"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A cultura jovem dos anos 60: da canção de protesto ao psicodelismo

Depois de seu apogeu - entre os anos de 1956 e 1958 -, o rock' n' roll começou a se esvaziar, nos Estados Unidos, como meio de expressão e revolta de uma geração. [...]

Esse esfriamento criativo do rock' n' roll começou a repercutir entre os próprios artistas negros, que, a partir de uma fusão de raízes dos gospels e dos spirituals [...] com elementos da canção romântica branca, criaram um tipo mais suave de música vocal, retomando a linha adotada por grupos vocais como The Platters, com seu sucesso "Only you" (1955). Tratava-se de uma música sob medida para ser aceita por um grande público branco. A partir de 1959, Berry Gordy capitaliza esse novo som, construindo em torno de si uma poderosa empresa, que iria dominar o setor da chamada black music (música negra) durante a década de 1960; [...]

Apesar do comercialismo inicial dos seus conjuntos vocais (The Supremes, The Temptation, [...] etc.), o som da Motown, de Detroit, abre o mercado para a consagração de futuros valores da música negra (funk e soul) durante a década de 1960 (Diana Ross, Smokey Robinson, James Brown, Aretha Franklyn, [...], Marvin Gaye, Stevie Wonder etc.), tornando-se uma das influências importantes para a segunda explosão da música jovem, a partir de 1964.

Podemos dizer que o surgimento e a expansão de uma música negra para um mercado nacional, de maioria branca, reflete a luta pela afirmação dos direitos civis dos negros durante a década de 1960.

[...]

Diante desse agitado quadro político-social do início da década de 1960, o rock' n' roll parecia um modismo adolescente e ultrapassado, mesmo porque outro tipo de música, baseada na canção folclórica (folk song) norte-americana, serviria como canal de expressão para a juventude universitária do país refletir sobre os problemas internos e externos dos Estados Unidos. Ao contrário dos despreocupados sons da dança, como o twist, que era a sensação do início da década, o folk song apelava para a consciência política de um público engajado nas lutas estudantis.

Esse renascimento da música folk deve-se a grupos como Kingston Trio (1958), Pete Seeger and the Weavers (1958) e Peter, Paul and Mary (1961). Mas as estrelas maiores do novo movimento foram Joan Baez e Bob Dylan.


Joan Baez e Bob Dylan

Joan Baez tinha 18 anos quando se tornou a sensação do Festival Folk de Newport, em 1959. No ano seguinte, gravou seu primeiro álbum, com temas folclóricos tradicionais. Em novembro de 1962, ela já tinha três álbuns nas paradas e era capa da revista Time. Uma de suas canções, retirada do repertório tradicional da música folk - "We shall overcome" -, tornou-se um dos hinos da juventude universitária que apoiava o movimento pelos direitos civis dos negros, no qual encontramos Joan Baez ao lado do líder negro Martin Luther King.

Nessa atmosfera surgiu a canção de protesto (protest song), como desdobramento da onda folk. Antes, mesmo politicamente engajados, os intérpretes se limitavam a recolher temas do repertório tradicional e aplicá-los à situação da sua época. Mas com o aparecimento de Bob Dylan, em 1962, que usava a canção folk como base para letras incrivelmente atuais, houve uma verdadeira revolução na música popular norte-americana. Suas letras continham denúncias contra o racismo, o militarismo e a corrida armamentista, coisas que ainda não haviam sido ouvidas na música popular da época; o gosto pelo ambíguo, pelo místico, pelo religioso também se fazia presente, mostrando toda a influência dos poetas beats sobre o compositor. [...]

Como muitos outros jovens norte-americanos do seu tempo, Bob Dylan mostrava-se desencantado com o mundo que os homens construíam [...]. Dylan tinha no cotidiano das manchetes e reportagens dos jornais e revistas a fonte de matéria-prima para as suas canções, nas quais o compositor denunciava "os senhores de escravos e os senhores da guerra" da América. Com isso, transformou-se numa espécie de porta-voz da juventude norte-americana, principalmente a partir do sucesso de "Blowin' in the wind" (1963), canção que se tornou mais um dos hinos dos movimentos pacifistas dos anos 60.

[...]

Enquanto se verificava o processo de politização da juventude universitária norte-americana e a ascensão da música de protesto, o rock' n' roll ressurgiu com um ímpeto inesperado na Inglaterra, que, a partir de então, tornou-se um dos principais pólos divulgadores da cultura jovem mundial.

[...]

Na década de 1950, por problemas de distribuição e pela censura da programação radiofônica (controlada pela estatal BBC), o rock' n' roll levou alguns anos para chegar ao Reino Unido. Sem uma infra-estrutura que o divulgasse (rádios, disc-jockeysshows etc.), os jovens ingleses só tinham os discos importados. Esse vazio foi preenchido pela onda skiffe, imitação do blues norte-americano. Esse movimento deu ao rock britânico sua sólida base de blues, com pioneiros como Alex Korner e John Mayall.

Quando o rock' n' roll norte-americano atingiu com maior intensidade o mercado britânico, no início da década de 1960, estava misturado com o rhythm and blues, o country, o rockabilly, o calipso, a música negra da Motown, recebendo uma nova roupagem por parte dos músicos ingleses.

Entre as centenas de grupos musicais de Liverpool e Londres surgidos no início dessa década, dois alcançaram em pouco tempo um sucesso internacional sem precedentes, modificando de modo profundo não somente a música popular, mas todo o estilo de vida da juventude. Os Beatles [...] e os Rolling Stones [...] encarnaram as duas forças básicas que engendraram toda a convulsão cultural dos anos 60.

Ao longo da sua carreira, os Beatles foram um verdadeiro laboratório de influências e pesquisas que iam da música eletrônica à canção folclórica, da música oriental às mensagens existenciais de suas letras, as quais transmitiam uma visão filosófica do desconcertante cotidiano existencial. Na segunda metade da década - com LPs que se transformaram em marcos históricos como Rubber soul (1965), Revolver (1966) e, principalmente, Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (1967) -, os Beatles inauguraram a era do experimentalismo eletrônico na música pop. Já os Rolling Stones, menos sutis e mais intensos, se caracterizaram pelo balanço de sua batida musical, bem próxima das tonalidades negras firmemente enraizadas no blues e na violência, quer nos temas de suas músicas, quer em suas apresentações ao vivo. [...]

[...]

Após as dificuldades de reconstrução do país, as novas gerações inglesas, graças à forte influência do american way of life, despertavam para o prazer individual e o consumo. Divertiam-se entre os conflitos de mods (origem do grupo The Who) e rockers, que opunham basicamente dois estilos de vida. Os mods (derivado de modern, "moderno") eram jovens de classe média que vestiam terninhos de lapela, camisas de colarinho redondo e primavam por um visual bem comportado, andavam em suas lambretas cheias de acessórios cromados e ouviam basicamente música negra dos anos 60 (funk, soul ska); já os rockers viviam ligados à cultura do rock' n' roll dos anos 50, formando bandos de motoqueiros com seus blusões de couro. [...]

Apesar de sua aparente ingenuidade, a juventude inglesa, ao contrário da inconsequente rebeldia da juventude transviada norte-americana, começava a desenvolver uma consciência crítica de sua geração. É o que ocorre, por exemplo, na canção "My generation" (1965) do grupo The Who. Com ironia, humor negro e uma grande dose de "inocência", os roqueiros ingleses começaram a desmascarar a hipocrisia dos valores estabelecidos pela sociedade. Era uma geração que podia não saber ainda o que queria, mas já começava a ter uma noção muito clara do que não queria. [...]

Dessa forma, o antigo rock' n' roll passava a ser simplesmente rock, diversificando-se em várias tendências. Começava a se fundamentar um mundo alternativo, paralelo à sociedade, cheio de blues eletrificado, que acabou se tornando um dos fundamentos básicos dos movimentos jovens da segunda metade da década. [...]

Essa explosão do rock inglês acabou despertando e influenciando a música norte-americana, que [...] estava em refluxo criativo desde os fins dos anos 50 e início dos anos 60. Essa influência tornou-se acentuada a partir de 1964, quando os Beatles fizeram sua primeira excursão aos Estados Unidos, abrindo o mercado para outros grupos britânicos e influenciando a formação de novos músicos norte-americanos: The Jefferson Airplane, The Mamas and The Papas [...], The Doors, The Velvet Underground e outros. [...]

Em meados da década de 1960, enquanto a violência racial e o conflito do Vietnã agitavam os Estados Unidos, surgia uma concentração de fenômenos a que os analistas sociais deram o nome de contracultura. A juventude de classe média começava a postular ideias e a conduzir-se de modo totalmente oposto aos valores apregoados por uma sociedade moralista, racista, consumista e tecnocrata.

[...] não é estranho que a contracultura tenha surgido no seio da sociedade norte-americana, pois foi justamente nos Estados Unidos que a tecnocracia [...] atingiu o auge de seu desenvolvimento, obrigando o jovem a adaptar-se rapidamente a uma realidade mecânica, árida e desprovida de qualquer impulso criativo. Com isso, a contracultura se tornou a forma de expressão mais importante dessa parcela de jovens que procuravam "cair fora" (filosofia do drop out) dos padrões estabelecidos por essa sociedade [...].

[...]

[...] os movimentos de contracultura nasceram a partir de um ponto de vista hedonista, ou seja, do desejo simples e elementar da felicidade individual, porém fora dos padrões de regras e normas repressoras estabelecidas pelo sistema, composto de instituições político-sociais que objetivavam a sustentação da ordem vigente. É dentro desse contexto que se insere a grande utopia dos hippies - a construção de um "paraíso aqui e agora", de "paz e amor". Para tanto, era fundamental criar seu próprio estilo de vida e "cair fora" do mundo materialista e racional da sociedade moderna, o que significava ganhar outro espaço físico e mental. Daí a criação das comunidades hippies e a descoberta do misticismo e do psicodelismo das drogas, principalmente o LSD (ácido lisérgico).

Sediado na costa leste dos Estados Unidos, mais exatamente em São Francisco, a partir de 1966 o movimento hippie começou a constituir suas comunidades em meio a um clima astrológico que previa, com a chegada da Era de Aquário, da peça Hair (musical que melhor retratou os ideias e o estilo de vida dos hippies), o advento de um novo mundo, pacífico e harmonioso.

Esse profetismo acabou revelando todo o misticismo religioso que envolvia a contracultura hippie, misturando parapsicologia, zen-budismo, ufologia, astrologia, magia, iluminações psicodélicas e espiritualismo. Nesse contexto, destacavam-se figuras como Thimothy Lery, o papa do LSD ("ligue-se, sintonize-se e caia fora"), e Alan Watts, o grande "sacerdote" do zen-budismo nos Estados Unidos. Essas experiências místicas eram uma tentativa dos jovens de romper com os esquemas repressores da cultura ocidental, que agiam de forma alienante sobre as consciências individuais, limitando-as na sua sensibilidade por meio de uma racionalidade e uma tecnocracia exacerbadas.

A partir da contracultura, a segunda metade da década de 1960 trouxe em seu bojo um verdadeiro terremoto, difícil de ser enfrentado por quem tinha ideias e objetivos preestabelecidos. A cultura ocidental foi amplamente questionada em seus valores políticos e morais, já que a contracultura estabelecera uma espécie de guerrilha cultural dentro do próprio sistema; um movimento espontâneo e insinuante que, apossando-se dos meios de comunicação de massa ou criando uma imprensa alternativa, conquistou adeptos por toda a parte e ameaçou colocar a utopia no poder, estabelecendo o poder das flores (flower power).

[...] A crônica musical desses anos de contracultura começou em junho de 1967, no Monterrey Pop Festival, que abriu a época dos grandes festivais (Woodstock, Altamont e Ilha de Wight). Foi lá que se apresentou Jimi Hendrix, após ter sido consagrado na Inglaterra. Se as principais expressões do rock britânico eram famosas por procurarem desenvolver o blues a partir do rock, foi Hendrix que concretizou a fusão entre o blues e o rock' n' roll, entre o instinto vital da origem africana da música negra e a sofisticação eletrônica criada pela tecnologia branca, desbravando novos caminhos para o futuro do rock.

O nome Jimi Hendrix só pode ser comparado ao da grande cantora Janis Joplin, que também conseguiu trazer em sua voz essa fusão da música negra coma branca. Janis nasceu no Texas, mas esteve ligada ao rock de São Francisco, cidade que, como Liverpool na Inglaterra, assistiu a uma proliferação de grupos e tendências musicais - desde o conjunto com que Janis trabalhou, o Big Brother and the Holding Company, até o rock latino de Carlos Santana, com seus ritmos dançantes e sua variada percussão.

Mas a tendência mais típica do rock de São Francisco foi o chamado acid rock (rock ácido), que procurava, com a criação de espaços musicais amplos e abstratos, e com o emprego de estranhas sonoridades, reproduzir os sons e ruídos, os climas e sugestões emocionais da experiência psicodélica com as drogas. Os grupos mais famosos dessa audaciosa aventura são o Jefferson Airplane, The Doors, de Jim Morrison, e o Grateful Dead, de Jerry Garcia (guru psicodélico da cena musical norte-americana). [...]

[...]

Mas o acid rock inglês, ou head music (música de cabeça), tinha no grupo Pink Floyd, sob o comando de Syd Barret (1967-1968), o seu principal expoente. O primeiro LP do Floyd - The piper at the gates of dawn, de 1967 - era tão revolucionário quanto o próprio Sgt Pepper's ou Are you experienced (primeiro LP de Jimi Hendrix). Com grupos como o Pink Floyd e o Soft Machine, o rock psicodélico britânico se mostrou mais experimental e instigante que o norte-americano, influenciando toda uma geração de músicos que acabou por desembocar no rock progressivo (fusão entre o rock e música erudita) dos anos 70.

BRANDÃO, Antonio Carlos; DUARTE, Milton Fernandes. Movimentos culturais de juventude. São Paulo: Moderna, 2008. p. 45-46 e 52-63.

NOTA: O texto "A cultura jovem dos anos 60: da canção de protesto ao psicodelismo" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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