budistas, cujos monges costumavam convidar grupos de artistas ambulantes para apresentar espetáculos de danças e canções e, assim, atrair o público por ocasião das grandes festas religiosas. Com o tempo, esses comediantes passaram a adaptar seus repertórios ao gosto dos poderosos senhores que os contratavam, encenando farsas e intrigas que, pelo ritmo, tom e intenções, assemelhavam aos autos encenados diante das catedrais ocidentais durante a Idade Média.


Nogaku zue, Kōgyo Tsukioka

No século XIV, Kanami Kujotsugu (1332-1384), ator e autor que chefiava um desses grupos ambulantes, deu novas características aos espetáculos tradicionais do No. Isolando o elemento cômico do dramático, escreveu uma série de peças curtas, dotando-as de grande força poética. Seu filho, Zeami Motokujo (1363-1443), continuou essa reforma, codificando as regras cênicas que caracterizaram o No. Em seu manual Tradição Secreta do No (descoberto somente em 1906), Zeami transmitia confidencialmente a seus sucessores uma “estética teatral” repleta de reflexões muito originais sobre as relações entre o ator e o público.

Embora o cenário utilizado nos espetáculos do No fosse de uma rigorosa simplicidade, os trajes dos atores possuíam riqueza e colorido excepcionais, com máscaras que podem ser consideradas verdadeiras obras de arte. Os atores, todos homens, eram treinados desde a infância, quando já aprendiam que até o mínimo gesto deveria estar carregado de significação.

Patrocinado pelos xoguns, o No passou a ter como temática, por muito tempo, as virtudes dos cavaleiros, recebendo proteção oficial sobretudo nas escolas de Kanze, Komparu, Hosho, Kongo e Kita, criadas para a sua preservação.


HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 124 e 129. Vol. II.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

O universo mental e a cultura popular na Idade Média

A Igreja medieval tentou tornar o mundo o mais simbólico possível, somente decifrável pelos homens de fé. Somente os clérigos sabiam interpretar o mundo dos homens porque ele, segundo a pregação religiosa, havia sido criado como reflexo do mundo celestial. Uma vez que nosso mundo foi criado à semelhança da Cidade de Deus, somente aqueles que conheciam o mundo celestial podiam entender este em que vivemos. Dessa forma os clérigos definiam como deveria ser o comportamento humano, criavam regras de comportamento moral e social e valores culturais.

Assolados por um Demônio sempre à espreita do erro, obrigados a viver entre as muitas tentações condenadas pela Igreja - por exemplo, não pagar suas obrigações -, os pobres não podiam partir para a vida contemplativa, voltada apenas para as orações, para se livrarem dos pecados. Também não dispunham de recursos para fazer grandes doações à Igreja e assim livrarem-se do castigo do inferno. Era um cenário de terror.

Devemos nos perguntar, porém, em que medida as pessoas realmente se envolviam nessa pregação religiosa, ou apenas toleravam essa doutrinação, uma vez que ela era feita pela classe dominante; em que medida ainda preservavam suas tradições pagãs ou passaram de fato a acreditar somente nos valores católicos. Alguns aspectos da cultura popular nos indicam que havia reação a essa imposição cultural.

Uma das características da cultura oficial era o seu tom de seriedade. A crença numa providência divina sinistra; o papel dominante ocupado pela ideia de pecado; a necessidade do sofrimento para a redenção humana eram fatores que criavam um ambiente de preocupação constante. A opressão e a intimidação sofridas pelos pobres consagravam a seriedade. O tom sério afirmou-se como a única forma de expressar a verdade e tudo o que era importante e bom.

O riso, por sua vez, acabou sendo visto como o oposto: a expressão do que era mau. O riso foi declarado como uma emanação do diabo. O cristão deveria conservar a seriedade sempre, para demonstrar seu arrependimento e a dor que sentia na expiação dos seus pecados. É interessante notar que nas histórias infantis medievais essa articulação entre bem e seriedade, mal e riso é fortemente representada. A mocinha que é boa sofre sempre e é tristonha; a bruxa ou feiticeira que é má está sempre dando gargalhadas. Certamente que, seguindo o raciocínio moral da Idade Média, no final da história o sofrimento será recompensado e o riso castigado.

Por ter sido proibido, condenado como um pecado, o riso tornou-se uma forma de reação contra a opressão. Fora da ideologia oficial, o culto ao riso, à alegria, aos prazeres acontecia em, pelo menos, duas festas populares: a festa dos loucos e a festa do asno. Eram festividades realizadas nas ruas nas quais as pessoas se permitiam todas as transgressões possíveis: excessos na comida, embriaguez, gestos obscenos, nudez e, logicamente, muito riso.


A luta entre o carnaval e a quaresma (detalhe), Pieter Bruegel

A Igreja tentava combater esses rituais fazendo coincidir as festas religiosas com as festas pagãs, com o objetivo de cristianizar os cultos cômicos. A princípio a festa dos loucos era realizada dentro das igrejas. Quando foi proibida, passou a se realizar nas tavernas e nas ruas.

A tradição mais antiga permitia o riso e as brincadeiras no interior das igrejas durante a celebração da Páscoa. O padre, do púlpito, fazia brincadeiras e contava histórias divertidas para provocar o riso nos fiéis, depois do período de abstinência que precedia a Páscoa. Esse riso era entendido como uma forma de renascimento feliz após o longo tempo de jejum. As brincadeiras e as histórias usadas pelo padre para fazer os paroquianos rir fazem referência essencialmente à vida material e corporal. Assim como o riso, estavam autorizadas a ingestão de carne e a vida sexual, também proibidas durante o jejum.

Ao que parece, facções do clero organizavam festas exclusivas, sem a participação de leigos, onde os excessos de alimentos e de bebidas não eram condenados. Realizavam-se festas por ocasião da consagração de uma igreja, quando era rezada a primeira missa. Organizavam-se banquetes em honra dos protetores ou doadores enterrados na igreja, quando se bebia à saúde do morto. "Os dominicanos espanhóis bebiam à saúde de seus santos protetores sepultados nas igrejas, pronunciando o voto ambivalente típico: viva el muerto." (BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento.São Paulo: Hucitec/EUB, 1987. p. 69.)

Muitas festas católicas acabaram ganhando feições pagãs. Por exemplo, São Martim e São Miguel eram vestidos com roupas inspiradas no deus grego Baco, pois eram considerados protetores dos produtores de vinho. Na festa de São Lázaro vários costumes pagãos eram retomados: procissão de animais, o uso de fantasias, danças em praça pública. Todos esses são exemplos que comprovam que a cultura católica não sufocou traços de outras culturas, tendo havido contaminação da cultura pagã até mesmo nas festividades da própria Igreja.

Durante a festa dos loucos vigorava uma inversão social. As pessoas invertiam seus hábitos comuns: abusavam da bebida e da comida, perdiam o pudor, travestiam-se, riam abandonando a atitude geralmente série. Usavam as roupas do avesso e colocavam as calças na cabeça.


Dois tolos do carnaval, Pieter Bruegel

Mas, o que é mais sério, havia uma inversão do papel que os estamentos sociais representavam. Era feita a eleição de um abade, de um bispo, de um arcebispo e de um papa para provocar o riso nas pessoas. Esses clérigos cômicos realizavam missas solenes. Escolhiam-se reis e rainhas, que também deveriam rir. A ordem social, defendida como natural pelos poderosos, era subvertida nos dias de festa. Se na maior parte do ano os camponeses aceitavam com submissão o reinado de terror imposto pelos senhores, durante as festas eles revelavam seu descontentamento, sua indignação com a exploração a que eram submetidos. É como se, durante esses pandemônios públicos, os servos revelassem a consciência que tinham da injustiça social em que viviam.

As festas populares se opunham ao imobilismo social que definia o lugar de cada um na sociedade de acordo com o seu nascimento, sem oferecer a possibilidade de mudança. Também se opunham à rígidez conservadora do regime e das concepções estabelecidas, que não podiam ser contestadas.


A literatura oficial era sacra, de louvor a Deus. Contava a vida dos santos, escrevia e reescrevia os textos bíblicos, traduzia as regras de comportamento a ser seguidas pelos católicos. Os textos filosóficos tentavam entender e explicar os mistérios divinos. A literatura greco-romana ficava devidamente enclausurada nos mosteiros, acessível a membros do alto clero.

Bem diferente era a literatura difundida entre os populares. Acompanhando o sentido das festas populares, a literatura paródica subvertia o caráter dos textos sagrados, criava paródias para serem usadas na festa dos loucos, ou simplesmente para criar oportunidades de riso. [...]

A literatura paródica tinha um objetivo de recreação, era para ser lida em momentos de festa, nos quais predominava um clima de liberdade e de possibilidade de mudança da ordem estabelecida. Para os parodistas, em tudo havia comédia: na religião, na sociedade, no universo, na história. A exaltação do lado cômico funcionava, mais uma vez, como a negação e a repulsa à seriedade imposta pela cultura oficial. Nada mais lógico do que o fato de que a grande maioria das paródias se fazia sobre textos sagrados.

[...]

As versões cômicas das orações católicas mais conhecidas, como o Pai-Nosso, a Ave-Maria e o Credo, são numerosas. A partir do século XI todas as características da doutrina e dos cultos oficiais são parodiados. São conhecidas a Liturgia dos bêbados, a Liturgia dos jogadores, a Liturgia do dinheiro, o Evangelho do marco de prata, o Evangelho dos beberrões. Enfim, nada escapava dos parodistas.

[...]

Como reagia o poder diante de tanta irreverência? Ao que parece havia a necessidade de fazer concessões a esses deboches. Permitir essas transgressões periódicas, devidamente circunscritas nos dias de festa, era um pequeno preço a ser pago pelos longos dias da maior parte do ano, em que os populares se submetiam ao controle e, o mais importante, aos interesses da classe dominante.

No final do Império Romano o clero católico havia condenado as apresentações teatrais por considerá-las imorais e violentas. Dessa forma o teatro romano deixou de ser encenado. Todavia, foram os próprios clérigos que trouxeram o teatro de volta, aproveitando-se das festas religiosas para encenar peças que retratavam cenas bíblicas.

Na Alta Idade Média as encenações eram feitas dentro das igrejas. O aumento de público levou as apresentações para a praça pública [...]. De um lado do palco ficava o Paraíso e do outro a boca de um dragão representava o Inferno. Reproduzia-se, assim, o destino do ser humano segundo a visão cristã [...].

As encenações em praça pública eram feitas nos dias de festa, sobretudo no Natal e na Páscoa, e a mesma história era repetida várias vezes. Eram apresentadas cenas bíblicas misturadas a referências da vida cotidiana, para que os espectadores pudessem entender o simbolismo das ideias religiosas.

Mas, ao ser levado para as ruas, o teatro sofreu mudanças. Na praça, ao ar livre, foram aparecendo outros temas, além dos religiosos. Na Baixa Idade Média, representações que falavam do cotidiano, que faziam críticas às autoridades, que satirizavam os valores sociais foram se tornando cada vez mais populares, enquanto o clero perdia o controle sob a produção teatral. Os padres afastaram-se e as apresentações teatrais acabaram proibidas novamente.

PETTA, Nicolina Luiza de; OJEDA, Eduardo Aparício Baez. História: uma abordagem integrada. São Paulo: Moderna, 2001. p. 41-43.

NOTA: O texto "O universo mental e a cultura popular na Idade Média" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

domingo, 23 de junho de 2013

Ler, escrever e criar na Colônia

No mundo colonial foi graças à instalação de conventos de jesuítas, franciscanos, carmelitas e beneditinos, que brotou o primeiro embrião de vida cultural. Vieram com as ordens religiosas os primeiros livros. Livros capazes de instruir e de ensinar a rezar. Manuais de confissão, livros de novenas e orações, breviários relatando a vida dos santos e catecismos tinham por objetivo ajudar a catequese e pacificar as almas. Apesar da forte presença da literatura sacra, já quando das primeiras visitas do Santo Ofício da Inquisição às partes do Brasil, apareciam denúncias de outras leituras. De leituras proibidas. Proibidas, sim, pois Estado e Igreja sempre tomaram livros e saberes como fonte de inquietação e pecado, censurando-os e perseguindo quem os lesse. Um exemplo? Em 1591, vários moradores da Bahia foram acusados de ler o romance Diana, de Jorge Montemayor, um clássico profano do Renascimento europeu. Seu tema: um picante caso de amor. Entre seus leitores achou-se uma mulher: Dona Paula de Siqueira, que muito "folgava" com o tal livro! Certo Nuno Fernandes possuía As Metamorfoses, de Ovídio, enquanto seu conterrâneo, Bartolomeu Fragoso, para escapar ao controle da censura, preferia rasgar as páginas, depois de lidas, do seu exemplar do temido Diana. Apesar de encontrarem-se no distante sertão, em São Paulo também havia alguns leitores de obras como Os Mistérios da Paixão de Cristo, sermões e até mesmo Os Lusíadas, de Camões.

Porém, conspirava contra a presença de livros o elevado número de analfabetos - categoria da qual poderíamos incluir a quase totalidade dos escravos e escravas coloniais. Enquanto uns poucos leitores disputavam obras impressas ou cópias manuscritas dos mesmos, outros se debruçavam maravilhados sobre as aventuras narradas pelos folhetos de cordel, como a Donzela Teodora, a de Roberto, o Diabo ou a da Princesa Magalona, que ainda hoje circulam pelo Nordeste e eram então enviados nas naus que singravam o Atlântico em direção à América. Entre os que sabiam ler e escrever, também não faltou quem quisesse retratar a terra e seus moradores. Administradores e sacerdotes, magistrados e mercadores produziram relatórios, descrições ou mesmo poemas com um simples intento: descrever, dominar e tirar proveito do que os cercava. José de Anchieta foi pioneiro. Produziu um dos primeiros livros escritos entre nós [...]. Tratava-se de um poema épico sobre o governador Mem de Sá com cinematográficas descrições sobre suas crueldades em relação aos indígenas. O jesuíta escreveu, também, poesias e autos teatrais, sempre tendo em vista catequizar os infiéis [...]. Dentro da mesma linha de edificação religiosa, Simão de Vasconcellos escreveu posteriormente uma crônica sobre as atividades da Companhia de Jesus no Brasil.

Paralelamente à preocupação religiosa, os livros procuravam noticiar as riquezas da terra. A mais clara informação sobre a natureza e sobre os moradores da terra de Santa Cruz nasceu da pena de um sensível senhor de engenho baiano, Gabriel Gomes Soares de Souza. [...] Resultante de um pedido da Coroa espanhola que, então, subjugava Portugal, o livro narra com minúcias o lugar que o autor adotara (era português) e onde passara da pobreza à riqueza graças ao açúcar. Para redigir seu texto, Gabriel Soares se valeu de "muitas lembranças por escrito" que anotara ao longo dos 17 anos entre nós, relatando com absoluta graça e precisão a topografia da Bahia, as plantas do Novo Mundo, a zoologia americana, a agricultura que se praticava e até as formas pelas quais nossos antepassados indígenas exerciam a medicina. Seguindo essa mesma tradição, Diálogos das grandezas do Brasil, composto por volta de 1618, é outra obra com informações sobre a terra e sua gente. Seu autor é, mais uma vez, um plantador de cana, Ambrósio Fernandes Brandão [...]. Mal passado um século de colonização, o autor já percebia a indiferença dos funcionários metropolitanos frente às realidades coloniais, assim como a indolência dos emigrados que se negavam a trabalhar, tudo empurrando aos escravos. [...]

Pouco a pouco essas descrições da terra brasileira vão dando lugar a relatos históricos. O primeiro brasileiro a escrever tal prosa foi Vicente Rodrigues Palha, na verdade, frei Vicente do Salvador [...]. Concluiu sua História do Brasil em dezembro de 1627 [...]. Seu texto é revolucionário na medida em que introduz os verdadeiros personagens de nossa história: índios, negros, mulatos e brancos, cujas histórias são contadas em tom popular. Nele, anedotas e fatos folclóricos misturam-se a ditos do rei do Congo, às peripécias de seu escravo Bastião quando da invasão holandesa à Bahia e a explicações sobre a construção dos engenhos ou sobre a pesca da baleia. Frei Vicente foi o primeiro a criticar a posição dos portugueses, alheios, então, à conquista do oeste, deixado aos bandeirantes. Critica também os monarcas portugueses que pouco caso fizeram do Brasil [...]. Os comerciantes portugueses, por sua vez, eram acusados de só virem "destruir a terra, levando dela em três ou quatro anos que cá estavam quanto podiam". [...]

O século XVII trouxe outras novidades. A luta contra franceses e holandeses suscitou novos textos históricos. Valoroso Lucideno (1648), de frei Manuel Calado; Nova Lusitânia (1675), de Francisco de Brito Freire; e Castrioto Lusitano, de frei Rafael de Jesus (1679), entre outros tantos e menores, representam, de certa forma, o sentimento localista entre os colonos, sentimento este inspirado nas tensões militares contra o estrangeiro. Contudo [...] os holandeses contribuíram para recuperar a tradição lusitana seiscentista de descrições da natureza. Isso foi possível graças a Maurício de Nassau, que trouxera consigo uma pequena corte de cientistas, como o cosmógrafo Michiel de Ruyter, os médicos e naturalistas Wilhem Piso e Georg Marcgrav, assim como artistas do porte de Frans Post, Albert Eckhout, Zacharias Wegener e Pieter Post - arquiteto do plano geral do Recife. A profusão, o colorido e as dimensões de seres absolutamente novos não cessarão a despertar a curiosidade desses intelectuais, e seus textos vão-se cobrindo de sentimento entre o espanto maravilhado e o utilitarismo.

Apesar de alguns comentários de Anchieta, coube a Piso e Marcgrav dar início às investigações sobre as ciências naturais e físicas entre nós. Cada bicho, cada planta ou mineral era cuidadosamente descrito e acrescentado ao conjunto já conhecido pelos europeus. [...]

Além desses autores, surgiram na Bahia do século XVII dois grandes nomes: Antônio Vieira e Gregório de Matos Guerra. Não eram homens isolados, pois, na mesma época, outros poetas compunham o "grupo baiano". Entre eles, Bernardo Vieira Ravasco e Manoel Botelho de Oliveira. [...]

Enquanto alguns esculpiam as coisas da terra com palavras, outros o faziam na madeira e no barro. Dos mesmos conventos que abrigaram nossas primeiras bibliotecas, saíram nossos primeiros artistas. Tal como ocorria com a literatura, majoritariamente sacra,  nossos entalhadores, escultores e pintores se dedicaram, no século XVII, a pintar temas celestiais. [...]


A crucificação de Cristo, Manuel da Costa Ataíde

A vida cultural que vai timidamente se desenvolvendo também trouxe vitalidade à arquitetura em diversas regiões do Brasil. O "barroco mineiro" alternou fachadas sóbrias com interiores altamente trabalhados. A concorrência entre confrarias e irmandades religiosas pela decoração de suas igrejas traduziu-se em resultados suntuosos. [...] Na falta de azulejos ou outros materiais de luxo, artesãos brancos, negros e mulatos alforriados respondiam com inovações. O uso da pedra-sabão - que teve em Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, seu mais genial partidário - é um exemplo disso.

A pintura, por sua vez, deveria respeitar um adecedário do emprego das cores, fixada pela Igreja: branco e preto significavam severidade; pardo e cinza, desprezo e abjeção; azul e branco, pureza e castidade; vermelho, amor e caridade; verde, penitência e esperança; e roxo, luto. [...]

[...] A nova riqueza alimentada pelo ouro e pelos diamantes empurrou para o Sudeste boa parte da incipiente vida literária. O Rio de Janeiro, escoadouro das riquezas mineiras e capital colonial a partir de 1763, assim como as cidades mineradoras, passou a sediar novas expressões estéticas. Mariana, sede do bispado de Minas, tornara-se foco de instrução graças ao seminário aí instalado, por obra de ricos proprietários interessados em garantir estudo aos seus filhos antes de enviá-los a Coimbra. Fruto desse interesse por livros e por escrever, as academias literárias começavam a se organizar. [...]

[...]

A "escola mineira" produziu intelectuais bem mais expressivos, como Cláudio Manuel da Costa [...], Basílio da Gama [...], Tomás Antônio Gonzaga [...] e José de Santa Rita Durão [...]. Quando começaram a poetar, vicejava em Portugal um estilo, o arcadismo, cujos cânones recomendavam que, tal como ocorrera com os clássicos, a arte deveria imitar a natureza, identificando-se com a vida bucólica do campo; a obra de arte tinha também que possuir fim moral e edificante. Nossos líricos somaram a tais características um "nativismo comovido" [...]. A gente e a natureza americana seguiam sendo assunto, embora com sabor distinto. [...]

[...]

Outro aspecto da cultura que se desenvolveu, durante o setecentos, foi o teatro, na forma da diversão mais popular. Atores ambulantes percorriam cidades encenando, nas praças e nos mercados, autos como Inês de Castro, a Princesa Magalona e o gilvicentino Auto da Lusitânia, e reunindo entusiasmados espectadores. Atuava-se sobre tablados armados, aos domingos, dia em que as pessoas da roça acudiam aos centros comerciais e urbanos. Fantoches, circos de cavalinhos e mamulengos, com seus palhaços e dramatizações rudimentares, faziam parte do espetáculo. [...] 

PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 117-132.