"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 30 de abril de 2016

Os cangaceiros

Cangaceiros, Portinari

1938

Sertão do Nordeste brasileiro

Os cangaceiros atuam sempre modestamente e nunca sem motivo: não roubam aldeias de mais de duas igrejas e matam somente por encomenda ou por vingança jurada frente a punhal beijado. Atuam nas terras queimadas do deserto, longe do mar e do hálito salgado de seus dragões. A torto e a direito, atravessam as solidões do nordeste do Brasil, a cavalo e a pé, com seus chapéus de meia-lua jorrando enfeites. Raras vezes param. Não criam seus filhos nem enterram seus pais. Pactuando, com o céu e com o inferno, fecharam seus corpos aos tiros e às punhaladas, para morrer de morte morrida e não de morte matada, mas cedo ou tarde acabam mal suas vidas que já não valem nada, mil vezes cantadas nas cantigas de cordel dos cantadores cegos: Deus dirá, Deus dará, légua vem, légua vai, epopeia dos bandidos errantes que de briga em briga andam sem dar tempo para que o suor seque.

GALEANO, Eduardo. Memória do fogo: O século do vento. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 662.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

A herança negada

No Alhambra, Rudolf Ernst


Uma noite, em Madri, perguntei ao taxista:

- O que os mouros trouxeram para a Espanha?

- Problemas - respondeu ele, sem um instante de dúvida ou de vacilação.

Os chamados mouros eram espanhóis de cultura islâmica, que na Espanha tinham vivido durante oito séculos, trinta e duas gerações, e ali haviam brilhado como em nenhum outro lugar.

Muitos espanhóis ignoram, até hoje, os resplendores que aquelas luzes deixaram. A herança muçulmana inclui, entre outras coisas:

* a tolerância religiosa, que sucumbiu nas mãos dos reis católicos;
* os moinhos de vento, os jardins e os canais que até hoje dão de beber a várias cidades e irrigam seus campos;
* o serviço público de correios;
* o vinagre, a mostarda, o açafrão, a canela, o cominho, o açúcar de cana, os churros, as almôndegas, as frutas secas;
* o jogo de xadrez;
* a cifra zero e os números que usamos;
* a álgebra e a trigonometria;
* as obras clássicas de Anaxágoras, Ptolomeu, Platão, Aristóteles, Euclides, Arquimedes, Hipócrates, Galeno e outros autores, que graças às suas versões árabes foram difundidas na Espanha e na Europa;
* as quatro mil palavras árabes que integram a língua castelhana;
* e várias cidades de prodigiosa beleza, como Granada, que uma quadrinha anônima cantou assim:

Dá-lhe esmola, mulher,
que na vida não há nada
como a dor de ser
cego em Granada.

GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 110.

terça-feira, 26 de abril de 2016

Monumento às Bandeiras

Monumento às Bandeiras, Víctor Brecheret

O Monumento às Bandeiras, localizado ao lado do Parque do Ibirapuera, na cidade de São Paulo, é uma obra de Victor Brecheret (1894-1955). Foi inaugurada em 25 de janeiro de 1953 para comemorar o aniversário da fundação da cidade, embora tenha sido planejada trinta anos antes. Com 12 metros de altura, 50 de extensão e 15 de largura, representa uma expedição bandeirante subindo um plano, com dois homens a cavalo.

Podemos entender o sentido primordial do monumento observando os elementos que o constituem. Dois homens montam cavalos. Uma das imagens representa o chefe português, e a outra, o guia índio. Atrás deles, há um grupo formado por índios, negros, portugueses e mamelucos, que empurram um grande barco, usado pelos bandeirantes nas expedições pelos rios.

As raças podem ser identificadas por detalhes nas estátuas: os portugueses apresentam barba; as figuras nuas, com uma cruz ao pescoço, são os índios catequizados. Orientada em direção ao sertão, a grande escultura representa movimento desbravador: a saga dos bandeirantes. Assim, por associação, esse grupo, constituído por desbravadores portugueses, índios e escravos, é fundador da ordem que deu origem à cidade.

Esse elogio foi esculpido por um modernista, ou seja, um artista engajado no Movimento de Arte Moderna, que em 1922 projetou São Paulo no cenário artístico e cultural brasileiro. A Semana propunha uma arte que não fosse mera reprodução da natureza, como a que buscava o neoclassicismo, mas que resultasse de uma liberdade de pesquisa estética, deixando entrever uma tomada de consciência da realidade nacional.

Hoje podemos questionar a visão sobre a fundação da cidade evocada pelo monumento. O artista valorizou positivamente a atuação dos bandeirantes e não considerou o fato de ela ter significado a exploração e a submissão de índios e negros. O monumento elogiou a valentia, a coragem e o heroísmo, mas pode guardar também a memória de seus opostos: a ordem da cidade fundou-se na violência, na injustiça e na exploração.

PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza; CARVALHO, Yone de. História do mundo ocidental. São Paulo: FTD, 2005. p. 452.

sábado, 23 de abril de 2016

Os apartamentos e a massificação da moradia em São Paulo na década de 1930

São Paulo (Gazo), 1924, Tarsila do Amaral

A resistência à moradia coletiva, discriminada pelos discursos oficiais como sinônimo de todas as desgraças sanitárias presentes nas capitais brasileiras desde o Império, foi aos poucos arrefecendo diante da novidade constituída pelos apartamentos, inicialmente dirigidos aos segmentos mais abastados das grandes cidades. O receio de decair socialmente, advindo do desprezo para com as coabitações, foi vencido com a adoção de acabamentos custosos utilizados nos revestimentos externos e nas áreas internas de circulação dos edifícios. Justificava-se, assim, o apelo da denominação dos primeiros edifícios "palacetes", palavra consagrada, capaz de atenuar hesitações ou preconceitos.

Em São Paulo, os edifícios de apartamentos foram ocupando muitos dos bairros que eram abandonados pelas elites, aproveitando os grandes lotes, a arborização das ruas ou o prestígio, empanado, dos antigos bairros elegantes. Os "palacetes" foram erguidos diretamente nas calçadas, como nas capitais europeias oitocentistas, padrão que entraria pela década de 30. Os bairros de Santa Ifigênia, mas sobretudo Vila Buarque e Santa Cecília, são regiões que testemunham o primeiro modelo de verticalização, o qual guarda na ausência de recuos, nas portarias com acabamentos luxuosos e no próprio gabarito de sete ou oito andares a referência direta às experiências de edificação das cidades europeias.

Mas as características de privacidade e isolamento experimentadas nos bairros de palacetes e nos "jardins" acabariam se repetindo na verticalização da moradia. Dispositivos da legislação paulistana exigiram, já em 1937, que os edifícios erguidos nos bairros residenciais privilegiados guardassem recuos laterais e frontais. Isso assegurou a insolação e ventilação aos apartamentos e ao interior dos quarteirões, ao mesmo tempo que se repetia o afastamento entre os espaços público e privado, inseridos naqueles bairros quando abrigavam os palacetes. Higienópolis é o exemplo mais consistente de substituição das casas por edifícios de apartamentos dentro das exigências de 1937, num paradigma do modelo que se reproduziria em quase todos os bairros que não encontravam limites ao adensamento, como aqueles da Companhia City. As pressões por moradia, que permaneciam nas bordas da mancha dos bairros de elite, deveriam se afastadas o quanto possível das áreas centrais, a fim de evitar o encortiçamento dos antigos sobrados e palacetes - e a desvalorização definitiva dos bairros já "decadentes". O Plano de Avenidas, sugerido para São Paulo pelo engenheiro e depois prefeito Prestes Maia, e que foi implementado ao longo das décadas seguintes, coincidiu com a necessidade de preservar as vizinhanças dos bairros privilegiados, mediante o redirecionamento do crescimento daqueles populares.

Prestes Maia preconizou a abertura de grandes artérias radiais que partiam para os bairros, enfeixadas em torno de uma avenida perimetral à área central. A execução de seu projeto, iniciada a partir de 1938, quando ele já era prefeito de São Paulo. garantiu acesso rápido aos arrabaldes, viabilizando o crescimento atabalhoado e especulativo gerado pela venda de lotes populares, destinados a aluguel ou autoconstrução. A verticalização foi também facilitada, seja por meio da ampliação da altura total dos edifícios, seja por meio de novas vias públicas implantadas pelo projeto de Prestes Maia, que deveriam receber o incremento do fluxo gerado nos bairros adensados horizontal ou verticalmente.

MARINS, Paulo César Garcez. "Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das grandes metrópoles brasileiras." In: SEVCENKO, Nicolau (org.) História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 3.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Mudanças na paisagem urbana e no cotidiano de São Paulo na década de 1920

São Paulo, 1924, Tarsila do Amaral

São Paulo dos primeiros anos da década de 1920 guardava inúmeras manifestações características de uma cidade onde os homens ainda podiam reconhecer-se, isto é, a metropolização que carrega a ideia de um espaço quantitativo e diluidor do indivíduo não havia se imposto totalmente. Um bairro, por exemplo, era sentido como um microlugar de uma cidade com história relativamente descentralizada, onde o tempo era marcado pelos ritos, pelos desfiles de uma banda como a de "Ettore Fieramosca (que) dá uma volta triunfal pelo Bom Retiro com a gurizada atrás". Uma cidade que permitia a existência de espaços para a prática do footing...

[...]

A Ponte Grande [...] estava situada sobre o rio Tietê, na região do próprio bairro do Bom Retiro, próximo ao local onde hoje está localizada a Ponte das Bandeiras. Quase embaixo da velha Ponte Grande existia um porto onde barcos vindos de Mogi das Cruzes ancoravam para descarregar telhas e tijolos.

Os barqueiros descarregavam produtos que chegavam a São Paulo através de um meio de transporte relativamente lento, se for comparado com o trem, cujos trilhos corriam quase paralelamente ao rio. A navegação e os produtos (telhas e tijolos) eram resultados de uma atividade mais criadora, típica de uma cidade menor com um espaço qualitativo que sobrevivia a pressões do espaço quantitativo típico da metrópole que começava a crescer.

Os bairros possuíam restos de uma vida própria resistindo à tendência centralizadora da metrópole.

[...]

Uma profissão arcaica como a de um vendedor de tripas, atividades lúdicas como o balanço do Parque Antártica, as retretas do Jardim da Luz parecem reforçar os contornos de uma cidade descentralizada, com os bairros mantendo uma relativa vida própria. Autonomia que imprimia uma divisão entre espaço e classes sociais: se em Higienópolis podiam viver os enriquecidos de fresca data, formados de uma plutocracia imigrante que sugeria o trabalho como via de ascensão, os imigrantes pobres que exerciam profissões de tripeiro ou condutor da Light só poderiam viver no Bom Retiro [...] ou no Brás, Bixiga e Barra Funda [...]

Os espaços físicos intermediários entre os bairros pobres e o centro da cidade chegaram a ser ocupados por camadas médias ligadas ao comércio e burocracia.

O lazer de parte considerável da população paulista era desfrutar as grandes áreas da mata da Cantareira para fazer piqueniques e namorar. Ou ainda, organizar pescarias com a família e amigos na represa próxima da serra do Mar no caminho para Santos. A atividade lúdica urbana, que havia sido, até um determinado momento, bastante valorizada, sofre um processo de reversão: o espaço urbano encolhe-se diante do crescimento populacional, daí a procura do bucólico e da quietude dos arredores da cidade. [...]

[...]

Confirma-se [...] a tendência à metropolização a organização do lazer, da "felicidade" dominical e da paisagem idílica, em outras palavras, a organização do ócio aumenta na mesma medida em que a cidade perde suas características descentralizadoras e crescem as tendências centralizadoras de um espaço quantitativo. Neste momento é que se dá a liquidação das referências individuais, as mutações são bruscas e as mudanças são eternas. Este era o paradoxo de São Paulo na década de 1920.

A cidade via seu espaço se transformar para que a economia de mercado pudesse escoar seus produtos mais facilmente. O próprio rio Tietê de se falou foi, em parte, canalizado para dar lugar a ruas, por onde passavam caminhões, automóveis, bondes. Viadutos e túneis tornavam as comunicações mais fáceis, anunciando um novo tempo. Os tentáculos viários da metrópole centralizadora avançavam vorazmente sobre os bairros, retirando-lhes o que restava de vida própria.

Os anos 20 conheceram um crescimento nas exportações de café, e entre 1922 e 1923 o produto valorizou. O peso político e econômico do Estado de São Paulo era cada vez maior. Os impostos provindos das exportações produziam uma situação financeira relativamente estável. Esta estabilidade impulsionava a cidade, dinamizando-a. O aparecimento da radiodifusão era parte desde impulso modernizador.

TOTA, Antonio Pedro. A locomotiva no ar. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura/PW, 1990. p. 24-26.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

O Brasil vendido por 30 moedas



"A ditadura perfeita terá as aparências de uma democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão."
Aldous Huxley, "Admirável mundo novo"


Em nome de Deus, da família e a da propriedade. Em nome do capital. Em nome do agronegócio. Em nome da grande tela. Em nome da revista. Em nome da igreja. Em nome da burguesia. Em nome da Fiesp. Em nome da República de Curitiba. Em nome do crime organizado. Em nome dos torturadores. Em nome da p.q.p. esses carrascos.

Um Congresso presidido por um réu. Um Congresso com 150 corruptos. Um Congresso que vendeu o país por 30 moedas. Um cheiro de enxofre. Cristãos hipócritas que depois de 2000 anos continuam do lado dos ladrões. Vitória dos lacaios e vendilhões do templo.

Não há muito o que dizer - as imagens falam: as falas infundadas, os discursos fascistas, os gestos, as expressões faciais mostraram claramente a disseminação do ódio aos movimentos sociais, o machismo, o fundamentalismo religioso dos deputados-pastores, a misoginia, a homofobia. Um espetáculo horrendo o Brasil mostrou ao mundo: o fascismo doentio e maléfico.

Aos que hoje - dia 18 de abril de 2016 - soltam foguetes, brindam com champagne e comem caviar, batem palmas e dão vivas a esse Congresso espúrio e sem ética são coniventes com a corrupção, o falso moralismo e a bandidagem. Todos. Máfia. Está registrado em imagens. Clio não perdoa.

2016 by Orides van der Maurer Jr.

domingo, 17 de abril de 2016

Cortiços e epidemias na Corte Imperial

Típico cortiço no Rio de Janeiro na época imperial

As classes pobres não passaram a ser vistas como classes perigosas apenas porque poderiam oferecer problemas para a organização do trabalho e a manutenção da ordem pública. Os pobres ofereciam também perigo de contágio. Por um lado, o próprio perigo social representado pelos pobres aparecia no imaginário político brasileiro de fins do século XIX através da metáfora da doença contagiosa: as classes perigosas continuariam a se reproduzir enquanto as crianças pobres permanecessem expostas aos vícios de seus pais. Assim, na própria discussão sobre a repressão à ociosidade, que temos citado, a estratégia de combate ao problema é geralmente apresentada como consistindo em duas etapas: mais imediatamente, cabia reprimir os supostos hábitos de não-trabalho dos adultos; a mais longo prazo, era necessário cuidar da educação dos menores.

Por outro lado, os pobres passaram a representar perigo de contágio no sentido literal mesmo. Os intelectuais-médicos grassavam nessa época como miasmas na putrefação, ou como economistas em tempo de inflação: analisavam a "realidade", faziam seus diagnósticos, prescreviam a cura, e estavam sempre inabalavelmente convencidos de que só a sua receita poderia salvar o paciente. E houve então o diagnóstico de que os hábitos de moradia dos pobres eram nocivos à sociedade, e isto porque as habitações coletivas seriam focos de irradiação de epidemias, além de, naturalmente, terrenos férteis para a propagação de vícios de todos os tipos.

Ao que parece, os administradores da Corte começaram a notar a existência de cortiços na cidade nos primeiros anos da década de 1850. Uma epidemia de febre amarela, em 1850, e outra de cólera, em 1855, elevaram bastante as taxas de mortalidade e colocaram na ordem do dia a questão da salubridade pública, em geral, e das condições higiênicas das habitações coletivas, em particular. Foi criada então a Junta Central de Higiene, órgão do governo imperial encarregado de zelar pelas questões de saúde pública, e a Câmara Municipal da Corte passou a discutir medidas destinadas a regulamentar a existência das habitações coletivas.

Em setembro de 1853, a comissão de posturas da Câmara analisou um projeto de "Regulamento dos Estalajadeiros", que lhe fora encaminhado pela Secretaria de Polícia. É lógico que a preocupação das autoridades policiais era "prevenir que pessoas suspeitas achem fácil abrigo nas casas a que ele se refere, mais ainda a evitar desordens, e outros crimes que por ventura possam ser cometidos. [...]  Entre as medidas destinadas a facilitar a vigilância da polícia, havia a obrigatoriedade de o estalajadeiro possuir um livro de controle de entrada e saída de hóspedes ou moradores, e no qual estes estariam cuidadosamente identificados. Os subdelegados deveriam visitar frequentemente as habitações coletivas, certificando-se de que lá não se encontravam vadios, estrangeiros em situação irregular e pessoas "suspeitas", ou que causassem desconfianças e receios" - uma categoria tão abrangente e ambígua que era potencialmente útil contra quaisquer dos moradores de tais habitações.

[...]  


É possível discernir com clareza o eixo fundamental de toda essa primeira década de discussão sobre os cortiços: era necessário melhorar as condições higiênicas das habitações coletivas existentes. Tratava-se primordialmente de uma preocupação com a qualidade da habitação popular, de legislar no sentido de obrigar os proprietários a construir residências que zelassem minimamente pela saúde dos moradores - deveria haver coleta regular de lixo, latrinas limpas e em número suficiente, calçamento, janelas amplas etc. A maneira de encarar o problema, todavia, iria mudar radicalmente nas décadas seguintes: na formulação de Maurício de Abreu, a ênfase deixaria de ser prioritariamente a forma, as condições da moradia, e passaria a ser o espaço, o local da habitação.

[...]

O primeiro fruto da nova maneira de pensar a questão surgiu com a postura de 5 de dezembro de 1873: "Não serão mais permitidas as construções chamadas cortiços entre as praças D. Pedro II e Onze de Junho, e todo o espaço da cidade entre as ruas do Riachuelo e do Livramento". Em setembro de 1876, outra postura reforçaria a proibição, esclarecendo que a interdição à construção de 'cortiços' valia mesmo quando os proprietários insistissem em chamá-los "casinhas ou com nomes equivalentes". Estavam se engendrando os instrumentos legais para a guerra de extermínio contra os cortiços ou - o que dá quase no mesmo - para a política de expulsão das "classes pobres"/"classes perigosas" das áreas centrais da cidade.

CHALHOUB, Siddney. Cidade febril - Cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 29-30, 33-4.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

As cidades europeias na Idade Moderna

Uma cena de mercado italiano com ruínas de um templo romano, Jan van Buken

Entre o século XVI e o século XVIII, tomou forma na Europa um novo complexo de traços culturais. Tanto a forma quanto o conteúdo da vida urbana, em consequência, foram radicalmente alterados. O novo padrão de existência brotava de uma nova economia, a do capitalismo mercantilista; de uma nova estrutura política, principalmente a do despotismo ou da oligarquia centralizada, habitualmente personificada num Estado nacional; de uma nova forma ideológica, que derivava da física mecanicista, cujos postulados fundamentais haviam sido lançados muito tempo antes, no exército e no mosteiro.

[...]

A tendência fundamental dessa nova ordem só veio a se tornar inteiramente visível no século XVII: então, todos os aspectos da vida afastaram-se do pólo medieval e se reuniram sob um novo signo, o signo do príncipe. A obra de Maquiavel, O príncipe, proporciona mais que uma pista, tanto para a política quanto para o plano da nova cidade, e Descartes, vindo mais tarde, reinterpretará o mundo da ciência em termos da ordem unificada da cidade barroca. No século XVII, as instruções de precursores como Alberti foram finalmente realizadas no estilo barroco de vida, no planejamento barroco, no jardim barroco e na cidade barroca.

[...]

Os símbolos desse novo movimento são a rua reta, a ininterrupta linha horizontal de tetos, o arco redondo e a repetição de elementos uniformes, cornijas, lintéis, janelas e colunas na fachada. Alberti sugeriu que as ruas "torna-se-ão muito mais nobres se as portas forem construídas todas segundo o mesmo modelo, e as casas de cada lado ficarem em linha uniforme, não sendo qualquer delas mais alta que as outras". Essa clareza e simplicidade foram engrandecidas pela fachada bidimensional e pela abordagem frontal; mas a nova ordem, enquanto ainda vivia, jamais obedecida com qualquer coerência absoluta, como a que foi introduzida pelo século XVII, com suas rigorosas regras de composição, suas intermináveis avenidas e suas regulamentações legais uniformes. Na verdade, justamente nessa concessão, nessa fuga à arregimentação, é que os novos construtores renascentistas provam sua dívida para com a ordem medieval. A altura da nova biblioteca de Sansovino, na Piazza San Marco, não é exatamente a mesma do Palácio Ducal. Assim também a altura das edificações ao redor da Piazza Santíssima Annunziatta, em Florença, é apenas aproximadamente a mesma. Por mais rigorosa que seja a ordem da rua renascentista, não chega a ponto de ser rígida e opressiva.

MUNFORD, Lewis. A estrutura do poder barroco. In: A Cidade na história. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965. p. 445-449.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

O Estado monárquico e a cultura popular

Chegada da Família Real Portuguesa à Bahia, Portinari

A monarquia absoluta era a grande promotora de festas públicas por ocasião do aniversário do governante, de casamentos ou nascimentos na família real, de celebração de eventos políticos. Esses festejos incluíam geralmente luminárias, fogos de artifício, cavalhadas, corridas de touros, cortejos e desfiles, arrumação de tropas. Durante o período em que Portugal era a sede da monarquia competia aos governos de cada capitania incentivar essas celebrações. Depois de a Corte se ter transferido para o Brasil e ficado sediada no Rio de Janeiro ficou a cargo do intendente da Polícia organizar tais festas públicas. No tempo de Paulo Fernandes Viana ocorreram festejos por ocasião do casamento da princesa D. Leopoldina, mulher do Príncipe Real D. Pedro. Como escrevia o intendente, "era um dever da polícia entrar nestes objectos, não só pela utilidade que se tira em trazer o povo alegre e entretido, como provendo ao mesmo tempo o amor e respeito dos vassalos para com o soberano e sua real dinastia".

[...]

Podemos avaliar o peso destas festas na sociedade colonial pelo cuidado em elaborar relatos dos seus vários momentos e também em publicar tais descrições em folhetos, ou nas páginas das gazetas do Rio de Janeiro e Baía. Lembremos, entre outras, a "Relação das festas que se fizeram no Rio de Janeiro, quando o Príncipe Regente N. S. e toda a sua real família chegaram pela primeira vez àquela capital. Ajuntando-se algumas particularidades igualmente curiosas, e que diziam respeito ao mesmo objecto", publicada pela impressão Régia do Rio de Janeiro em 1810.

Nesta relação, o narrador, sob forma de carta, conta que a cidade celebrou com nove dias de luminárias a chegada de S. A. R., tendo já havido antes outros seis dias de luminárias quando chegara a princesa viúva. Este elemento essencial do festejo público era mais complexo do que se poderia supor. Não bastava iluminar as casas e edifícios mais importantes da cidade; era necessário ainda criar ornamentos adequados, arquitecturas efêmeras logo destruídas quando a festa acabava.

[...]

Nas festas públicas todos os grupos étnicos participavam, senão como actores, pelo menos como espectadores. Resta saber contudo se, no espaço urbano ou rural, havia lugar para a festa própria de cada etnia.

Deixar ou não os negros fazer os seus batuques e as suas danças dependia da maior ou menor flexibilidade dos governadores nas vilas e centros urbanos e dos senhores nas suas fazendas e engenhos. Essas actividades de lazer da gente de cor (das quais por vezes participavam os próprios brancos), por provocarem ajuntamentos perigosos, eram mal vistas pela população branca em épocas de crise e encaradas como demonstrações de uma sexualidade desenfreada pelos representantes da Igreja.

Batuque, Rugendas

Em 1779, na Capitania de Pernambuco, foi denunciada ao Santo Ofício a demasiada condescendência do então governador com os divertimentos dos negros: "Alguns governadores proibiram estas danças, e outras, que se fazem na terra, pelos naturais chamadas foffa, ou batuque entre homens, e mulheres que consiste em representar um acto torpe de fornicação, acompanhada de instrumentos, estrépitos de pés, e mãos, com ditos inhonestos e para maior desgraça nos tempos presentes com ditos blasfêmicos, como 'Oh meu Deus, ora vamos para o Céu'". Estes gestos e palavras constituíam "incentivos para desonestidade ainda nos mais tementes a Deus, quanto mais nos miseráveis pecadores".


Negros dançando fandango (jongo) no Campo de Santana, Rio de Janeiro, Augustus Earle

Também no início do séc. XIX, na Baía, Luís dos Santos Vilhena condenava a excessiva tolerância com as diversões dos negros: "Não parece ser de muito acerto em política, o tolerar que pelas ruas e terreiros da cidade façam multidões de negros de um e outro sexo, os seus batuques bárbaros a toque de muitos e horrorosos atabaques, dançando desonestamente canções gentílicas, falando línguas diversas, e isto com alaridos tão horrendos e dissonantes que causam medo e estranheza, ainda mais aos mais afeitos, na ponderação de consequências que dali podem provir, atendendo ao já referido número de escravos que há na Baía".


Negros tocando cabaça e pandeiro, Johan Nieuhof

O que perpassa nestes textos é a rejeição da cultura negra e a sua condenação, tendo como justificativa a "desonestidade" das suas danças ou a "barbaridade" dos sons produzidos pelos seus instrumentos. Além disso, sendo os cantares em línguas africanas, o branco não as podia entender e portanto temia-as. A estranheza perante o diferente levava ao medo, acentuado este quadro, em 1814, um levante de negros na Baía levou os brancos a exigir medidas repressivas mais severas do que aquelas que tinham sido tomadas pelo governador, conde dos Arcos. Este, se por um lado proibira totalmente "as danças que os negros costumam fazer ao som de instrumentos estrepitosos, e desentoados nas ruas e largos desta cidade", por outro não impedira que os escravos se juntassem nos dois largos da Graça e do Barbalho, podendo aí dançar "até o toque das Avé-Marias". Esta permissão levava em conta o facto de que "muitos senhores reconhecem a necessidade, e vantagem de diminuir os horrores de cativeiro, permitindo que seus escravos se divirtam, e que de dias em dias se esqueçam por algumas horas do seu triste estado".

Estas medidas tolerantes do governador consternaram alguns brancos assustados com as mortes recentemente ocorridas e com as casas incendiadas. Respondendo em parte a uma frase do governador na sua ordem do dia ("em todas as cidades policiadas do mundo se permitem divertimentos públicos proporcionados até às últimas classes da nação"), diziam não se dever permitir aos negros "divertimentos tão profanos em dias de descanso, e dedicados ao culto do verdadeiro Deus" quando muitos brancos, como os soldados e caixeiros, não tinham domingos nem dias santos, "aplicados sempre nos serviços" ou em guardas e rondas.

Todos os males então ocorridos provinham não só dos batuques mas também de se ter permitido aos negros "andarem com vestimentas de rei, coroando-se com espetáculos, e aparatos, fazendo uns aos outros tais, e quais homenagens e ajuntamentos com caixas de guerra amotinando a cidade".

Passado o susto com o levante dos negros, as diversões destes continuaram a ter lugar nos espaços públicos das principais cidades.

NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz. Vida privada e quotidiano no Brasil. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. p. 274-5, 278-80.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Os inconfidentes

Estudo para prisão de Tiradentes, Antônio Parreiras

O filme [produção brasileira de 1972, direção de Joaquim Pedro de Andrade] representa os acontecimentos da Inconfidência Mineira. O movimento é visto aqui através do comportamento e da narrativa dos idealizadores do movimento. Os diálogos do filme foram baseados no Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, e dos Autos da Devassa, documento oficial do inquérito sobre a Inconfidência.

Na trama, é evidenciada a força da Coroa portuguesa, a hipocrisia e a covardia dos inconfidentes. Apenas a figura de Tiradentes é preservada. De todos os patriotas engajados no movimento, Joaquim José da Silva Xavier é o que está mais disposto a levar às últimas consequências a revolução e conseguir a tão sonhada independência. Retratado como um jovem revolucionário muito ativo, Tiradentes encarna o ideal de liberdade, o ativismo político e o amor a uma causa em que se acredita. Nesse sentido, Tiradentes parece ser a síntese do movimento do qual participou. Seus companheiros, no entanto, são a síntese dos intelectuais que formulam críticas, mas não atuam. Quando traídos e presos, além de denunciarem seus próprios companheiros, negam envolvimento no levante e juram lealdade a Portugal para salvar suas vidas.

Jornada dos Mártires, Antônio Parreiras

O filme mostra, assim, a ideologia da Ilustração presente no Brasil do século XVIII. De forma pragmática e utilitarista, o tema da liberdade é central, mas, como expresso nas falas dos inconfidentes, o conceito que os inconfidentes utilizavam é restrito. Trata-se da liberdade econômica, nos moldes liberais, e não da liberdade em geral. Vale notar a opinião deles acerca da escravidão: os inconfidentes eram favoráveis à manutenção da instituição, pois não admitiam a ideia de ter de realizar o trabalho dos escravos.

Toda obra, toda produção humana é filha de seu tempo. Assim, podemos identificar no filme vários elementos da realidade social e política brasileira de 1972 (quando o filme foi feito), momento muito significativo na história do país. Desde a escolha do tema e da documentação em que se baseou, até a ênfase dada a cada personagem e seu papel na trama, todo o filme foi fortemente influenciado pelo contexto. No período da produção, o Brasil vivia sob uma ditadura militar, e muitos setores da sociedade já haviam formado grupos de resistência contra essa forma autoritária de governo.


Resposta de Tiradentes, Leopoldino de Faria

O cenário da trama é Ouro Preto, mas o filme faz claras referências ao que ocorria em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro no período militar, em particular no governo do general Médici, e à posição de alguns setores da esquerda, que lutavam desvinculados das expectativas do conjunto da população. A utilização de documentos históricos foi a forma encontrada para burlar a censura do governo militar brasileiro. A obra cinematográfica é uma alegoria por meio da qual estão representados os dois momentos históricos.

Dessa forma, Tiradentes, caracterizado como jovem revolucionário, pode simbolizar os jovens que enfrentaram a ditadura militar. Como Tiradentes, pronto para chegar às últimas consequências na luta contra a opressão metropolitana, alguns jovens no período de produção do filme estavam engajados na luta contra o regime vigente. O filme elogia a coragem desses Tiradentes contemporâneos.

Podemos ver representados neste filme também outros segmentos que constituíam a oposição ditadura no Brasil. Um segmento mais elitizado era constituído por setores da Igreja católica, por militares que não estavam no poder, por políticos alinhados com a ditadura, mas que queriam cargos mais importantes, e por intelectuais de diversas áreas.

PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza; CARVALHO, Yone de. História do mundo ocidental. São Paulo: FTD, 2005. p. 268-9.

terça-feira, 5 de abril de 2016

A resistência dos operários ingleses no século XIX: a luta pelos direitos

Uma noite de greve / Bandeira vermelha, Eugène Laermans

Os trabalhadores não aceitavam passivamente as condições de trabalho que lhes eram impostas e, com o apoio de alguns intelectuais, lutaram para obter melhorias que consideravam justas - como, por exemplo, uma jornada mais curta. Organizando-se em associações e sociedades, tentaram levar suas reivindicações ao Parlamento.

O sapateiro Thomas Hardy, um dos fundadores da Sociedade Londrina de Correspondência inaugurada em 1792, assim rememora uma das reuniões de seus membros:

"Após terem jantado pão, queijo e cerveja, como de hábito, e fumado seus cachimbos, com um pouco de conversa sobre a dureza dos tempos e o alto preço de todas as coisas necessárias à vida [...] veio à tona o assunto que ali os reunia - a Reforma Parlamentar -, um tema importante a ser tratado e liberado por tal tipo de gente." (Apud E. P. Thompson, op. cit., p. 16.)

A participação no Parlamento era importante para garantir direitos de cidadania aos trabalhadores. Diferentemente da ação das turbas, cuja atuação era ocasional, essas organizações promoviam discussões regulares dos temas políticos e econômicos da época. Apesar da constante repressão do governo sobre os reformadores, que se reuniam na clandestinidade, até 1824 as associações de trabalhadores cresceram de maneira expressiva.

Na primeira década do século XIX, a Inglaterra não era ainda uma democracia, tal como a entendemos hoje. Apesar do desenvolvimento econômico que alcançara, os direitos políticos continuavam restritos a uma minoria. A maior parte das pessoas não podia votar, e muitas das cidades que se haviam formado com o processo de industrialização não tinham o direito de ser representadas no Parlamento. Os trabalhadores também não podiam eleger representantes - por isso frequentemente recorriam aos motins e protestos de rua para expressar suas reivindicações. E, por fim, o Parlamento, composto pela Câmara dos Lordes e pela Câmara dos Comuns, defendia somente os interesses dos aristocratas e dos ricos comerciantes.

[...]

Diversas pessoas, na época, acreditavam que as máquinas fossem a causa do desemprego e dos baixos salários. Em 1812, trabalhadores liderados por Ludd, um aprendiz de Midland, destruíram a maquinaria têxtil e revoltaram-se contra os patrões e o sistema de trabalho na fábrica, dando início a um movimento de luta contra as mudanças nas técnicas produtivas. Apavorados com os atentados à propriedade, os membros do Parlamento impuseram medidas repressivas contra as organizações de trabalhadores, tentando vencê-los com a ameaça da força. Como a destruição das máquinas não resolvia seus problemas, os trabalhadores, por sua vez, partiram em busca de outras estratégias.

A greve dos mineiros de Pas de Calais, 1906, Le Petit Journal

Inúmeras petições foram sendo enviadas ao Parlamento, contendo reivindicações de melhores salários e jornadas mais curtas. Algumas concessões foram feitas, mas como nem sempre eram postas em prática os trabalhadores passaram a organizar-se em favor do direito de voto, a fim de eleger seus próprios representantes.

Ao final das guerras napoleônicas, os ingleses que haviam lutado retornavam ao seu país e não encontravam emprego nas indústrias, o que aumentou ainda mais a tensão social. Em Saint Peters Fields, perto de Manchester, reformistas radicais se reuniram em 1819 para discutir mudanças na legislação eleitoral. A polícia interrompeu a reunião e muitos dos participantes sofreram dura repressão; alguns foram mortos, outros, feridos.

Em 1832 o Parlamento ampliou o sufrágio para 200 mil votos, dobrando o número de eleitores. Os trabalhadores, entretanto, continuaram excluídos do processo eleitoral, o que os levou a unirem-se às camadas médias da sociedade inglesa, iniciando revoltas para exigir representação parlamentar. Esse movimento de rebeldia, conhecido como cartismo (1830-1840), reivindicava sufrágio universal para os homens, votação secreta, remuneração dos membros eleitos para a Câmara dos Comuns a fim de que os deputados pobres pudessem se manter, renovação anual do Parlamento, igualdade entre os distritos eleitorais e fim da exigência de propriedade para os candidatos. Exceto a renovação anual do Parlamento, todas as outras exigências aos poucos foram sendo atendidas, e o movimento cartista extinguiu-se.

Greve, Stanislaw Lentz

A via eleitoral não assegurava, em absoluto, melhores condições de vida para os trabalhadores. Na segunda metade do século XIX, o movimento dos trabalhadores tomara outros rumos. O sindicalismo surgiu como força de organização da classe trabalhadora, possibilitando a formulação de novas estratégias na luta pela conquista de direitos. Em 1824, foi votada uma lei que dava aos operários o direito de livre associação, favorecendo a legalização das associações clandestinas.

As organizações de trabalhadores se espalharam pela Inglaterra, dotando os operários de um grande poder de negociação. Engels afirma, em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, que "os seus fins eram fixar o salário, negociar em massa, enquanto potência, com os patrões, regulamentar salários em função do lucro do patrão, aumentá-lo na altura propícia e mantê-lo ao mesmo nível para cada ramo do trabalho".

As reivindicações incluíam também uma escala de salário que deveria ser respeitada em toda a Inglaterra e um limite à admissão de aprendizes, a fim de evitar concorrência com os operários qualificados e, assim, a redução dos salários.

Fazia parte da elite inglesa a chamada burguesia evangélica, que tentava difundir seu ideal de vida familiar estável tanto entre os aristocratas quanto entre os operários. Nessa família burguesa idealizada, o espaço de atuação da mulher restringia-se à esfera doméstica, conforme se depreende da análise da historiadora Catherine Hall:

"Os evangélicos e utilitaristas empreenderam um enorme esforço de moralização dos pobres através da família. Em todo o país, instituições do ensino, escolas dominicais, sociedades filantrópicas difundiam as concepções burguesas da separação entre os sexos." (Sweet home. In: Phillippe Ariès, Georges Duby, dirs. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 71.)

Alguns setores sindicais, como o de mineração, também não viam com bons olhos o trabalho feminino, que eles consideravam depreciador do salário. Dessa maneira, operários e burgueses evangélicos, por motivos diferentes, concordavam em que era necessário manter as mulheres no universo doméstico.

Na década de 1840, ainda segundo Catherine Hall:

"[...] a comissão nomeada para investigar o trabalho infantil nas minas ficou assombrada e horrorizada ao ver as condições de trabalho das mulheres. Além do mais, elas trabalhavam ao lado de homens, sem estarem inteiramente vestidas como deveriam. Era uma afronta à moral pública, que ameaçava de ruína a família operária. Lançou-se uma campanha inspirada pelos evangélicos, para proibir que as mulheres trabalhassem nas minas." (Op. cit., p. 81.)

Segundo os preceitos dessa moral burguesa, as mulheres deveriam limitar-se a exercer as funções femininas "naturais": cozinhar, costurar, limpar e cuidar de crianças. Até mesmo alguns líderes operários, que supostamente deveriam defender melhores condições de trabalho para ambos os sexos, reivindicavam o chamado salário familiar, com o intuito de evitar que as mulheres trabalhassem.

A greve na região de Charleroi, Robert Koehler

A condição dos trabalhadores chegou a sensibilizar até mesmo aqueles que não compartilhavam a mesma situação econômica. Na Inglaterra, o evangelismo religioso difundiu-se e entrou em choque com o pensamento liberal, contribuindo para que parte das classes média e alta refletisse sobre as péssimas condições de vida da época industrial.

As informações e dados estatísticos publicados pelo governo britânico davam conta da gravidade da situação. Os debates que encaminhavam a abolição da escravidão nas colônias do Império, em 1830, possibilitaram comparações com as condições de trabalho na própria Grã-Bretanha. Assim, embora de maneira limitada, algumas reformas foram introduzidas nas áreas de saúde pública, higiene, moradia, educação, legislação criminal e fabril.

Alguns capitalistas, como Robert Owen, aceitavam e incentivavam as reformas parlamentares. Por iniciativa própria, tentaram formar dentro de suas fábricas uma organização com base na cooperação. Outros se opunham às reformas parlamentares, defendendo o liberalismo e afirmando que a interferência da legislação nos negócios particulares prejudicava o comércio e a indústria. Entretanto, os dados da produção industrial não confirmam tal argumentação: na segunda metade do século XIX, a Grã-Bretanha produziu oito vezes mais algodão do que nas duas primeiras décadas do século; no mesmo período, a produção de carvão mineral teve um aumento significativo, e a produção de ferro-gusa chegou a corresponder à metade da produção mundial.

Mas, se ao longo do século a situação dos trabalhadores melhorou sensivelmente, é certo que as contradições trazidas pelo sistema industrial jamais desapareceriam, O pensador inglês Thomas Carlyle afirmou:

"Temos mais riquezas do que qualquer nação teve antes e temos menos bem-estar do que qualquer nação teve antes [...] em meio à abundância pletórica, o povo perece." (Apud John Linch et alli. A força da iniciativa. Rio de Janeiro: Time-Life/Abril Livros, 1992. p. 72.)

A riqueza continuava concentrada, e a grande maioria da população permanecia excluída dos privilégios sociais e políticos.

REZENDE, Antonio Paulo; DIDIER, Maria Thereza. Rumos da história: história geral e do Brasil. São Paulo: Atual, 2005. p. 315-18.

sábado, 2 de abril de 2016

A resistência dos operários ingleses no século XIX: as condições de vida e trabalho

Emigrantes (detalhe), Eugène Laermans

A produção agrícola na Inglaterra, antes destinada apenas à subsistência, transformou-se numa produção voltada para o mercado. Segundo o historiador E. P. Thompson, a lei de mercado da oferta e da procura, não fazia parte da mentalidade popular. Tanto nas comunidades rurais como nas urbanas, a principal referência de preço era o pão, e quando este subia gerava descontentamento popular.

"O século XVIII e o início do século XIX são pontuados por motins ocasionados pelos preços do pão, pelos pedágios e portagens, impostos de consumo, resgates, greves, nova maquinaria, fechamento das terras comunais, recrutamentos e uma série de outras injustiças." (A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. v. 1. p. 64.)


Emigrantes (detalhe), Eugène Laermans

A população mais pobre resistia ao aumento dos preços. Os trabalhadores combatiam os açambarcadores e monopolistas que especulavam sobre os preços dos cereais e de outros alimentos básicos. Um panfleto que circulou na região de Retford em 1795 anunciava o conflito:

"Aqueles vilões cruéis, os moleiros, padeiros, etc. vendedores de farinha, sobem a farinha em combinação entre eles ao preço que querem para provocar Fome Artificial numa terra de Fartura." (Apud E. P. Thompson, op. cit., p. 70.)

Os levantes do povo amotinado tentavam preservar uma antiga moralidade segundo a qual açambarcamento e monopólio eram considerados atos criminosos. O descontentamento com as mudanças decorrentes da industrialização levou a uma ação que, embora de maneira assistemática, originou as primeiras formas de organizações reivindicatórias dos trabalhadores.

O avanço tecnológico e o aumento na produção de riquezas acentuaram a diferença entre ricos e pobres. As cidades cresciam desordenadamente, e os serviços públicos básicos, como saneamento e abastecimento de água, não acompanhavam o crescimento da população. O resultado eram epidemias frequentes. Até o final do século XVIII, apenas Edimburgo e Londres tinham população acima de 50 mil habitantes, mas nos primeiros anos do século seguinte oito cidades já haviam alcançado esse número. Na segunda metade do século XIX, a maioria dos ingleses morava em áreas urbanas.

As cidades iam adquirindo contornos definidos pelo fascínio do lucro. Praças públicas, passeios e parques surgiam sem planejamento, na construção de um espaço onde o tempo era direcionado prioritariamente para se ganhar dinheiro. Manchester, Leeds, Liverpool, a despeito da riqueza industrial, seriam lembradas pelos seus cortiços lúgubres e superlotados, pelos seus becos infectos e pela pobreza. Escritores como Charles Dickens mencionaram essa miséria em suas obras, revelando a outra face do lucro e da industrialização. Essa contradição também é assinalada por Tocqueville, ao escrever sobre Manchester: "Desse pútrido escoadouro flui a maior corrente de energia humana para fertilizar o mundo todo. Dessa cloaca imunda, o puro ouro flui".


Emigrantes (detalhe), Eugène Laermans

O depoimento de F. Engels, economista e teórico do socialismo, é bastante interessante:

"Um dia andei por Manchester com um desses cavaleiros da classe média. Falei-lhe das desgraçadas favelas insalubres e chamei-lhe a atenção para a repulsiva condição daquela parte da cidade em que moravam trabalhadores fabris. Declarei nunca ter visto uma cidade tão mal construída em minha vida. Ele ouviu-me pacientemente e na esquina da rua onde nos separamos comentou: 'E ainda assim, ganham-se fortunas aqui. Bom dia, senhor.'" (A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Porto: Afrontamento, 1975.)

A promiscuidade descrita pelos contemporâneos não se limitava às condições de moradia dos pobres; também existia nas fábricas, geradoras de riquezas, onde mulheres, homens e crianças trabalhavam até dezesseis horas por dia. O depoimento do garoto Thomas Clark, num documento de 1883, também revela a crueldade do sistema fabril:

"Sempre nos batiam se adormecíamos [...] O capataz costumava pegar uma corda da grossura de meu polegar, dobrá-la, e dar-lhe nós [...] Eu costumava ir para a fábrica um pouco antes das 6, por vezes às 5, e trabalhar até às 9 da noite." (Apud Leo Huberman. História da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. p. 151.)




Trabalho árduo: pesados vagonetes cheios de carvão eram arrastados nas galerias estreitas e escuras das minas. Gravuras do século XIX

As pausas para descanso eram raras. Os trabalhadores tinham que se adaptar e seguir o ritmo das máquinas, sob pena de receberem multas. No caso das crianças, se houvesse atrasos, a punição podia se dar na forma de espancamento. A disciplina do sistema fabril e sua divisão "racional" do trabalho exigiam movimentos monótonos e repetitivos.

Segundo Engels, algumas crianças que trabalhavam no setor metalúrgico de Birmingham ficavam sem se alimentar das 8 horas da manhã até as 7 da noite. Em Sheffield, onde se encontrava o setor de cutelaria, um médico observou:

"A melhor maneira de mostrar com clareza a nocividade deste ofício é afirmar que são os bebedores que vivem mais tempo, porque são os que mais faltam ao trabalho. Ao todo, há 2 500 amoladores em Sheffield. Cerca de 150 (80 homens e 70 rapazes) são amoladores de garfos, que morrem entre os 28 e os 32 anos. Os amoladores de navalhas, que tanto trabalham a seco como na pedra úmida, morrem entre os 40 e os 50 anos, e os amoladores de facas de mesa, que trabalham na pedra úmida, morrem entre os 40 e os 50 anos." (Apud F. Engels, op, cit., p. 255-6.)


Ludistas quebrando máquinas, Cris Sunde

Segundo o historiador Eric Hobsbawn, como os trabalhadores "não assimilavam espontaneamente esses novos costumes, tinham de ser forçados por disciplinas e multas [...] e por salários tão baixos que somente a labuta incessante e ininterrupta os fazia ganhar o suficiente para sobreviver, sem prover o dinheiro que os afastasse do trabalho por mais tempo que o necessário para comer, dormir e - como se tratava de um país cristão - orar no Dia do Senhor."

Como a economia industrial oscilava entre períodos de crescimento e de recessão, nem mesmo os trabalhadores das fábricas tinham estabilidade no emprego. Ao lado disso, as inovações tecnológicas acarretavam aumento da pobreza para os trabalhadores que estavam fora do sistema fabril. Diz Hobsbawn:

"Os 50 mil tecelões manuais constituem o exemplo mais conhecido, mas não foram eles os únicos. Tornavam-se cada vez mais famintos e, numa tentativa vã de competir com as novas máquinas, trabalhavam cada vez mais barato." (Da Revolução Industrial ao imperialismo. Rio de Janeiro: Forense - Universitária, 1986. p. 87.)

REZENDE, Antonio Paulo; DIDIER, Maria Thereza. Rumos da história: história geral e do Brasil. São Paulo: Atual, 2005. p. 313-15.