São Paulo, 1924, Tarsila do Amaral
São Paulo dos primeiros anos da década de 1920 guardava inúmeras manifestações características de uma cidade onde os homens ainda podiam reconhecer-se, isto é, a metropolização que carrega a ideia de um espaço quantitativo e diluidor do indivíduo não havia se imposto totalmente. Um bairro, por exemplo, era sentido como um microlugar de uma cidade com história relativamente descentralizada, onde o tempo era marcado pelos ritos, pelos desfiles de uma banda como a de "Ettore Fieramosca (que) dá uma volta triunfal pelo Bom Retiro com a gurizada atrás". Uma cidade que permitia a existência de espaços para a prática do footing...
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A Ponte Grande [...] estava situada sobre o rio Tietê, na região do próprio bairro do Bom Retiro, próximo ao local onde hoje está localizada a Ponte das Bandeiras. Quase embaixo da velha Ponte Grande existia um porto onde barcos vindos de Mogi das Cruzes ancoravam para descarregar telhas e tijolos.
Os barqueiros descarregavam produtos que chegavam a São Paulo através de um meio de transporte relativamente lento, se for comparado com o trem, cujos trilhos corriam quase paralelamente ao rio. A navegação e os produtos (telhas e tijolos) eram resultados de uma atividade mais criadora, típica de uma cidade menor com um espaço qualitativo que sobrevivia a pressões do espaço quantitativo típico da metrópole que começava a crescer.
Os bairros possuíam restos de uma vida própria resistindo à tendência centralizadora da metrópole.
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Uma profissão arcaica como a de um vendedor de tripas, atividades lúdicas como o balanço do Parque Antártica, as retretas do Jardim da Luz parecem reforçar os contornos de uma cidade descentralizada, com os bairros mantendo uma relativa vida própria. Autonomia que imprimia uma divisão entre espaço e classes sociais: se em Higienópolis podiam viver os enriquecidos de fresca data, formados de uma plutocracia imigrante que sugeria o trabalho como via de ascensão, os imigrantes pobres que exerciam profissões de tripeiro ou condutor da Light só poderiam viver no Bom Retiro [...] ou no Brás, Bixiga e Barra Funda [...]
Os espaços físicos intermediários entre os bairros pobres e o centro da cidade chegaram a ser ocupados por camadas médias ligadas ao comércio e burocracia.
O lazer de parte considerável da população paulista era desfrutar as grandes áreas da mata da Cantareira para fazer piqueniques e namorar. Ou ainda, organizar pescarias com a família e amigos na represa próxima da serra do Mar no caminho para Santos. A atividade lúdica urbana, que havia sido, até um determinado momento, bastante valorizada, sofre um processo de reversão: o espaço urbano encolhe-se diante do crescimento populacional, daí a procura do bucólico e da quietude dos arredores da cidade. [...]
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Confirma-se [...] a tendência à metropolização a organização do lazer, da "felicidade" dominical e da paisagem idílica, em outras palavras, a organização do ócio aumenta na mesma medida em que a cidade perde suas características descentralizadoras e crescem as tendências centralizadoras de um espaço quantitativo. Neste momento é que se dá a liquidação das referências individuais, as mutações são bruscas e as mudanças são eternas. Este era o paradoxo de São Paulo na década de 1920.
A cidade via seu espaço se transformar para que a economia de mercado pudesse escoar seus produtos mais facilmente. O próprio rio Tietê de se falou foi, em parte, canalizado para dar lugar a ruas, por onde passavam caminhões, automóveis, bondes. Viadutos e túneis tornavam as comunicações mais fáceis, anunciando um novo tempo. Os tentáculos viários da metrópole centralizadora avançavam vorazmente sobre os bairros, retirando-lhes o que restava de vida própria.
Os anos 20 conheceram um crescimento nas exportações de café, e entre 1922 e 1923 o produto valorizou. O peso político e econômico do Estado de São Paulo era cada vez maior. Os impostos provindos das exportações produziam uma situação financeira relativamente estável. Esta estabilidade impulsionava a cidade, dinamizando-a. O aparecimento da radiodifusão era parte desde impulso modernizador.
TOTA, Antonio Pedro. A locomotiva no ar. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura/PW, 1990. p. 24-26.
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