"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A cultura jovem dos anos 70: do progressive rock ao punk

O avanço do sistema sobre a contracultura, pela assimilação de seus principais elementos, entre eles a música, tornou possível, a partir de uma indústria cultural bem-articulada, uma incorporação dessa contracultura à cultura de consumo. Ou seja, ao mesmo tempo que os jovens ainda deploravam o materialismo da sociedade de consumo, eles adquiriam sofisticados equipamentos de som, motos e carros esporte, roupas coloridas, jeans desbotados, bijuterias etc.

Os abalos da década de 1960 - a Guerra do Vietnã, a violência racial, os movimentos estudantis e a contracultura - fizeram com que, por exemplo, a campanha presidencial nos Estados Unidos, em 1968, englobasse todas as tensões e toda a agitação dos movimentos jovens, suscitando uma profunda preocupação e reavaliação dos problemas sociopolíticos norte-americanos. [...]

O refluxo dos movimentos jovens nos Estados Unidos foi, em parte, produto da própria política conservadora de Nixon, que, habilmente, começou a dissipar a questão da Guerra do Vietnã, com o início das conversações de paz e a retirada gradual das tropas norte-americanas. Por sua vez, havia o declínio da economia capitalista, que atingia seu ponto culminante em 1973, com a Crise do Petróleo, reduzindo sistematicamente as oportunidades de emprego e desviando, então, a atenção e a energia da juventude para a luta contra o desemprego e para a especialização profissional.

[...]

Apesar dessa crise na economia capitalista, a indústria fonográfica expandiu seu mercado, e o rock ficou com a maior fatia do bolo. Toda essa injeção de dinheiro na indústria fonográfica se refletiu numa infinidade de tendências que se impuseram ao longo da década.

O rock, que nos anos 60 havia servido de pano de fundo para o apogeu dos movimentos de contracultura, fragmentou-se numa infinidade de estilos e linguagens [...]. 

[...] no âmbito mundial, dois estilos marcaram a primeira metade dos anos 70: o progressive rock (rock progressivo) e o heavy metal (metal pesado). O primeiro teve sua origem nas experimentações musicais dos anos 60 [...]. Musicalmente, o progressive rock acabou sendo um dos principais responsáveis pelas experimentações de vanguarda (fusões com a música erudita e o jazz) e pelo desenvolvimento da eletrônica, especialmente dos sintetizadores [...] no interior da música pop. O início do movimento progressivo foi marcado por Days of future passed, o LP que os Mody Blues gravaram em 1968 com a Orquestra Sinfônica de Londres. Mas foram grupos como Yes, Genesis, Emerson, Lake and Palmer, Pink Floyd, Jethro Tull [...], que deram uma configuração inicial ao movimento.


Pink Floyd
Foto: TimDuncan

Já o heavy metal não usava nenhum metal (instrumento de sopro); era feito na base da força das guitarras amplificadas e distorcidas por toneladas de equipamentos. Esse estilo também teve sua origem no acid rock dos Estados Unidos [...]; nos grandes guitarristas britânicos como Jimmy Page, Jeff Back e Eric Clapton; em grupos como [...] o Led Zeppelin [...], Black Sabbath [...] e Deep Purple [...].

Logo, o rock passaria do sonho ao pesadelo. A temática do satanismo, explorada pelo heavy metal, refletia, de certo modo, as incertezas de uma década que se iniciava e havia sido prenunciada pelos Rolling Stones em "Simpathy of the devil" ("Simpatia pelo demônio") enquanto um jovem negro morria na platéia, esfaqueado pelos Hell's Angels (Anjos do Inferno) - grupo de motoqueiros desocupados, muitos deles veteranos do Vietnã -, em pleno Festival de Altamont (1969). Na verdade, o rock sofria o impacto dos novos tempos. A Crise do Petróleo [...]; os atentados terroristas [...]; o acirramento do conflito no Oriente Médio [...]; a corrida armamentista entre os Estados Unidos e a URSS, aliada ao desequilíbrio ecológico do planeta, tudo isso caracterizava o clima escatológico ou de fim de mundo, vivido nos anos 70 e não acompanhado pela expansão e sofisticação da indústria fonográfica do rock, cujo ponto culminante seria a discothèque.

A discothèque ou disco music, produto da cultura "underground" (marginal) homossexual, negra e latina dos grandes centros urbanos dos Estados Unidos, incorporada por amplos setores da classe média branca, representava o ponto máximo da expansão e do crescimento da indústria fonográfica mundial [...]. Popularizada pelos meios de comunicação e pela violenta campanha publicitária que acompanhou John Travolta e o filme Os embalos de sábado à noite, a discothéque se apoiou no clima dançante e evasivo das músicas do Village People e de Donna Summer [...]. Apesar de todo esse modismo e escapismo tolo, a discothèque conseguiu abrir caminhos para a influência da música negra (funk e soul) no interior da música pop branca.


Village People

O fenômeno discothèque e a sofisticação do rock [...] não correspondiam à situação desesperadora e sem perspectiva da maioria da juventude nos principais centros urbanos do mundo. Por isso, o elemento seguinte de contestação deveria ser um retorno às origens da energia crítica do rock. Só a partir da postura radical do movimento punk (1976) é que o rock restabeleceu seu poder crítico em relação à sociedade [...] e incorporando outros ritmos do Terceiro Mundo (como o reggae, o afro e outros).

A primeira metade da década de 1970 já apresentava vários componentes que serviriam de base para o movimento punk e o que se seguiu a ele [...]; mas é nas bandas de garagem dos Estados Unidos que encontramos a gênese desse movimento. [...]

Um dado importante na revolução do punk inglês foi a chamada conexão jamaicana, com o reggae. Os jovens londrinos da classe operária começaram a se identificar com esse ritmo antilhano [...] e a situação de miséria da população do Terceiro Mundo. Assim como os jovens da década de 1950 projetaram-se na marginalidade negra do blues norte-americano para criar o rock' n' roll, o reggae iria se tornar uma das principais influências da música pop, liderado por músicos como Bob Marley, Peter Tosh, Bunny Wailer, Jimmy Cliff etc.

[...]

Com a explosão do movimento punk em 1976, a imprensa não queria escrever sobre outro assunto. O espírito da época era punk e correspondia ao desemprego e à onda terrorista na Europa. Retomando o estilo básico - guitarra, baixo, bateria, vocal e amplificadores baratos -, o punk reciclaria o rock em três acordes, tocados o mais primitivamente possível. [...]

Em 1976, o punk foi uma revolução mais pelo estilo de vida agressivo, por suas roupas e atitudes, do que propriamente por suas "ideias anarquistas". [...]

No final de 1977, quando o punk se tornou sinônimo de má reputação e vandalismo, a imprensa mundial começou a tratá-lo como new wave ( (nova onda). Ironicamente, a extravagância e a rebeldia dos punks começaram a ser absorvidas pela indústria cultural, abrindo caminho para outros valores: The Police, Elvis Costelo [...], The Pretenders [...], Talking Heads, [...] B-52' [...]. O próprio esvaziamento da discothèque, em fins  dos anos 70, trouxe essa "nova onda". Como movimento, a new wave é difícil de definir e delimitar. [...]

BRANDÃO, Antonio Carlos; DUARTE, Milton Fernandes. Movimentos culturais de juventude. São Paulo: Moderna, 2008. p. 88-93 e 96-97.

NOTA: O texto "A cultura jovem dos anos 70: do progressive rock ao punk" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.


Nenhum comentário:

Postar um comentário