A revolução iraniana concentrou
todos as contradições do desenvolvimento histórico do país, em especial em sua
fase moderna e contemporânea, como semicolônia dos imperialismos russo e britânico,
no século XIX e na primeira metade do século XX, e do imperialismo
norte-americano, depois da Segunda Guerra Mundial. A questão democrática (luta
contra a monarquia) e a questão agrária, não resolvidas pelo desenvolvimento
capitalista raquítico e dependente do país, puseram-se contra o pano de fundo
do desenvolvimento desigual e combinado de sua economia, que gerou uma moderna
indústria petroleira, e um proletariado que, embora minoritário, ganhou forte
poder econômico e político. A classe operária estava concentrada nos centros de
produção de petróleo para exportação e na área de serviços de todo tipo, além
da indústria dirigida ao mercado interno, concentrada na periferia da capital,
Teerã.
Em 1978-79, produziu-se no Irã o
vertiginoso desenvolvimento de um movimento revolucionário, no qual,
inicialmente, a classe operária lutou pela direção da mobilização de todos os
explorados, movimento que desmantelou o Estado e criou uma situação revolucionária. A revolução no Irã, no
entanto, debutou como um vasto movimento democrático dirigido pela burguesia
nativa. Esse foi o caráter do movimento em seus inícios, quando tinha seu
centro na cidade santa de Qom, onde a hierarquia religiosa xiita se pôs à
cabeça da mobilização de massas contra o regime ditatorial do xá. Durante dois
anos, o caráter e o ritmo do movimento – sua direção – foram garantidos e
controlados pela hierarquia islâmica, financiada pela burguesia comercial e
financeira do Baazar. O enfrentamento entre esse setor e o regime
monárquico dominava o centro da cena política, bloqueando uma ação histórica
independente das massas.
Manifestação contra o xá, 1978
A intensificação do enfrentamento
teve, porém, conseqüência não desejada por nenhuma das frações burguesas ou
clericais em disputa: a crescente afirmação do proletariado no interior do
movimento democrático e antiimperialista. Uma transformação do processo
revolucionário aconteceu quando o proletariado começou a combater com seus próprios
métodos (greves, ocupação de fábricas) o regime do xá. A ampliação do combate
democrático levou a classe operária a tornar-se mais independente da direção
burguesa e religiosa.
O centro geográfico do movimento
deslocou-se então para as regiões petroleiras de Abadan e para a própria
capital, Teerã. Foi a partir da greve geral petroleira de outubro de 1978 que
começou a contagem regressiva do governo do xá. E foi também a partir dessa
data que começaram a se desenvolver os comitês operários nos centros petrolíferos
e no cinturão industrial de Teerã, além de 105 comitês de bairro na própria
capital. As ações testemunhavam a vontade do movimento operário de imprimir seu
selo de classe à revolução democrática, transformando-a.
Foi a transformação interna da
mobilização revolucionária que determinou que a original intransigência da
direção khomeneista fosse cedendo lugar à vontade de saída nos quadros do
regime, uma transição que preservasse o Exército, mas que incluísse também as
frações burguesas que haviam sido excluídas.
A tentativa de conciliação com o
antigo regime (que acenara até com a possibilidade de uma monarquia
constitucional) foi evidente quando o primeiro-ministro Barzagan confessou a
existência de um acordo, do qual um aspecto era a nomeação de Chapour Bakhtiar
(membro da Frente Nacional de Oposição) como primeiro-ministro, pelo próprio xá:
“Estimávamos que devíamos organizar, depois da partida do xá e da instauração
de um Conselho da Coroa, eleições gerais e livres, que teriam aberto a via para
a designação de uma Assembléia Constituinte, para transformações radicais, e
depois a transferência do poder”. Chapour Bakhtiar, presidente do Conselho,
teria apoiado esse projeto, do mesmo modo que os chefes do Exército e da polícia,
segundo o bem informado correspondente sur
place de Le Monde, em 15 de maio
de 1979.
O povo em armas, Teerã, fevereiro de 1979
Mas o movimento proletário
expresso na greve geral já possuía um alto grau de independência em relação à
direção burguesa, e tinha por trás um colossal movimento de massas. Sua expressão
foi a insurreição popular de 10, 11 e 12 de fevereiro de 1979, que quebrou o Exército
imperial e assistiu à tomada de armas por parte do povo. Isso liquidou os
planos de transformação pacífica da monarquia. “Eu não tinha ainda declarado a
guerra santa”, disse Khomeini posteriormente. Por isso, a repressão contra a
esquerda e o movimento organizado dos trabalhadores começou imediatamente
depois de vitoriosa a revolução democrática antimonárquica, dando papel
decisivo às milícias islâmicas. Estas foram depois transformadas em Guardiões
Revolucionários, conquistando enorme poder político no novo Estado, com o qual
a hierarquia xiita teve que contar. O que, até certo ponto, limita o próprio
poder dos mulás.
Ainda em 1979, quando a direção
burguesa queria dar por terminada a revolução, para as massas ela recém-começava.
A auto-organização operária se manteve, pelo menos, até 1981 nos principais
centros industriais e fez pairar o fantasma de uma segunda revolução, social,
mais radical, não só no Irã, mas em toda a região, na Arábia Saudita em
primeiro lugar. Os comitês khomeneistas começaram então a competir,
inicialmente e depois a chocar abertamente, até mesmo militarmente, com os
comitês independentes surgidos da insurreição popular. O confronto estendeu-se
desde setembro de 1978 até fevereiro do ano seguinte. O primeiro-ministro
Barzagan resumiu a situação nestes termos, dirigidos aos correspondentes
estrangeiros: “Vocês não concebem a que fantástica pressão popular estamos
sendo submetidos, todos, sem exceção.”
A mobilização revolucionária
impediu um acordo pacífico entre a burguesia nacional e o imperialismo, que até
mesmo buscou um terreno de entente
com a própria hierarquia xiita. Khomeini chegou a afirmar que o fuzilamento de
homens do regime do xá tinha função preventiva, pois, caso o novo regime não
executasse alguns altos personagens imperiais, “o povo teria realizado um
verdadeiro massacre”.
Clérigos e soldados dão as mãos em sinal de amizade, fevereiro de 1979
A força social da classe operária
e dos setores mais pobres e explorados, porém, não se transformou em força política
independente, pela política carente de independência em relação ao clero xiita
ou à burguesia bazaari das principais
correntes de erquerda, os fedayyin
marxistas, os mujaheedeen islamo-marxistas e, sobretudo (pela sua força nos
sindicatos e centros petroleiros) o Tudeh. O partido, dependente da burocracia
da União Soviética, revelou uma posição reacionária, por sua política mundial,
nos momentos decisivos do enfrentamento antiimperialista (ocupação da embaixada
norte-americana em Teerã).
Diante do temor e da fraqueza da
burguesia iraniana diante do movimento dos explorados, da dissolução do Exército
imperial e da carência de independência política real da classe operária, o
clero xiita pôde jogar papel de arbitragem que se estendeu por todo um período
histórico, chegando até hoje. Essa arbitragem o pôs à cabeça do Estado islâmico,
no qual as instituições representativas, eleitas em escrutínio, estão
subordinadas a instâncias não-eleitas (pela maioria da população) próprias à
instituição religiosa, configurando um regime de natureza bonapartista-teocrática.
Logo depois da revolução, a
guerra contra o Iraque atenuou as suas contradições internas e serviu também
como álibi já não só ideológico, mas também militar, para a repressão contra a
esquerda e o movimento operário independente. O fracasso do empreendimento bélico
iraniano (afinal, o verdadeiro motivo do enforcamento de Saddam Hussein, vinte
anos depois) fortaleceu o bonapartismo xiita e deu o lugar central do Estado a
sua milícia armada.
A partir de meados da década de
1980, o declínio dos preços internacionais do petróleo acrescentaria um fator
econômico à queda do poder da classe operária. Com o desemprego, a queda da
renda nacional e as perdas salariais, a luta dos trabalhadores retrocedeu e
voltou a seus níveis mais elementares.
Os acontecimentos atuais
demonstram que, apesar de suas inúmeras limitações, a revolução iraniana de
1979 alterou decisivamente o equilíbrio político do Oriente Médio, e se
projetou como um poderoso fator de crise política mundial. A população do Irã,
que era de 34 milhões na época da Revolução Islâmica, pulou para 70 milhões,
hoje, sendo que 65% dela tem menos de 25 anos de idade. Esses jovens formam a
população mais instruída do país de todos os tempos, pois o índice de
alfabetização nunca foi tão alto, tendo passado de 59% para 82%, nos últimos
vinte anos. Mas não é fácil ter vinte anos no Irã, hoje: 40% dos jovens estão
desempregados.
As novas gerações iranianas
encaram novos desafios, que põem novamente o Irã no centro da tormenta política
mundial. A “questão iraniana” se projeta para todo o Oriente Médio,
demonstrando que a solução dos problemas da própria revolução tem por palco
decisivo a arena internacional. Um combate antiimperialista conseqüente terá o
efeito de trazer à baila as contradições políticas internas do país e,
sobretudo, as suas contradições de classe. A experiência política do último
quarto de século será decisiva. De sua assimilação depende a retomada do fio
condutor com toda a longa tradição revolucionária do país de Mazdak e Sultanzadé,
da reconstituição de seu elo histórico e de classe com a luta socialista dos
explorados do mundo todo.
COGGIOLA, Osvaldo. A Revolução Iraniana. São Paulo: UNESP,
2008. p. 139-143. (Revoluções do século 20).
NOTA: O texto "O significado da Revolução Iraniana" não representa, necessariamente, o pensamento deste
blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do
conhecimento histórico.
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