"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A exploração sexual das índias no início da colonização da América portuguesa

O reverso da visão triunfalista de Gandavo, Soares de Souza e Brandão está na violência da escravidão, na promoção dos massacres indígenas e na exploração sexual das mulheres. Esses três fenômenos eram frequentemente denunciados pelos jesuítas que encontraram grandes dificuldades em suas tentativas de mudar tal padrão de relações baseado na ganância dos colonos que apenas viam os índios como mão-de-obra a ser explorada e suas mulheres como objeto de uso sexual.



Uma das questões mais candentes entre jesuítas e primeiros povoadores foi a da união destes com as índias, feitas sob forma de mancebia sem casamento legal. A poligamia possibilitava ao colono o acesso aos serviços e ao produto do trabalho de diversas mulheres. A mancebia facilitava também o abandono, a troca ou a multiplicidade de mulheres, havendo colonos que formavam verdadeiros haréns de índias. Esses costumes, apesar de constituírem pecado mortal para a Igreja Católica, eram encorajados por padres seculares que defendiam doutrinas heréticas como a de que não havia pecado nas regiões tropicais.

Os jesuítas começaram a pressionar os colonos para que se casassem ou se separassem, tendo sucesso em alguns casos com o auxílio das índias que cooptavam pela catequese, ou por meio de penalidades, como a negação da confissão ou freqüência à missa.

Conforme comentava o padre Manoel da Nóbrega em carta de 1550, apenas os homens pobres se casavam com as índias, enquanto os ricos, que pretendiam voltar a Portugal, não o faziam, muitas vezes por serem casados. No entanto, a razão mais provável para a relutância dos ricos em se casar deveu-se à legislação portuguesa que dava privilégios especiais aos chamados homens-bons – ricos proprietários que ocupavam os cargos municipais, militares e honoríficos e que gozavam de privilégios jurídicos semelhantes aos da nobreza. Para que pudessem ser homens-bons era preciso que suas esposas fossem cristãs velhas (descendentes de mais de seis gerações de cristãos), brancas e sem mancha de trabalho manual ou comércio de loja aberta. Se fossem cristãs novas (convertidas ou descendentes de judeus convertidos por menos de seis gerações), negras, mulatas, índias ou filhas de artesãos ou pequenos comerciantes seus maridos e filhos não poderiam ocupar posições de mando ou honra.

É por isso que toda vez que a História registra casamentos com índias fala-se em princesas ou filhas de principais (os “chefes”) que traziam alianças vantajosas para os brancos. É o caso de Diogo Álvares Correia, o Caramuru, com Catarina Paraguaçu e o de Jerônimo de Albuquerque com a filha de Arcoverde.

Havia também grande número de filhos de brancos com índias. Uns viviam nas tribos fazendo guerra e praticando a antropofagia, enquanto muitas moças estavam amancebadas com colonos.

Os jesuítas se empenhavam muito particularmente em contatar e integrar esses mestiços na sociedade colonial, visando o aumento do número de cristãos e de portugueses.

Para moralizar o clero e a sociedade, os jesuítas lutaram muito pela vinda de um bispo, mas sofreram um grande desapontamento quando chegou D. Pedro Fernandes Sardinha. Apesar de culto e com fama de santidade, no Brasil revelou grande incompreensão para com as condições peculiares da colônia. Os clérigos que trouxe para as igrejas e a catedral logo se amancebaram com suas escravas que compravam entre as mais belas e caras. Além do mais, eles levantaram a interdição dos sacramentos negados pelos jesuítas por motivo de mancebia e escravidão do gentio, deitando a perder toda a luta de vários anos. Dessa maneira, os vícios antigos foram perdoados e justificados. Da mesma forma, cresceu a tendência das uniões ilegítimas com as índias e depois com as negras, dando origem a uma massa crescente de mestiços desprezados e miseráveis que formaram a base da sociedade brasileira.

Ao contrário do que faz crer certa historiografia, que propaga a ideia primária de que o povo brasileiro se fez pela união das três raças – branca, negra e índia – de forma voluntária e igualitária, ele foi em grande parte resultado da exploração sexual das escravas pelo seu senhor.

Os filhos que resultaram dessas uniões, raras vezes, foram reconhecidos, não recebendo educação, herança e, muitas vezes, nem mesmo a liberdade.

No século XVIII, o número desses destituídos já era tão considerável que consistia grave problema social em alguns pontos da colônia, chegando a ser objeto de legislação penal severa quando ocorriam crimes.

Os clérigos seculares, que Nóbrega dizia fazerem “ofício de demônios”, apoiavam e até imitavam as ações dos colonos, dizendo que não era pecado amasiarem-se com as índias, porque eram suas escravas e que a escravização era lícita porque os índios eram como cães.

Por outro lado, é preciso lembrar que uma porcentagem considerável da população era formada por degredados que, sentenciados e transportados à força para a colônia, pouco se interessavam pela solução dos problemas locais. Se muitos se regeneraram e assumiram seu lugar na sociedade, outros preferiram multiplicar seus crimes, principalmente contra os índios, iniciando, muitas vezes, as lutas com os brancos que levaram a massacres mútuos.

MESGRAVIS, Laima; PINSKY, Carla Bassanezi. O Brasil que os europeus encontraram: a natureza, os índios, os homens brancos. São Paulo: Contexto, 2000. p. 100-102.

NOTA: O texto "A exploração sexual das índias no início da colonização da América portuguesa" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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